Nas próximas semanas, o Tribunal de Haia vai
decidir sobre um contencioso de mais de um século. Derrotada na Guerra do
Pacífico, a Bolívia perdeu seu acesso ao mar para o Chile. Atualmente, o lado
econômico, ligado à criação de um corredor que facilitaria as relações
comerciais de todo o continente com a Ásia
por Cédric Gouverneur // http://www.diplomatique.org.br/
A aurora desponta em El Alto, subúrbio de La Paz, a
4 mil metros de altitude. No frio matutino, Juan Capiona e Sandro T.1 ligam o
motor de seus semirreboques. Como fazem todo mês, eles estão prontos para
seguir em direção à costa chilena, uma viagem delicada através do Altiplano,
dos Andes e do Deserto do Atacama, da qual voltarão com 45 toneladas de carga
cada um. “Seria muito mais simples se não houvesse fronteiras”, suspira Juan,
que mais uma vez se prepara para enfrentar filas, controles intermináveis,
formalidades administrativas.
Em um artigo recente, no qual se colocou em busca
de grandes oximoros,2 o jornalista britânico Edward Luce citou “carvão limpo” e
“marinha boliviana”.3 Como a maioria de seus compatriotas, Juan ficaria
surpreso ao ler isso: ele sabe que o território que separa seu país do mar nem
sempre foi estrangeiro. Quando a Bolívia se tornou independente, em 1825, ela
tinha 400 quilômetros de litoral, que foram anexados pelo Chile na Guerra do
Pacífico. Desde então, o país é o único do continente completamente sem costa,
já que o Paraguai tem acesso ao Atlântico pelo Rio Paraná. De acordo com El
libro del mar, documento publicado pela Bolívia em 2014,4 isso atrapalha seu
desenvolvimento, principalmente encarecendo as exportações e privando o país
dos recursos do território anexado.
Um estudo realizado pelo economista norte-americano
Jeffrey Sachs5 concluiu que o crescimento econômico anual de países sem acesso
ao mar é 0,7 ponto percentual inferior do que se não o fossem.6 Em todos os
continentes, a nação mais pobre é exatamente a que não tem acesso ao mar:
Moldávia, Níger, Afeganistão, Nepal e Bolívia. Mas os bolivianos são os únicos
que perderam seu litoral após uma guerra.7 Por isso, eles vivem essa situação
não como uma fatalidade geográfica, mas como uma injustiça.
Os semirreboques deixam El Alto rumo ao sul. Os
caminhões não são dos mais novos: na porta de um, ainda estão o nome e o
endereço de uma transportadora finlandesa, vestígio da primeira vida do
venerável equipamento. Juan, que tem 27 anos, é caminhoneiro há seis. Ele vai
frequentemente ao Chile buscar cargas que às vezes leva até a fronteira do
Brasil. Ele acha o oceano “bonito, sem limites”, e lamenta nunca ter tomado um
banho de mar ou desfrutado a praia, “por falta de tempo”. Como todos os
bolivianos que encontramos, ele sonha “voltar um dia a ver nossa bandeira
tremulando sobre alguns quilômetros de costa”.
Assim como seu pai, Lizardo, empresário e
presidente da Câmara de Comércio de Pando (departamento no extremo norte da
Bolívia), Juan apoia o presidente Evo Morales sobre essa questão que vive à
flor da pele. Em 24 de abril de 2013, o presidente abriu um processo no
Tribunal Internacional de Justiça, em Haia, exigindo que o Chile “negocie de
boa-fé e de maneira efetiva para chegar a um acordo que garanta acesso
plenamente soberano ao Oceano Pacífico”. Em relação a esse assunto, Morales –
reeleito por ampla margem para um terceiro mandato em outubro de 2014 – é quase
uma unanimidade. Sinal de que essa luta transcende as divisões partidárias, o
embaixador boliviano itinerante encarregado de defender a causa marítima pelo
mundo não é ninguém menos que o ex-presidente conservador Carlos Mesa
(2003-2005). A Bolívia aposta na recente reeleição da presidente socialista
chilena Michelle Bachelet, com quem começara um diálogo em seu primeiro mandato
(2006-2010), para resolver a disputa secular.
Por volta de meio-dia, na saída da cidade mineira
de Oruro, os dois caminhões seguem para o oeste. O Altiplano é cada vez mais
árido, e no horizonte se desenham os picos nevados da cordilheira. As lhamas
pastam entre chullpares, túmulos pré-colombianos visíveis aqui e ali. No fundo
de uma ravina, um contêiner amassado confirma o perigo da estrada, nem sempre
asfaltada. Foram iniciadas obras com o apoio da Iniciativa para a Integração da
Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), um programa de modernização em
grande parte elaborado pela burguesia de São Paulo para obter acesso à costa do
Pacífico.8 Cruzamos com uma longa fila de semirreboques carregados com
automóveis tinindo de novos: veículos sul-coreanos e japoneses que cruzaram o
oceano em porta-contêineres. Mesmo íngreme e acidentada, a estrada é um eixo
vital do comércio mundial.
No fim da tarde, chegamos a Pisiga, povoado
boliviano adormecido que marca a fronteira. Juan Capiona e seu parceiro não se
esquecem de encher o tanque: no Chile, o combustível custa o dobro (o
equivalente a R$ 3,10 o litro). Depois estacionam em frente à barreira já
fechada, para estar entre os primeiros a atravessá-la quando a alfândega abrir,
às 8 da manhã – ou 9, no horário chileno. Atrás deles, caminhões e ônibus
enfileiram-se por centenas de metros. “Isso não é nada”, comenta um deles.
“Durante a greve da alfândega chilena [em novembro de 2013], nós éramos
milhares de bloqueados durante dias na fronteira.” De acordo com a Câmara de
Exportadores (Camex) boliviana, 40% das exportações do país, o equivalente a
1,5 milhão de toneladas por ano, precisam passar pelos portos do vizinho
chileno.
Na manhã seguinte, depois de tomar mate, os dois homens
levam seus caminhões até o posto de fronteira, onde os veículos serão
inspecionados. Com os documentos em mãos, entram na fila que leva aos balcões
do serviço de migração. Primeira surpresa: não há fila reservada para
profissionais. Os caminhoneiros bolivianos afogam-se em uma multidão de
passageiros de ônibus de turismo: famílias chilenas voltando das férias,
trabalhadores bolivianos que viajam para o Chile, mochileiros...
Os controles, meticulosos, parecem intermináveis. A
Bolívia está entre os principais produtores de cocaína, e todos os dias há
“mulas” – passadores de drogas muitas vezes pobres e vulneráveis, manipulados
por cartéis – tentando a sorte no posto de fronteira. Acostumados às
formalidades, os motoristas padecem pacientemente. Três horas depois, voltam
finalmente para seus caminhões. “Às vezes demora mais”, lança Juan, sacando do
bolso um pacote de amendoins: “A polícia não viu!”, diz com um sorriso
cúmplice. Para evitar a contaminação bacteriana de seu frágil ecossistema, o
Chile proíbe que os visitantes entrem com alimentos, mesmo sanduíches. Para os
caminhoneiros, a proibição é dolorosa: no Chile, a mais simples refeição custa
cinco vezes mais que do outro lado da fronteira.9
Agora os caminhões galgam as estradas íngremes do
Deserto do Atacama, antes de descer até o Pacífico: um desnível de mais de
4.300 metros. No meio da tarde, os caminhoneiros param em Alto Hospicio, vila
localizada a uns 10 quilômetros de Iquique, onde devem pernoitar todos os
caminhoneiros em trânsito. Juan dá de ombros ante a visão do oceano cintilante:
ele precisa voltar o mais rápido possível para a Bolívia, onde uma nova carga o
aguarda.
No dia seguinte, vamos encontrá-lo na Zona Franca
de Iquique (Zofri). Criada em 1975 sob a liderança dos “Chicago boys”,10 ela é
a maior da América do Sul – uma verdadeira cidade dentro da cidade, por onde
escoam, livres de tarifas aduaneiras, produtos provenientes da Ásia, para
grande deleite dos consumidores chilenos, que chegam a vir da capital,
Santiago, localizada 1.800 quilômetros ao sul. Estivadores chilenos carregam um
dos semirreboques com 88 motos japonesas made in China; o outro, com centenas
de caixas de bebida. Com suas cargas arrumadas e lonadas, no dia seguinte ambos
subirão para Arica, onde seus caminhões serão pesados. Em seguida atravessarão
novamente o Atacama e os Andes, até a Bolívia. De lá, subirão até Cobija, na
fronteira com o Brasil, destino final de suas mercadorias.11 Depois, descerão
até Santa Cruz de la Sierra, capital econômica da Bolívia, para pegar outra
carga, antes de finalmente voltar a La Paz.
“UM CORREDOR ALEMÃO ATRAVESSANDO PARIS?”
Segundo o Banco Mundial, essa ronda infernal
explica, em parte, por que as exportações da Bolívia são 55% mais caras que as
do Chile. O país andino tem os mais altos custos de transporte na América do
Sul: eles ultrapassam a média dos 31%.12 Munidas desses dados, as autoridades
bolivianas imputam parte do atraso do país à perda do litoral: “Embora os
problemas de desenvolvimento humano, econômico e social da Bolívia não sejam
resultado exclusivo de seu isolamento forçado”, analisa El libro del mar, “é
evidente que essa situação limita significativamente seu potencial de
desenvolvimento”.
Do lado chileno, a história é diferente. Em
Iquique, Jorge Soria Quiroga, ex-atleta de 78 anos, é uma figura da política
local. Eleito há meio século, preso pela ditadura, o socialista recuperou seu
assento com o retorno da democracia, em 1990. Ele perde as estribeiras quando
falamos das reivindicações bolivianas: “Você aceitaria que um corredor alemão
atravessasse Paris?”, protesta com sua voz de barítono. Uma comparação ousada?
Seja como for, ela ilustra a extrema sensibilidade da questão, de um lado a
outro do espectro político. “As fronteiras da Europa são resultado das guerras”,
diz. “Ninguém imagina os europeus voltando atrás. Até Augusto Pinochet [ditador
chileno entre 1973 e 1990] queria uma solução para o conflito: ele propôs a
Hugo Banzer [ditador da Bolívia entre 1971 e 1978] um corredor ao norte de
Arica. E adivinha? O Peru foi contra, porque não teria mais fronteira com o
Chile. Essa é uma prova de que redesenhar fronteiras é impossível!” Desde o
fracasso dessas negociações, em 1978, Bolívia e Chile não têm mais relações
diplomáticas. Já em 1970 os países discutiam a possibilidade de estabelecer um
corredor boliviano. No entanto, o golpe do general Banzer colocou fim às
negociações...
No dia 8 de julho, porém, em sua visita à Bolívia,
o papa Francisco incentivou os vizinhos ao “diálogo”, aconselhando a “pensar no
mar”. O Chile declarou-se pronto a restaurar “imediatamente” e “sem condições”
as relações diplomáticas com a Bolívia. Morales, por sua vez, convidou Bachelet
a ir com ele ao Vaticano “para chegar a uma solução definitiva, que dê à
Bolívia acesso soberano ao Pacífico, tendo como fiador o papa”. Desde então, o
presidente boliviano fala do pontífice como um aliado, chegando a mencionar, em
entrevista, o “apoio do papa à causa marítima”.13 Não é certo que o Chile veja
realmente com bons olhos um papa vindo da rival Argentina...
Historicamente, a área anexada pelo Chile fazia
parte da Bolívia. Criada pela coroa espanhola em 1559, a subdivisão
administrativa “Real Audiência de Charcas” incluía o atual território boliviano
e a costa compreendida entre os rios Loa, ao norte, e Salado, ao sul. Como
imaginar que o libertador da América Latina, Simón Bolívar (1783-1830),
deixaria sem acesso ao mar o país que, desde a independência, leva seu nome?
Nascida peruana, Iquique tornou-se chilena durante a Guerra do Pacífico. Na cidade,
diversos locais celebram a batalha ocorrida na enseada em 21 de maio de 1879.
Naquele dia, a corveta chilena Esmeralda foi abalroada e afundada pelo
couraçado peruano Huascar. No porto, os turistas podem visitar uma réplica da
Esmeralda financiada pela empresa Collahuasi, proprietária de uma mina de cobre
na região. Perto dali, o museu naval exibe fragmentos da embarcação naufragada,
uniformes e maquetes de navios, destacando o aspecto estratégico.
Assim, aprendemos que a corveta chilena, já obsoleta
no momento do conflito, não tinha nenhuma chance contra o couraçado peruano,
mais rápido e armado. Derrotado com seus marinheiros, o capitão da Esmeralda,
Arturo Prat, foi elevado a herói no Chile: há avenidas e praças com seu nome,
estátuas representando-o, e sua imagem na cédula de 10 mil pesos. O museu
também homenageia o capitão do Huascar, Miguel Grau, expondo a carta de
condolências que o oficial peruano enviou à viúva de seu oponente. Porém, seis
semanas após a batalha, Iquique caiu nas mãos dos chilenos.
A mesma leitura épica da história pode ser vista
nos outros dois portos conquistados pelo Chile, Arica e Antofagasta. Situada
próximo à fronteira com o Peru, Arica é dominada por um promontório rochoso
que, em 1880, era defendido por um forte, o qual caiu nas mãos das tropas
chilenas no dia 7 de junho daquele ano. Ali se encontra hoje um museu gerido
pelo Exército, inaugurado em 1975 pelo general Pinochet. Tendo as marchas
militares como pano de fundo, o lugar celebra a tomada de Arica e exalta o
sentimento patriótico: uma enorme bandeira chilena visível a quilômetros de
distância, túmulo do soldado desconhecido, afresco de cobre oferecido ao
Exército pela mina vizinha... Mais uma vez, saudamos a coragem do inimigo: em
pleno centro da cidade, uma rua leva o nome do coronel Francisco Bolognesi,
comandante da guarnição peruana. Exibe-se um orgulhoso nacionalismo: entre as
causas da guerra, o museu cita o “impulso expansionista do povo chileno”. Em
Antofagasta, outrora porto boliviano, o museu local apresenta o conflito como
uma revolta dos pioneiros, majoritariamente chilenos, sobrecarregados pelo
Estado boliviano:14 “Um estado de crise que, direta ou indiretamente,
contribuiu para a ocupação de Antofagasta pelo Exército chileno em 14 de
fevereiro de 1879”, segundo lemos em uma plaquinha explicativa. Nas docas, uma
placa – obviamente de cobre – proclama: “Lembrem que este mar é o sangue do
Chile”.
“O mar nos pertence. Recuperá-lo é um dever, e não
um direito”, responde, do outro lado dos Andes, outra placa de cobre. Todo ano,
no dia 23 de março, a Bolívia inteira celebra o Dia do Mar, aniversário da
defesa desesperada de Calama, liderada pelo coronel Eduardo Abaroa. A praça com
seu nome e sua estátua ficam, não por acaso, sob as janelas do Ministério da
Defesa, ele próprio decorado com uma enorme faixa proclamando o compromisso do
país com sua reivindicação territorial. Nesse dia, representantes das
instituições reúnem-se solenemente ao redor do monumento. “Nunca mais Bolívia
sem mar!”, repetiu Morales no dia 23 de março, diante de seu governo reunido,
da polícia, do Exército e até da improvável Marinha boliviana, cujos navios
nunca provaram o sal – eles patrulham o lago Titicaca, embora acordos permitam
que seus marinheiros treinem no mar a bordo de navios peruanos e argentinos.
Nas escolas, as crianças cantam o “Hino do mar” durante as aulas de Educação
Cívica. Elas aprendem que a “Guerra do Salitre” – nome dado pelos bolivianos ao
conflito – foi injusta e que o Chile, cúmplice do imperialismo britânico,
atacou de surpresa, no dia seguinte ao Carnaval, para mutilar sua pátria. No
lado chileno, os livros didáticos insistem no dever de defender os chilenos de
Antofagasta, taxados por um Estado boliviano instável.15
PRIVILÉGIOS INSUFICIENTES
Em março, Evo Morales anunciou que a leitura de El
libro del mar16 passaria a ser obrigatória nas escolas. “Desde a infância,
ensinam-nos que o Chile roubou nosso mar”, explica Gonzalo Chávez Alvarez,
professor de Economia da Universidad Católica de La Paz. “Essa convicção é profundamente
enraizada na alma boliviana, especialmente entre as pessoas modestas. Então
pouco importa que o Chile conceda esta ou aquela vantagem a nossas empresas em
seus portos! O que os bolivianos querem é acesso soberano.” Um corredor
descendo pelos Andes até o Pacífico, ou um enclave na costa chilena. Aberração
geográfica? Há precedentes: durante a Guerra Fria, três rodovias e três
ferrovias atravessavam a Alemanha Oriental para ligar Berlim Ocidental à
Alemanha Ocidental. E no Golfo da Guiné, o enclave angolano de Cabinda é
separado do resto de Angola, o que permite à República Democrática do Congo
(RDC) ter acesso ao mar.
A essa reivindicação de soberania, o Chile
respondeu que a Bolívia tem, na prática, acesso ao Pacífico: “Mais de 20% dos
países do mundo não têm litoral”, argumenta o Ministério das Relações
Exteriores chileno, em Mito y realidad, documento publicado em junho de 2014 em
resposta a El libro del mar. “A Bolívia está entre os que gozam de grandes
direitos de acesso ao mar. O Tratado de Paz e Amizade de 1904 reconheceu-lhes
perpetuamente ‘o mais amplo e livre direito de trânsito comercial através de
seu território e portos do Pacífico’. Ela goza de autonomia alfandegária, taxas
preferenciais e facilidades de armazenamento. Por meio dessas vantagens,
privilégios e direitos em território chileno, dispõe de amplo acesso ao Oceano
Pacífico.”17 No porto de Iquique, por exemplo, onde, segundo as autoridades
portuárias, “um a cada cinco contêineres é boliviano”, “os custos de
armazenamento são 70% mais baixos para produtos bolivianos do que para os
outros”, enfatiza um funcionário da Empresa Portuaria Iquique (EPI,
paraestatal). O homem mostra-se pouco falante, mas declara-se “irritado com a
ingratidão” da Bolívia. Em Antofagasta e Arica, o armazenamento das importações
bolivianas é gratuito por um ano, e o das exportações, por dois meses. As
mercadorias são controladas por funcionários aduaneiros bolivianos, em seguida
descarregadas por trabalhadores portuários com tarifas preferenciais: US$ 0,85
por tonelada, contra US$ 1,98 para as mercadorias de outros países. O
armazenamento de carga perigosa também conta com tarifas preferenciais: US$
1,04 por tonelada, durante cinco dias, contra US$ 111,15 para as mercadorias
provenientes de outros países.
Diretor da Administração de Serviços Portuários –
Bolívia (ASP-B) entre 2010 e 2012, Daniel Agramont Lechín dá um pulo quando
falamos nesses benefícios: “Desde 2004, os portos chilenos de Arica e
Antofagasta são privados. Assim, o Chile privatizou, de maneira unilateral,
suas obrigações para com um país terceiro! Isso é inédito nas relações
internacionais. É a prova de que o Chile age como bem entende, portanto, de que
a questão só pode ser resolvida com a soberania boliviana. E essas empresas
privadas aumentam suas taxas todo ano: no final de 2010, em Arica, elas
dobraram os preços. É um insulto; elas se aproveitam de nosso isolamento”.
Contatamos as empresas portuárias de Antofagasta, que nos deixaram visitar sua
infraestrutura, mas nunca responderam às nossas perguntas.
MEDO DO NARCOTRÁFICO
Sob a condição de se manter anônima, uma autoridade
portuária chilena dá outra explicação para a recusa do corredor boliviano: o
temor de que ele se transforme em uma “rota da cocaína”. A Bolívia virou as
costas à estratégia de erradicação dos Estados Unidos,18 país com o qual as
relações diplomáticas foram interrompidas em 2008. Uma política muito malvista
no Chile: “A perda de soberania resultaria em perda de controle”, avalia nossa
fonte. “O Chile ficaria vulnerável ao narcotráfico. Além disso, perderia os
recursos potencialmente situados não apenas nesse corredor, mas também em sua
saída marítima, até 200 milhas náuticas.”19
A Bolívia agora espera que o Tribunal Internacional
de Justiça resolva a disputa: “Desde a assinatura do tratado de 1904, temos
feito todos os esforços para encontrar uma solução amigável, sem nenhum
resultado até o momento”, resume Álvaro García Linera, vice-presidente
boliviano. “Respeitamos o direito internacional e confiamos no Tribunal de Haia
para nos dar justiça.” Ele tem motivos para estar otimista: em janeiro de 2014,
após seis anos de processo, o tribunal devolveu ao Peru uma área marítima
anexada pelo Chile após a Guerra do Pacífico. Mas o Chile mostra-se inflexível;
Bachelet contesta até a jurisdição de Haia para julgar o assunto. A Bolívia
gostaria de convencer o país rival de que esse acesso ao mar beneficiaria a
todos: “A resolução de nossa disputa é necessária para a integração regional”,
diz García Linera. “E essa integração também beneficiaria o Chile, somando
nossas forças, nossos recursos e nossa infraestrutura com o Peru e o Brasil.”
O Brasil tem mesmo muito a ver com isso: tendo a
China como seu maior parceiro comercial, o gigante da América do Sul sofre por
não ter acesso ao Pacífico. Uma prova é o fluxo interminável de caminhões
bolivianos que liga os portos do Chile ao Brasil: para os estados brasileiros
ocidentais, é mais fácil comercializar com a Ásia via Chile, Peru e Bolívia do
que por meio dos portos brasileiros e do longínquo Canal do Panamá. Embora o
Brasil tenha o cuidado de não apoiar publicamente a reivindicação marítima
boliviana, ele veria com bons olhos o desenclave de seu vizinho.
Obstáculo à integração continental, a perpetuação
do litígio irrita. Em novembro de 2014, o secretário-geral da União de Nações
Sul-Americanas (Unasul), Ernesto Samper, ex-presidente colombiano, recomendou
uma “solução para a disputa marítima entre a Bolívia e o Chile, o que
beneficiaria tanto as partes como a região”. A essa declaração, o embaixador do
Chile no Equador (onde fica a sede da Unasul), Gabriel Ascencio Manilla,
respondeu secamente: “O Chile não reconhece a jurisdição da Unasul ou de
qualquer outro fórum multilateral para intervir nessa questão”.20 Essa
inadmissibilidade confirma que é em Haia que será disputado o próximo – mas
provavelmente não o último! – capítulo desse litígio que já dura um século e
meio. As audiências públicas foram realizadas em maio de 2015, e o Tribunal
Internacional de Justiça deve fazer suas deliberações ainda este ano.
Cédric Gouverneur é jornalista.
Ilustração: Celeste Marina/ cc
1 O entrevistado preferiu manter o
anonimato.
2 Figura de estilo que aproxima dois
termos contraditórios.
3 Edward Luce, “American socialism’s
day in the sun” [Dia do socialismo americano ao sol], Financial Times, Londres,
1º jun. 2015.
4 Direção Estratégica da
Reivindicação Marítima (Diremar), El libro del mar [O livro do mar], La Paz,
2014. Disponível em: .
5 Os bolivianos conhecem bem Jeffrey
Sachs, que prestou consultoria ao país (junto com o francês Daniel Cohen)
durante a “terapia de choque” neoliberal em 1985. A operação, que visava
reduzir a hiperinflação, teve como saldo a demissão de 23 mil mineiros, o
aumento das desigualdades e o desenvolvimento do cultivo de coca.
6 “Nature, nurture and growth”
[Natureza, criação e crescimento], The Economist, Londres, 12 jun. 1997.
7 A cessão da Eritreia foi feita
após um acordo com Adis Abeba em 1993.
8 Ler Renaud Lambert, “Le Brésil
s’empare du rêve de Bolívar” [Brasil se apropria do sonho de Bolívar], Le Monde
diplomatique, jun. 2013.
9 Em 2014, o PIB per capita do Chile
foi de US$ 15.840 (o segundo da América do Sul), contra US$ 3.095 na Bolívia (o
último), de acordo com o Banco Mundial.
10 Economistas neoliberais formados na
Universidade de Chicago, entre os quais se destaca Milton Friedman.
11 O Brasil é o maior parceiro
comercial da Bolívia. O comércio entre os dois países aumentou seis vezes na
última década (Rede Brasil Atual, 22 jan. 2015).
12 “Doing Business 2012” [Fazendo
negócios 2012], Banco Mundial, Washington.
13 El Deber, Santa Cruz de la Sierra, 6
ago. 2015.
14 A Bolívia considerava-se no direito
de taxar empresários estrangeiros, especialmente para financiar a reconstrução
após um terremoto e um tsunami que devastaram a costa em 1877.
15 Daniel Parodi Revoredo, “Lo que
dicen de nosotros” [O que dizem de nós], Universidad Peruana de Ciencias
Aplicadas (UPC), Lima, 2015.
16 El libro del mar, op. cit.
17 “Chile y la aspiracion maritima
boliviana: mito y realidad” [O Chile e a aspiração marítima boliviana: mito e
realidade], Ministério das Relações Exteriores do Chile, jun. 2014. Disponível
em: .
18 Ler François Polet, “Vers la fin de
la ‘guerre contre la drogue’” [Rumo ao fim da “guerra às drogas”], Le Monde
diplomatique, fev. 2014.
19 O direito marítimo concede aos
Estados, ao longo de sua costa e até uma distância de 200 milhas náuticas (370
quilômetros), uma zona econômica exclusiva (ZEE): direitos soberanos de
exploração (hidrocarbonetos) e utilização de recursos (pesca).
20 Editorial do embaixador Gabriel
Ascencio Manilla, El Telegrafo, Guayaquil, 18 dez. 2014.
(BOX)
GUERRA DO PAC’IFICO E DO SALITRE
Quando 10 mil soldados chilenos desembarcaram no
porto boliviano de Antofagasta, em 14 de fevereiro de 1879, quase não
encontraram resistência. E por uma boa razão: a cidade tinha cerca de 6,5 mil
chilenos e 2 mil bolivianos. A dureza do Deserto do Atacama explica essa
peculiaridade: é menos perigoso chegar a Antofagasta navegando pela costa do
que cruzar os Andes e depois atravessar o deserto. O Atacama tem a menor
densidade orgânica do mundo; embora praticamente sem vida, desde meados do
século XIX seu potencial econômico já podia ser vislumbrado. Ali se descobriu
salitre (um componente da dinamite), guano (acúmulo de dejetos de aves
utilizado como fertilizante) e principalmente prata: diariamente, mil carrinhos
do minério circulavam então entre a mina de Caracoles e Antofagasta. Colonos
chilenos, além de aventureiros britânicos, migraram para a área.
Nessa época, em La Paz, os golpes de Estado se
sucediam. Instável e distante, o Estado boliviano era visto pelos pioneiros
como injusto e imprevisível, cada novo ditador ignorando os compromissos do
anterior. Em 1879, a recusa da anglo-chilena Compañía de Salitres y Ferrocarril
de Antofagasta (CSFA) em pagar uma taxa de 10 centavos por quintal exportado,
bem como a descoberta pelo Chile de uma aliança militar secreta entre a Bolívia
e o Peru serviram de pretexto para o início das hostilidades.
Numericamente, o Exército chileno era menor que o
do adversário, porém mais bem equipado. Ele contava com oficiais prussianos,
veteranos das guerras de Bismarck. Excessivamente vasto, distante e árido, o
litoral se revelou indefensável. A Bolívia nem sequer tinha frota, então
delegou as operações navais a seu aliado peruano. Por falta de telégrafo, as
comunicações eram deploráveis: a notícia da tomada das minas de prata de
Caracoles pelos chilenos levou dez dias para chegar a La Paz. Apesar de tudo, a
Bolívia e o Peru resistiram o que puderam. Em Calama, no dia 23 de março, os
defensores bolivianos, liderados pelo coronel Eduardo Abaroa, lutaram até a
última bala. Em 21 de maio, a corveta chilena Esmeralda foi afundada diante do
porto peruano de Iquique. Mas o avanço das tropas de Santiago foi inexorável, e
no dia 7 de junho de 1880 a bandeira chilena tremulou sobre o porto peruano de
Arica. As tropas chilenas chegaram até a ocupar brevemente Lima, em janeiro de
1881. Em pouco mais de um ano de combate, Santiago conseguiu a façanha de
ampliar sua fronteira setentrional em 600 quilômetros.
O Chile assinou um acordo de paz em 1883, e a
Bolívia, uma trégua no ano seguinte. Esta perdeu seus 400 quilômetros de
litoral, o equivalente a 120 mil quilômetros quadrados, um décimo de sua área.
Amontoado atrás da cordilheira, o país andino ficou ainda mais inconsolável
porque o Chile passou a explorar, não muito longe da “heroica” Calama, o que
continua sendo a maior mina de cobre a céu aberto do mundo: a inestimável
jazida de Chuquicamata.
Em 1904, Chile e Bolívia assinaram um “tratado de
paz, amizade e comércio”, no qual Santiago concordou em conceder aos vencidos
“livre trânsito” até o mar. (C.G.)
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