quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

O austericídio, versão 2.0 de 2016

Roberto Stuckert Filho/PR
Pressionado pelo discurso da direita, o governo se rende à narrativa liberal e abandona a pauta de introdução de novos impostos que taxem os mais ricos.

Paulo Kliass // www.cartamaior.com.br

Muita expectativa foi gerada na sociedade brasileira com a virada do ano e a saída de Joaquim Levy do comando da área econômica da equipe de Dilma. A passagem do diretor de um dos maiores bancos privados pelo governo foi realmente desastrosa. Durante os 12 meses em que atuou com carta branca para implementar sua visão a respeito da crise e dos caminhos para sua superação, o Brasil só fez se afundar ainda mais na recessão e no desemprego.
Como era de se esperar, um representante dos interesses do financismo no interior do núcleo duro da equipe governamental não poderia mesmo colaborar para uma solução progressista para o imbroglio que o País atravessa. O mantra da ortodoxia conservadora permanece sendo repetido ad nauseam pelos meios de comunicação: qualquer solução para as dificuldades que a economia brasileira atravessa atualmente passa pela manutenção do tripé da política econômica. Sim, aquela mesma cilada que vem sendo mantida desde a edição do plano Real em 1994.


De acordo com essa leitura, um dos aspectos essenciais do sucesso macroeconômico é manter o combate firme e forte contra a inflação por meio da elevação da taxa de juros oficial, a SELIC. Além disso, o governo deve se comprometer até o pescoço com a necessidade de geração de superávit primário por períodos sucessivos. Por outro lado, é necessário manter todas as condições de atratividade da economia brasileira para o ingresso de recursos estrangeiros em condições facilitadas, de forma a manter o grau de internacionalização de nossa sociedade. Ausência de controle de capitais especulativos externos, privatização de bens públicos e outras benesses ao capital são muito bem vindas.

2015: o fracasso anunciado do austericídio de Levy

O cenário tornou-se claramente mais agravado em 2015, em razão das decisões equivocadas tomadas nos 2 anos anteriores e que apenas retardaram o surgimento de dificuldades graves no equilíbrio fiscal. No entanto, a insistência de Levy em buscar a trilha dos cortes indiscriminados no orçamento para assegurar a geração de superávit primário contribuiu para tornar ainda mais dramática a trajetória, que já estava em curso, de diminuição do ritmo das atividades econômicas.

Os juros oficiais aumentaram mais de 2 pontos percentuais ao longo do ano passado e nem por isso a medida foi eficiente para reduzir a inflação. Como o diagnóstico da subida dos preços estava equivocado, a solução não passava pela contenção da demanda para fazê-los baixar. Entre janeiro e dezembro de 2015, a inflação anual subiu de 7% para quase 11%. Paralelamente a essa orientação contracionista, o governo levou a cabo uma estratégia de redução de despesas em áreas sociais estratégicas e nos investimentos públicos. A única rubrica que, pelo contrário, teve elevação de gastos foi aquela relacionada ao pagamento de juros da dívida pública. No mesmo período, foram dispendidos R$ 501 bilhões, um valor equivalente a 9% do PIB.

A incapacidade de tal abordagem em promover a recuperação da atividade econômica e abrir espaço para a retomada da agenda do desenvolvimento parece ter levado a Presidenta à substituição do titular da Fazenda. Porém, as primeiras medidas anunciadas desde o início de 2016 vêm frustrando, de forma sistemática, todos aqueles que propúnhamos mudanças significativas na rota do desastre. Na verdade, o que vendo sendo apresentado aos atores é uma recauchutagem da política fracassada de Levy.

2016: austericídio recauchutado.

A versão oficial da política econômica continua baseada na leitura de que a política monetária dura e implacável é o único instrumento para contenção da inflação, ainda que as causas da alta dos preços não estejam vinculadas a nenhum excesso de demanda agregada em relação à oferta agregada. Muito pelo contrário, o desemprego já superou a casa dos 10%, as falências se multiplicam a cada dia e os salários têm sofrido sucessivas perdas reais.

A renovada insistência em bater na tecla da necessidade de reduzir despesas para alcançar o equilíbrio fiscal mascara o fato de que a maior conta provocadora de déficit público continua sendo aquela associada ao pagamento de juros da dívida pública. Porém, com a retórica ainda presa à armadilha do superávit primário, as despesas financeiras não são levadas em conta e a equipe de Dilma continua cortando e contingenciando onde não deve.

Pressionado pelo discurso ideológico da direita contra o suposto peso excessivo do Estado na economia, o governo se rende à narrativa liberal extremada e abandona a pauta de introdução de novos impostos para recompor uma estrutura tributária que seja marcada por um mínimo de progressividade. Por outro lado, avança surpreendentemente na pauta do financismo, aceitando a ideia equivocada de estabelecer limites ao crescimento das despesas públicas - sempre ignorando os aumentos das rubricas financeiras.

Parece que o Brasil teima em seguir contra a maré. No momento atual, importantes instituições multilaterais do sistema das Nações Unidas – a exemplo da Agência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD) e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – sugerem a seus países membros a retomada dos gastos públicos como mecanismo para a retomada do crescimento da economia. E nós seguimos insistindo no cumprimento de um dever de casa que não nos cabe, exigido apenas pelo cartel do mundo da finança.

A novidade mais perversa dessa versão 2.0 do austericídio pode ser identificada na maldosa insistência atribuída à reforma da previdência social, sempre apresentada por alguns representantes do governo como uma espécie de panaceia para todos os males de que a nossa economia padece atualmente. Ao insistir na divulgação de informações distorcidas a respeito da verdadeira situação econômico-financeira do regime Geral da Previdência Social (RGPS), certos membros da equipe de Dilma contribuem para reforçar o quadro maldosamente catastrofista.

Recuperar a via do desenvolvimento.

Os especialistas não se cansam de repetir que não há nenhum tipo de déficit estrutural no regime previdenciário. Pelo contrário, o modelo tem se apresentado de forma superavitária até o momento. Há variações conjunturais, é claro, em razão da recessão e do desemprego, pois a queda nas contribuições provoca mesmo uma diminuição nas receitas do sistema. As mudanças necessárias guardam relação com transformações de longo prazo, de natureza geracional, associadas a novos padrões demográficos e da própria estrutura do mercado de trabalho.

No entanto, nada tão emergencial que justifique usar o momento de crise social aguda para provocar ainda mais perdas nos direitos dos trabalhadores e aposentados. Ao insistir com a pauta, o governo arrisca se indispor com a grande maioria da população brasileira e com a sua própria base política e social. Além de estar prestando um grande desserviço à causa democrática, republicana e cidadã, ao comprar e difundir a versão do financismo a respeito da iminência catastrofista da crise previdenciária. Na verdade, esse é o caldo de cultura para bombardear ainda mais a nossa previdência social e abrir o caminho para que os ensaios de privatização contem com alguma base de apoio social.

O governo deve romper urgentemente com essa versão maquiada do austericídio da era Levy e incorporar para sua agenda as inúmeras propostas de retomada do desenvolvimento. Isso significa promover uma redução da SELIC e dos spreads praticados pelos bancos públicos e privados. Isso significa reorientar a política fiscal para estimular os gastos públicos portadores de crescimento e recuperadores do emprego. Isso significa redefinir a política norteadora do Banco Central, que deveria incorporar também metas de emprego em sua definição da política monetária. Isso significa trazer o sistema financeiro a oferecer também sua parcela de contribuição ao sacrifício que toda a sociedade está sendo obrigada a fazer para a superação da crise.


* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

 Créditos da foto: Roberto Stuckert Filho/PR

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