Os governos do PT cometeram um
erro que pode ser fatal: achar que o processo de mudança da paisagem social que
promoveram poderia passar sem conflitos.
Flavio Aguiar, de Berlim // www.cartamaior.com.br
Vivemos tempos de intolerância em
alta, egos em estado de exaltação e simultânea exaustão, consumismo desenfreado
de auto-imagens nas redes virtuais, que muitas vezes nada têm de sociais.
Antigamente havia a máxima “diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és”. Hoje a
equação mudou de rumo: vale o “digo-te o que consumo e vais saber quem eu sou”.
E na sociedade brasileira isto se multiplicou nos espaços de uma classe
burguesa em que muitos gostam de se pensar como vivendo dentro de um
supermercado de luxo na Europa ou em Miami, Nova Iorque, tanto faz. Também se
multiplicou nos espaços de uma classe média onde muitos gostam de se ver como
desfrutando de privilégios semelhantes aos dos mais ricos.
Esta é uma das razões da crise
social que está na base, no bastidor, no porão e no sótão das atuais histerias
políticas e econômicas que a velha mídia gosta de alimentar falando da “crise”.
Com os aumentos do salário mínimo, a elevação do padrão de vida daqueles a quem
o saudoso Florestan Fernandes chamava “os de baixo”, muita gente do andar de
cima e do andar intermédio sentiu, além de ter perdido parte do seus poder
aquisitivo do trabalho alheio, a perda de status social. Estes não suportam ter
agora de disputar espaço no shopping center, no aeroporto, na rua, na universidade,
no elevador social e na escada rolante com aqueles que antes olhavam de cima.
Os governos do PT podem ter
cometido outros erros, mas cometeram este, de base, que pode ser fatal: achar
que o processo de mudança da paisagem social que promoveram poderia passar
batido, sem conflitos, sem ódios desatados, sem ressentimentos.
Na América Latina, e o Brasil não
é exceção, sempre que uma crise social se apresenta, há a tendência de
resolve-la com recursos ao autoritarismo seletivo, seja por onde for. Foi assim
em 45, quando Getúlio foi derrubado não por seu autoritarismo, mas por seu
“populismo”, foi derrubado pela direita e não pela esquerda. Foi suicidado em
54 pelo mesmo motivo, com o famoso manifesto dos coronéis reclamando do quanto
os operários estavam ganhando. Foi assim em 64 também, com a ameaça das
reformas de base.
Por que seria diferente agora? A
diferença é que, como os militares não estão mais disponíveis para golpes, tenta-se o golpe por outros meios, além da
mídia golpista: o judiciário e o aparelho policial.
Este aparato golpista faz de tudo
para inverter o que se poderia chamar de “a narrativa Brasil”, a narrativa de
um país que hoje serve de exemplo ao mundo inteiro em termos de políticas
sociais de combate à miséria, à pobreza e à exclusão.
Como vivemos em tempos de
individualismo feroz, os protagonistas deste golpe capitalizam o narcisismo
como arma, dispondo-se a produzir as manchetes mais espetaculares a cada dia e
assim tornarem-se os “heróis” deste ressentimento dos que não aguentam que
pobres ou ex-pobres não tenham mais de mendigar salários ao invés de exercer
direitos, não aguentam a ideia de que ex-pobres tenham descoberto que têm
direito a ter direitos, que é o direito-base de todos os outros.
Tais personagens - juízes,
procuradores, um ou outro policial, protagonizam um narcisismo grotesco,
preferindo o vigor das manchetes ao rigor da profissão que deveriam abraçar.
São movidos por uma paródia grosseira da frase da rainha de Branca de Neve:
“diga-me jornal meu, haverá alguém hoje mais famoso do que eu?” E assim se
transformam nas bruxas caçadoras de inocentes e culpados indiscriminadamente,
fabricando seus culpados antes mesmo que estes tenham a chance de se defender.
Mas a desconstrução da narrativa
Brasil atinge muito mais gente. Por exemplo, intelectuais, escritores, artistas
que se movem pelo mesmo gesto de pequenos narcisos. Tornaram-se frequentes
agora as “metáforas do exagero” para descrever o Brasil. Recentemente fomos
brindados aqui na Alemanha por um escritor em ascensão no mercado brasileiro,
com frases bombásticas e vazias do tipo "O Brasil é um país xenófobo,
homofóbico, racista, corrupto, etc.", numa retórica que nada diz porque
dilui as acusações em generalidades sem rumo.
Chegou a afirmar que os
escritores brasileiros não se interessam por política, só escrevem para uma
elite (os saraus da periferia de São Paulo e de outras cidades não existem…) e
que ele, o escritor em questão, consegue ser ouvido só porque foi convidado
para falar na Alemanha. É um modo solerte, mas desconchavado, de auto-promoção:
venho de um país de borra (para não dizer coisa pior), mas vejam como eu sou
bacana… Li entrevista de outro escritor na mesma situação de estar ascendendo
no mercado, no mesmo diapasão, esta dada aí mesmo no Brasil. Li igualmente
entrevista de renomado cientista que trabalha no Brasil com pérolas do tipo “o
brasileiro é muito ignorante”… “fazer pesquisa de ponta aqui é mais difícil do
que no resto do mundo”… Gostaria de saber que “mundo” é este a que o cientista
se referia: provavelmente inclui apenas chamado “circuito Elizabeth Arden” da
diplomacia brasileira, Nova Iorque, Londres, Paris… O resto não existe.
Não sei onde dará esta crise. Mas
sei para onde vai este narcisismo desenfreado. Vai acabar numa tremenda duma
ressaca, que não haverá Engov que cure.
Créditos da foto: Ricardo
Stuckert/PR
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