Diversos fatores se conjugaram para que, pela
primeira vez na história argentina, um representante explícito da direita
chegasse ao poder pelo voto.
Mabel
Thwaites Rey // www.cartamaior.com.br
O surpreendente triunfo de Mauricio Macri nas
eleições presidenciais de 22 de novembro produziu um enorme abalo político na
Argentina e em toda a região. Porque os alinhamentos internos e externos do
mandatário eleito prefiguram um panorama inquietante para as expectativas de
transformação econômica, social e política que se abriram na América Latina no
começo do Século XXI. Abundam, nestes últimos dias, as análises e
interpretações sobre as razões que explicam tal mutação política na Argentina,
e sobre suas consequências. Por isso, deve-se destacar duas das múltiplas
causas que confluíram na configuração do atual cenário, e um dos aspectos nos
quais resultará especialmente distintiva a gestão do novo governo: o
alinhamento com os Estados Unidos e a dissolução da perspectiva
latino-americanista.
Os pró do PRO e os contras do kirchnerismo
Diversos fatores se conjugaram para que, pela
primeira vez na história argentina, um representante explícito e genuíno da
direita social e política chegasse ao poder pela via eleitoral, e dois deles
têm incidência direta no plano político e se vinculam às lideranças em disputa.
Um é a evidente capacidade demostrada pelo PRO para se conformar como força
política bem sintonizada com o momento pós-crise de 2001 e a impugnação do
neoliberalismo explícito que se abriu então. O PRO entendeu o sentimento
antipolítico que se manifestou como consequência da profunda crise de
representação e se voltou para a imagem de canal de participação política para
certo espírito empreendedor e de voluntariado caritativo de núcleos juvenis de
setores acomodados, mas que sentem ter vocação de poder. Sua conquista mais
importante é ter superado os limites sociais que, até a pouco, pareciam fechar
as portas a qualquer opção eleitoral conservadora, que não venha vestida com as
clássicas siglas do peronismo ou do radicalismo – o excelente livro Mundo PRO:
Anatomia de um partido fabricado para ganhar, explica com profundidade as
características da Proposta Republicana (PRO), uma agrupação política criada em
2005 e que, assim como o kirchnerismo, é filha da crise de 2001. Macri
conseguiu, ao menos até o momento em que ganhou as eleições, projetar os
interesses do núcleo duro da direita social, ao revesti-los eficazmente como
beneficiosos para o conjunto da sociedade.
O que não se conseguiu com a rebelião do campo em
2008, terminou sendo o germe de uma nova hegemonia sob a égide dos núcleos
agroexportadores, aumentando as possibilidades do triunfo do PRO nas recentes
eleições presidenciais.
A omissão midiática dos aspectos mais obscuros da
figura e da gestão de Macri como prefeito de Buenos Aires teve também um papel
relevante para que o dirigente pudesse se projetar em todo o país e vencer as
barreiras que enfrentava por ser um protótipo da elite portenha. Aproveitando
essa proteção, Macri foi aglutinando à sua candidatura os setores que o
kirchnerismo ia expulsando do emaranhado hegemônico consagrado nas eleições de
2011. Enquanto a inflação minava a renda e os salários da população, a
restrição à compra de dólares como refúgio de valor, a negativa em modificar a
escala do imposto de renda – que afeta uma proporção crescente de assalariados
e seus núcleos familiares, o que levou à ruptura com sindicatos outrora aliados
–, e a congestão orçamentária para as províncias opositoras (como Córdoba),
foram gestando novos rancores entre as classes média e baixa, especialmente dos
centros urbanos da região central do país. Em meio a isso, surgiram as
consignas que pediram o fim das confrontações e a recuperação da cultura do trabalho,
o que levou à percepção de que havia uma extração abusiva dos recursos obtidos
legitimamente mediante o esforço do trabalhador, para entregá-los via subsídios
a setores pauperizados e estigmatizados como vagabundos e massa de manobra
clientelar de um oficialismo minado por denúncias de corrupção. O PRO alimentou
ativamente essa visão, e soube tirar proveito dela quando foi estendida e
amplificada midiaticamente – através do incentivo a posturas menos solidárias
ou francamente reacionárias –, assim como da convicção de que para vencer o
kirchnerismo era necessário aglutinar forças em torno a uma única candidatura,
que se apresentasse como aberta ao diálogo que interpretasse a demanda de uma
mudança de rumo e das regras do jogo, mas que, ao mesmo tempo, mostrasse
firmeza e capacidade de derrotar um adversário que conservava altos níveis de
aceitação social.
O outro fator relevante tem a ver com a própria
estratégia do kirchnerismo diante da conclusão do ciclo conduzido por seus
máximos exponentes e criadores, diante de um cenário econômico internacional
adverso. Durante o segundo mandato de Cristina Kirchner se acumularam problemas
econômicos que foram manejados com o propósito central de não afetar de modo
significativo os níveis de consumo e emprego consistentes com as linhas gerais
do projeto político aberto em 2003. A derrota nas eleições legislativas de 2013
foi seguida de medidas que não foram capazes de desativar o descontamento, e
que tampouco puderam incorporar novos direitos e reivindicações sociais
insatisfeitas, como foi feito em 2009, quando também houve uma derrota
legislativa importante, e logo depois se criou a Contribuição Universal por
Filho – AUH, em sua sigla em espanhol, espécie de Bolsa-Família argentino. O
repertório de opções dentro da lógica sistêmica não apresentava muitas
variações e a tentativa de voltar a obter empréstimos do mercado financeiro
para relançar a atividade econômica foi abortada pela decisão do juiz Thomas
Griesa, de Nova York, de aceitar a bilionária demanda dos fundos abutre. O
empréstimo outorgado pela China aliviou uma situação que parecia de catástrofe
inevitável e a condução econômica se concentrou em procurar que o último ano do
mandato presidencial transcorresse de modo relativamente calmo, sem afetar os elevados
níveis de popularidade da mandatária. Não entregar um país em chamas, como
sucedeu em 1989 e em 2001, foi uma decisão importante que Cristina Kirchner
conseguiu impor.
Mas a maior complicação foi a incapacidade para
resolver a sucessão presidencial e a formação de uma candidatura que
expressasse cabalmente o projeto político governante. Isso levou o kirchnerismo
à tardia, forçada e pouco entusiasta aceitação de Daniel Scioli como
continuidade provisória e praticamente assegurada, mas com a preocupação sobre
como se reequilibrariam as forças internas uma vez que a nova administração
assumisse. O cálculo de limitar o candidato dentro da própria campanha para
condicionar seu futuro, e de se entrincheirar no território da Província de
Buenos Aires, como uma figura resistida porém leal e confiável para a
continuidade da estrutura kirchnerista, empurrou a um desgaste irrecuperável,
que pavimentou a derrota. Longe de projetar sua visão particular como interesse
geral, incorporando demandas e aspirações que foram além das próprias, e com
porta-vozes que fossem convincentes, o oficialismo se fechou sobre si mesmo, e
apostou no potencial da liderança especial exercida por Cristina Kirchner. A
imprevista vitória de María Eugenia Vidal na Província de Buenos Aires, contra
o polêmico Aníbal Fernández, sacudiu profundamente o tabuleiro político, e
deixou em evidência os limites reais que o esquema governante enfrentava. O
esforço desmedido de uma militância inorgânica e espontânea, que decidiu
enfrentar a opção macrista com criatividade e convicção, impediu que a vitória
do candidato conservador fossem mais contundente.
Finalmente, as eleições se definiram por somente
600 mil votos a favor do líder da direita conservadora. Se subtraímos dessa
vantagem os votos em branco e os anulados, Macri vence por apenas 60 mil votos
e o país fica dividido por metades bastante equivalentes e numa tensão cuja
evolução e desfecho são incertos.
Atendido por seus gerentes
O que farão efetivamente Macri e o PRO no comando
do governo nacional, da cidade e da Província de Buenos Aires, e com o forte
respaldo de Córdoba e da rica região central, é a grande incógnita que será
elucidada com o correr dos próximos dias. No cenário que se abre, pesam
fortemente a vontade, as preferências e os suportes políticos e sociais do novo
mandatário, para encarar uma rota consolide – ou dilapide – sua atual e
ajustada supremacia, mas que também terá relevância a capacidade de resistência
e articulação que terão os setores que confrontarão as políticas que ele
pretende impulsar. Porque, apesar do seu discurso difuso de cooperação e boa
vontade, que cativou eleitores com a promessa de “mudanças”, as decisões que
tome gerarão beneficiários e afetados, que certamente não aceitarão sua sorte
de modo passivo, o que significa que terá que encarar conflitos mais duros e
tangíveis que a mera questão de posturas republicanas ou não.
Como empresário próspero, Macri defende os valores
do livre mercado e da iniciativa privada, e não se cansa de dizer que é preciso
restaurar a confiança do polo do capital para atrair os investimentos que o
país necessita para crescer. A escolha do seu gabinete, com um peso central de
figuras provenientes de multinacionais e de universidades privadas, expressa
com clareza suas orientações e preferências. O fato da União Cívica Radical,
aliado eleitoral estratégico, ter ficado de fora dos ministérios mais
importantes, mostra que o macrismo não pretende fazer um governo de coalizão –
o que implicaria negociações e concessões – e sim impor a firme expressão do
seu núcleo ideológico, político e social mais genuíno, com certa capacidade de
interação com o resto das forças que decidiram se posicionar ao seu lado com o
único intuito de vencer o adversário kirchnerista. A conformação de elencos
governamentais homogêneos em sua procedência social e política, com perfis
gerenciais e formados em universidades privadas, projetam a imagem de que o
país finalmente será atendido diretamente por seus próprios donos, sem
mediações constrangedoras. Isso não significa, porém, que se esteja planteando
uma retorno puro e simples à doutrina dos Anos 90, como a exumação de certas
figuras emblemáticas parecia indicar.
Em primeiro lugar, porque depois daquela década
explicitamente neoliberal, se abriu na América Latina uma etapa de impugnação
do Consenso de Washington, e foi essa impugnação a que trouxe um saldo de
crescimento econômico e conquistas sociais que mudaram as bases de sustentação
para os projetos políticos com pretensão hegemônica. Se, por um lado, as
políticas pró-mercado e antipopulares se ergueram sobre a terra arrasada da
derrota do campo popular, infligida pela ditadura a sangue e fogo, o processo
que surge após a crise de 2001 é filho das lutas populares de resistência. Esse
ciclo de auge da mobilização e participação ativa teve seu declínio e
reabsorção por mediações institucionais, mas conseguiu se materializar nas
conquistas sociais que constituíram um piso fundamental, tanto em termos
materiais quanto simbólicos, muito diferente do momento de derrota defensiva
noventista. Além disso, os setores populares acumularam experiência e formatos
organizativos nos quais podem se apoiar para ativar a resistência contra
medidas regressivas, o que conforma um cenário bastante diferente ao inaugurado
com a hiperinflação, no final dos Anos 80.
Claramente, a chegada de Macri ao governo não é
fruto de uma derrota inapelável do campo popular, e aí reside uma diferença
fundamental com relação ao ciclo de Carlos Menem.
Em segundo lugar, existia nos Anos 90 uma receita
neoliberal uniforme, que deixava a “chave nas mãos” dos organismos financeiros
internacionais, os que outorgavam homogeneidade, apoio e coerência lógica para
implantar medidas de ajuste estrutural e abertura econômica previamente
desenhados e abençoados pelo saber técnico hegemônico. As classes proprietárias
confiavam nesse molde, ainda quando, na prática, ele não fosse proveitoso,
inclusive para os seus interesses imediatos. Disciplinar as classes subalternas
era seu ponto de unidade, e por trás desse objetivo, os conflitos internos eram
adiados. Hoje, o Consenso de Washington foi desbancado pela dinâmica de um
mundo em crise e que enfrenta a mutação das hegemonias, flagelado por uma
guerra contra o islamismo radicalizado de contornos difusos e mudanças bruscas
e inesperadas, e que inviabiliza a proposição de um formulário articulado de
medidas inquestionáveis, capazes de ser a bússola que defina para onde navegar
entre as incertas águas da acumulação de capital a escala nacional.
Embora os determinantes estruturais do ciclo
neoliberal não tenham sido removidos durante estes últimos anos “impugnadores”,
o rumo atual não é tão claro, e apresenta matizes para a disputa intraburguesa.
Hoje, a palavra mágica parece ser “desenvolvimentismo”, como outrora foi o
ajuste estrutural, porém baseado na ideia de crescer através dos investimentos
e da oferta, incentivando a inovação e as exportações, apresentando o consumo
interno como motor privilegiado do crescimento. Isso supõe fortes contradições
com os setores capitalistas ligados à atividade interna e, necessariamente, com
as classes populares. Porque ainda que usem eufemismos para eludir definições
que poderiam ter resultado em menos votos e apoios eleitorais, na visão
triunfante, o significado do crescimento via investimento equivale à redução do
poder adquisitivo dos assalariados. Para beneficiar esses interesses, pela
primeira vez, a direta pró-patronal e pró-mercado impulsou um líder próprio e
genuíno – ainda que camuflado eleitoralmente com o slogan optimista de que
podemos “ganhar todos” –, e agora tem em suas mãos a condução direta do Estado.
Mais cedo que tarde, esse núcleo terá que enfrentar as dificuldades bem
concretas de manejar as agências públicas, que são muito diferentes das
empresas privadas dirigidas por seus técnicos, e a uma realidade na que o
choque de interesses tornará inevitável o conflito, a disputa e as lutas. A
harmonia proposta por Macri será posta à prova diante da primeira decisão que
afete direitos e expectativas populares, especialmente as que provocarem
protestos capazes de ativar os reflexos repressivos que alimentam o âmago
direitista.
Uma das áreas decisivas onde se verão mudanças
importantes é na política exterior, onde se planteiam imensos desafios para a
integração latino-americana. O triunfo de Macri foi um momento marcante do
ciclo de desestabilização dos governos de matriz popular na América Latina,
provavelmente o início de um processo de realinhamento com a política
estadunidense, que se visualiza para a região. Uma das poucas precisões que o
candidato deu durante os debates contra Scioli foi que acionaria a cláusula
democrática para excluir a Venezuela do Mercosul em solidariedade com a prisão
do líder opositor Leopoldo López. Independente da inviabilidade dessa norma,
que só pode se ativada em casos de interrupção da ordem democrática, Macri quis
dar um sinal claro do que ele pretende promover na região. A grande derrota do
chavismo para a coalizão opositora, nas eleições legislativas deste 6 de
dezembro, e a abertura do processo de impeachment contra mandatária brasileira
Dilma Rousseff, configuram um contexto sombrio a respeito das possibilidades de
integração regional com sentido progressivo e autônomo em relação à potência do
norte. A presidência de Macri impulsará uma mudança contrária às da etapa que
culmina, e é previsível que se desativem ou esmoreçam os acordos regionais que
suponham vias de distanciamento da supremacia estadunidense na região. As
dinâmicas da CELAC, da Unasul e do próprio Mercosul certamente mudarão de forma
importante, e cederão espaço aos acordos bilaterais com as potências centrais,
retomando as velhas estratégias competitivas entre as burguesias interiores de
cada estado nacional por obter os favores dos Estados Unidos e da Europa. A proposta
de integração à Aliança do Pacífico, as negociações com a União Europeia, e
também a pressão dos grandes grupos econômicos para que sejam assinados os
tratados de livre comércio transpacífico (TPP, por sua sigla em inglês) e do
acordo sobre o comércio de serviços (TISA, também sigla em inglês), que
entregam as corporações direitos inusitados contra os estados nacionais,
ocuparão um peso relevante na nova gestão, e enfrentá-las requer uma
articulação de amplos processos de luta.
Aceita o alinhamento com os Estados Unidos,
seguindo com dócil entusiasmo as diretrizes econômicas e geopolíticas impostas,
está na matriz dos projetos das direitas sociais e políticas latino-americanas,
que estão mais cômodas e seguras em seu papel de vice-reis que dedicadas a
caminhos que busquem uma maior autonomia. Por isso, apelam à “desideologização”
e o pragmatismo nas relações internacionais do novo governo argentino, que
admite a submissão ao desenho da casa matriz do norte, com o risco de que se dá
num tempo de guerras mundiais, que poderia arrastá-lo à subordinação e a
estratégias bélicas injustas e ruinosas para o país e toda a região.
Em suma, as mudanças pretendidas pelo projeto do
novo governo da direita, que assume com pouco mais de 50% de apoio eleitoral,
dependerão muito da capacidade de articulação popular para defender conquistas
e evitar que cobrem do povo os custos de uma reconfiguração social regressiva.
(*) Mabel Thwaites Rey é doutora em Direito
Político e Teoria do Estado (UBA). Professora, Investigadora e Diretora do
Instituto de Estudos sobre a América Latina e o Caribe (IEALC) da Faculdade de
Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires. Coordenadora do grupo de
trabalho do CLACSO “O Estado na América Latina: conquistas e fadigas dos
processos políticos do novo século”.
Tradução: Victor Farinelli
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