Poder popular avançou, mas não
enfrentou burocracia e dependência do petróleo. Oligarquia conquistou
Legislativo e quer revanche. Qual o futuro do país de Bolívar e Chávez?
Por Luiz Arnaldo Campos // http://outraspalavras.net/
Em Santa Elena de Uairén, cidade
venezuelana fronteiriça com a brasileira Pacaraima, no estado de Roraima, é
possível fazer cambio negro abertamente. Em média um real vale 150 bolívares e
um dólar entre 700 a 800 bolívares. Como a cédula venezuelana de maior valor é
a de 100 bolívares o resultado são pacotes de notas a serem transportados por
quem compra o dinheiro venezuelano. Se esta é uma cena emblemática da crise
econômica atravessada pela República Bolivariana a outra, sem dúvida ,são as
filas de gente pobre nas primeiras horas da manhã , esperando para comprar
gêneros e artigos de primeira necessidade com preço subsidiado.
Em Caracas, num supermercado
privado, um cartaz informa a quantidade de produtos “sensíveis” (entre eles
farinha, leite in natura, arroz, azeite, papel higiênico etc…) que podem ser
comprados semanalmente por cada consumidor mediante a apresentação da carteira
de identidade no caixa.
Como uma espécie de rodízio, na
segunda feira podem comprar os produtos racionados os portadores de carteiras
terminadas no número 1e 2 e assim sucessivamente pelos dias da semana. O quadro
se completa com os reclamos da inflação galopante e da criação de uma espécie
de sobrevivência através da especulação. Muita gente desempregada na fila dos
armazéns estatais vai comprar a preço baixo produtos que logo estará vendendo
no mercado negro com os preços majorados em mais de 100%.
A crise econômica está instalada
na Venezuela e o presidente Maduro até agora não conseguiu convencer a maioria
do povo trabalhador da culpa da grande burguesia comparadora por este desastre.
Para o senso comum é incompreensível que um governo que controla a compra e
venda de dólares e dirige plenamente a PDVSA (a companhia estatal de petróleo)
responsável por mais de 90% das receitas econômicas do país não seja
responsabilizado pela carestia e a piora das condições de vida da maior parte
da população.
Claro que tudo é mais complexo.
Grandes importadoras compram dólar barato no cambio oficial sob a desculpa de
importar alimentos e desviam parte do dinheiro para o cambio negro onde obtém lucros
espetaculares e a desaparição de produtos das prateleiras- como o sumiço dos
refrigerantes na época natalina- parece claramente uma manobra de grandes
distribuidoras para indispor a população contra o governo. Porém, por debaixo
das aparências se esconde o fato inconteste: o país está sem divisas e com o
petróleo a quarenta dólares o barril não existe muita perspectiva para
recompô-las. Até mesmo setores do chavismo admitem que a corrupção na máquina
governamental responde pela desaparição de milhões de dólares que afetaram a
reserva nacional, porém para além dos chamamentos a retificações devidas no
processo revolucionário fica a pergunta: existe uma saída possível e imediata
para a crise econômica?
A oposição martela todos os dias
que com o chavismo no poder a situação vai transitar do ruim para o pior e
nisto aposta suas fichas, muita embora esteja dividida entre aqueles que querem
fazer o chavismo sangrar e decorridos três anos (metade) do governo Maduro
tentar reunir as assinaturas de cidadãos suficientes para convocar o
revocatório (uma eleição prevista pela Constituição Bolivariana, onde a
população pode revogar o mandato do presidente e convocar novas eleições) e
outros setores que entrincheirados na Assembleia Nacional buscam choques
frontais com a presidência.
O governo por sua vez só aponta
para alternativas de médio e longo prazo, como um maior controle da moeda,
combate à corrupção e construção de uma base produtiva mais ampla do que a
extração do petróleo. Parece pouco, até mesmo porque como optou por não reduzir
os investimentos sociais – a Missão Vivenda acabou de entregar sua milionésima
casa de no mínimo 82 metros quadrados e completamente mobiliada, o metrô de
Caracas continua com sua passagem custando incríveis quatro bolívares (para
efeito de comparação um cafezinho custa cinquenta bolívares) e modernos ônibus
chineses, confortáveis, com ar condicionado e preço subsidiado, se incorporaram
a paisagem urbana de todas as cidades- a inflação não dá tréguas. Como não tem
recursos para sustentar os gastos sociais o governo imprime dinheiro e com isso
a inflação dispara.
No fundo a questão é política. No
Chile de Allende, mesmo com o desabastecimento bem mais cruel do que o vivido
pelos venezuelanos, a Unidade Popular venceu as últimas eleições parlamentares
que disputou aumentando sua presença no Parlamento, fato decisivo para a
direita optar pelo golpe. Na Venezuela, o resultado do último pleito foi muito
duro para os bolivarianos. A oposição elegeu 2/3 das cadeiras e conquistou
maioria absoluta. Porém, estes dados precisam ser esmiuçados. Na prática, a
direita ampliou em apenas 300 mil votos a sua votação histórica. Na abstenção e
no voto nulo- visto como o chamado voto de castigo de chavistas desiludidos ou
apreensivos- construiu sua maioria acachapante. A batalha pelos corações e
mentes dos venezuelanos está a pleno vapor.
No último dia 05 de janeiro, com
a posse dos deputados eleitos foi dada a largada da etapa atual. Nem mesmo
tinham esquentado suas cadeiras, a Mesa Diretora da Assembleia Nacional ordenou
a retirada do prédio dos retratos de Chávez e dos quadros de Bolívar feitos
durante o período chavista, empossou três deputados do estado de Amazonas, cuja
eleição está sob judice pelo Tribunal Superior Eleitoral e apresentou o projeto
de uma Lei de anistia com o objetivo de libertar os opositores presos acusados
de incitação e participação em atos violentos destinados a questionar a vitória
de Maduro quando se elegeu presidente do país. O contra-ataque veio rápido.
Maduro solicitou a Justiça a não validação dos atos da Assembleia, por causa da
incorporação dos três deputados questionados judicialmente, as Forças Armadas
realizaram atos de desagravo á figura de Bolívar e o ex-presidente da Assembleia
Nacional, Diosdado Cabello aventou a possibilidade de mesmo que seja aprovada a
chamada lei de anistia não seja cumprida.
Na televisão, Maduro, convocou o
povo chavista a ir buscar aqueles que ficaram em casa nas últimas eleições e
chamou para este mês de janeiro a realização de um Congresso da Pátria
destinado a retificar o processo revolucionário, ouvindo todas as vozes de todos
os lutadores sociais. E nisto parece residir o x da questão. Nenhum país da
América Latina onde se elegeram presidentes na onda antineoliberal avançou
tanto no empoderamento popular quanto a Venezuela. A instalação do poder
comunal em diversas administrações locais, rádios e tvs comunitárias, círculos
bolivarianos, centenas de iniciativas de formação, organização e participação
foram estimuladas e desenvolvidas em dezessete anos de Revolução Bolivariana,
porém, não são poucas as críticas ao verticalismo do Partido Socialista
Unificado da Venezuela (criado por Chavez para unificar e institucionalizar a
ação revolucionária ) , ao mandonismo e a demonização de críticos no interior
do partido. Não é à toa que retificação é uma palavra que surge em todas as bocas.
Da profundidade deste processo renovador, de sua capacidade de combater a
corrupção interna e corrigir a autossuficiência do governo (que continua a
cometer erros graves no terreno da luta política, como demonstram os enormes
murais exaltando a Venezuela Potencia! por cima das longas filas por alimentos)
e principalmente de sua capacidade de animar e mobilizar o povo chavista –
ainda saudoso do seu Comandante- a sair às ruas para convencer a maior parte da
população de que os problemas econômicos possuem uma raiz política e que podem
ser superados no interior da via democrática e popular reside a possibilidade
do governo ganhar um folego para seguir adiante travando a batalha.
No entanto a grande questão e em
última instancia a decisiva é a do horizonte da revolução. Dezessete anos
depois da primeira eleição de Chávez, a revolução bolivariana precisa ser
relançada, necessita de um programa que atualize seus objetivos, apresente
claramente como será alcançada a diversidade produtiva, libertando o país da
dependência absoluta do petróleo e como a reforma agrária será capaz de
alcançar a tão sonhada soberania alimentar. Estes dois objetivos foram
apontados por Chávez ao definir o Socialismo do século XXI como o porto de
chegada da Revolução Bolivariana. A partir daí foram realizadas estatizações,
se investiu em infra-estrutura e foi lançada uma reforma agrária que enfrentou
grande resistência dos latifundiários tendo até agora custado a vida de
duzentos camponeses , segundo dados oficiais. Nas cidades e nas estradas
abundam painéis exaltando a “construção da pátria socialista” e nas lojas e
supermercados produtos fabricados por empresas estatais trazem um selo com os
dizeres “ feito no socialismo”.
Apesar de todo esforço, a
Venezuela continua escrava do petróleo, não consegue produzir alimentos
suficientes para alimentar seu povo e o socialismo é uma vaga e difusa ideia a
espera de sua concretização. Apresentar um programa que seja capaz de mostrar
par a população como os objetivos estratégicos serão alcançados, o caminho a
ser percorrido, as dificuldades que serão encontradas e portanto prepare o povo
para os inevitáveis enfrentamentos parece ser uma necessidade inadiável.
De agora em diante os
desdobramentos da conjuntura política da Venezuela terão que ser acompanhados
diariamente por todos aqueles que reconhecem, valoram e se solidarizam com um
processo que em muito ajudou colocar a luta dos povos latino-americanos num
patamar superior. Ainda que o Alto Comando da Força Armada Nacional Bolivariana
tenha dados provas de coesão e fidelidade ao ideário chavista setores da
direita venezuelana possuem um DNA golpista e sonham com uma intervenção
imperialista. A disputa entre os poderes executivo e legislativo assume agora o
centro da luta política. A sorte está lançada.
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