A tarefa prioritária, ingente e agônica da esquerda
e dos liberais progressistas é esmagar o ovo da serpente antes que a peçonha
contamine por completo o corpo social, costurando as bases de um Estado
reacionário, conservador, autoritário e, ninguém se engane, protofascista.
Assim se vem modificando o caráter da sociedade brasileira, aos poucos mas
sistematicamente.
Ele se manifesta sob as mais variadas facetas, no
Parlamento e na vida social.
O antipetismo em nome de um moralismo de fancaria –
esse que a imprensa e os partidos de oposição destilam – é apenas uma só de
suas máscaras, como o moralismo é apenas um disfarce. Pois tudo, fatos e
criações, são, tão-só o instrumento de uma tentativa, em marcha desde 2013, ou
antes, de implantação, entre nós, de uma clima de violência que lembra (pelos
efeitos psicossociais) o fascismo italiano e o nazismo alemão em suas
infâncias, envenenando as entranhas de suas sociedades.
Não caminham, ainda, pelas ruas, os camisas pretas,
os grupos paramilitares quebrando lojas de judeus e espancando homossexuais,
prostitutas, negros e comunistas, mas celerados conspurcam velórios e atacam o
Instituto Lula. Ontem, nos anos da ascensão integralista brasileira, os camisas
verdes das hordas de Plínio Salgado desfilavam impunes até a tentativa de
assassinar o presidente Vargas em um putsch covarde que lembrava e imitava a
primeira tentativa hitlerista de tomada do poder (levante de Munique, 1924)
pelo golpe de força.
Nos idos brasileiros da repressão militar, grupos
de aloprados depredaram no Rio de Janeiro o Teatro Opinião e em São Paulo
invadiram o Teatro Ruth Escobar durante montagem de “Roda Viva”? Nos estertores
do terrorismo praticaram atentados contra a OAB e a Câmara Municipal do Rio de
Janeiro e tentaram o felizmente frustrado massacre do Riocentro. São sempre os
mesmos, variam os países, variam as datas e os pretextos mas a ideologia do
ódio e a covardia na ação são as mesmas.
Agora, súcias de ululantes bem nutridos, vestidos
ou não com a camisa da seleção canarinha, tentam, em todo o país, mediante o
amedrontamento físico, interditar, em um hospital da grã-finagem paulistana,
nas ruas, nos bares, nos aviões, nos aeroportos, a livre circulação de homens
de bem como, Guido Mantega, João Pedro Stédile e, de último, o ministro Patrus
Ananias.
Tudo isso está na crônica jornalística. Mesmo em
seus momentos mais acres de disputa política, a direita brasileira jamais havia
ousado tanto e jamais nossas esquerdas haviam recuado tanto, e jamais os
liberais foram tão omissos.
Os primeiros sinais foram dados na abertura dos
Jogos Pan-americanos, no Rio de Janeiro (2007), e replicados em Brasília na
abertura da Copa das Confederações em 2013. A esquerda não quis ver nem ouvir,
fez-se de morta, como se as vaias e as agressões – primeiro a Lula, depois a
Dilma – não lhes dissessem respeito e, assim, silente e inerte permaneceu sem
qualquer tentativa de compreender as jornadas de 2013 – prenúncio as
dificuldades de 2014, que assistiu atônita.
O moralismo da elite financeira que sonega impostos
e suborna funcionários públicos sempre foi a chave para a conquista da classe
média. Dele sempre se valeu a direita, no Brasil e em todo o mundo.
Assim foi entre nós nos idos de 1954 quando a
classe média, majoritariamente, e setores liberais da sociedade, populares e
mesmo o movimento estudantil, e mesmo setores da esquerda e comunistas sob a
liderança de Pestes, abraçaram o cantochão da direita que a todos mobilizou no
pedido de renúncia de Getúlio Vargas, quando o alvo, encoberto pela denúncia de
um ‘mar de lama’ que jamais existiu, era a política nacionalista do ditador
feito presidente democrata. A história não se repete, mas há pontos de contato
entre dois momentos históricos tão distintos.
Getúlio também levara a cabo uma campanha presidencial
levantando as teses progressistas do nacionalismo e do trabalhismo, mas, para
executa-las, montara um ministério reacionário. Era a sua forma de compor com
as elites, especialmente paulistas, que sempre lhe foram hostis. Era a velha
ilusão da conciliação de classes, que conquistaria Lula tantos anos passados.
Não deu certo com Getúlio como não daria certo com
Lula e não está dando certo com Dilma. Atacado pela direita, inconformada com a
aliança do trabalhismo com o nacionalismo, viu-se Vargas em 1954 sem o apoio
das massas trabalhistas. Essas só foram às ruas – e foram como turba, sem
vanguarda – depois do suicídio. E, aí, nada mais havia a ser feito.
Naquela altura como hoje, e como nos preparativos
de 1964, a imprensa brasileira, igualmente monolítica e igualmente de forma
quase unânime, servia à saturnal dos ódios que envenenava a opinião publica e
deixava aturdido o povo, mesmo os trabalhadores – então como agora
desassistidos ideologicamente por seus partidos e organizações.
Uma vez mais o governo de centro-esquerda se vê no
cume de uma campanha de descrédito presidida pela imprensa, uma vez mais a
partir da cantilena moralista. Uma vez mais o governo de centro-esquerda se vê
desprotegido no Congresso, onde dominam ora uma oposição ensandecida, ora uma
base parlamentar movida a negócios e negociatas e negocinhos a cada votação.
Para não dizer que a história se repete, lembremos
que os postos antes ocupados por Carlos Lacerda, Afonso Arinos, Aliomar
Baleeiro e outros de igual calibre é exercido hoje por Paulinho da Força, Jair
Bolsonaro, Ronaldo Caiado e Eduardo Cunha – o que apenas diz que o aviltamento
da linguagem e dos procedimentos alcançou o mais baixo nível da República.
Uma vez mais, agora como em 1954, as grandes massas
não afluem em defesa de seu governo.
Uma vez mais a moralidade é um mero biombo dos
grandes interesses em jogo.
Pois o que está em jogo não é a moralização dos
costumes – e quem é contra? – nem é só a tentativa de assalto ao mandato
legítimo da presidente Dilma. Não é só a destruição do PT e dos demais partidos
de esquerda, inclusive daqueles que ainda hoje pensam que passarão incólumes.
Não é apenas a destruição de Lula, ainda a maior liderança popular deste país
depois de Vargas.
O que está em jogo são os interesses dos
trabalhadores, da economia e da soberania nacionais, de defesa ainda mais
difícil após eventual derrocada do atual governo. Adiada – até quando ? – a
hipótese do impeachment clássico, a oposição põe em prática um novo projeto de
golpe, contra o qual nem a base parlamentar do governo – heterogênea e frágil
–, nem muito menos sua articulação política parecem preparadas para enfrentar.
Trata-se da tática de impedir o governo de
governar, e contra essa artimanha nem mesmo as últimas negociações ministeriais
– penosas, rasteiras, pedestres e nada republicanas – se mostraram eficientes.
E enquanto o governo não governa e se desgasta perante a opinião pública, a direita
governa, desfazendo, no Congresso ordinário, as grandes conquistas da
Constituição de 1988.
A direita, sob a batuta de Eduardo Cunha, faz sua
parte, e dessa desconstituição conservadora fazem parte o fim do desarmamento,
o fim da demarcação das terras indígenas (fim dos índios?), o fim dos direitos
sexuais das mulheres, e a quase legalização do estupro, o fim da pós-graduação
pública gratuita.
Este é o golpe.
A destruição do governo Dilma levará de roldão a
política de prioridade nas compras estatais aos produtos e bens nacionais,
levando consigo, de saída, a indústria naval brasileira. Levará de roldão os
projetos sociais, como o Minha casa, Minha vida; o Luz para Todos; como o Bolsa
Família. Mudará a política de reajuste do salário-mínimo e, fundamentalmente, a
política de transferência de renda.
Será a renúncia ao pré-sal (já caminha o projeto
José Serra), será o fim de uma política externa autônoma, com a aliança
subserviente e submissa aos interesses dos EUA, será o fim do Mercosul e a
retomada da Alca, nossa recolonização, será um torpedo contra os BRICS e uma
ameaça às experiências de governos independentes na América do Sul. (
Por isso, certa está a Frente Brasil Popular por
entender que os erros da atual política econômica – agravados pela crise ética
que assolou os governos do PT – não podem servir de argumento para a omissão na
defesa do mandato da presidente Dilma, ou, dito por outras palavras, nem a
defesa do mandato inviabiliza a crítica à política econômica, nem a crítica à
politica econômica inviabiliza a defesa do mandato.
Ao contrário, a defesa do mandato deve ser feita de
par com o combate à política recessiva e esse combate deve ter em vista a
reaglutinação das forças progressistas de esquerda, com objetivo claro, deter a
reação. Para isso é preciso construir uma nova correlação de forças.
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