quinta-feira, 3 de março de 2016

DEPENDÊNCIA DAS MATÉRIAS-PRIMAS PERSISTE - Quando os empresários se fazem de surdos


“Quando os Estados Unidos espirram, a América Latina fica resfriada”, costumava-se dizer. Os miasmas já não descem do Norte: eles cruzam o Pacífico. Mas a ameaça continua. Na década de 1950, Raúl Prebisch analisou os perigos dessa dependência em relação aos sobressaltos de economias estrangeiras: Reino Unido, Estados Unidos

por Renaud Lambert // http://www.diplomatique.org.br/

Desde o período colonial, a divisão internacional do trabalho relegou a América Latina ao nível de produtora de matéria-prima, condenada a importar os produtos manufaturados que deixam as fábricas do Norte. Em ex-colônias onde a burguesia aprendeu a reproduzir os padrões de consumo do Norte, qualquer aumento da renda nacional leva ao crescimento mais rápido das importações que das exportações, desequilibrando a balança de pagamentos. Assim, o economista argentino Raúl Prebisch recomendava uma política voluntária de substituição das importações, para desenvolver a indústria local.

No Brasil, a terapia de choque do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) deu um passo atrás: não se tratava mais de promover o desenvolvimento autônomo por meio da produção local, mas, ao contrário, de facilitar as importações, que deveriam estimular a produtividade e a competitividade brasileiras. A balança comercial entrou no vermelho? Sem problema: equilibramos as contas externas seduzindo o capital especulativo internacional, sobretudo por meio de taxas de juros estratosféricas.

O preço das matérias-primas caiu 40% desde 2010; o do petróleo, 60% entre junho de 2014 e janeiro de 2015. Implacável, a reação em cadeia não demorou a chegar: em 2015, o crescimento deverá estagnar no Equador e na Argentina, recuar 3% no Brasil e despencar 10% na Venezuela.

As nuvens não param de se acumular sobre Brasília. Preocupados com os boletins de saúde mitigados das economias “emergentes”, os investidores repatriam seu dinheiro para o Norte. Especialmente desde que o Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos, falou em aumentar sua taxa de juros, base com a qual remunera o capital. Os 14,25% servidos pelo Brasil (dos quais se deve cortar uma inflação de cerca de 7%) não bastam para garantir um afluxo suficiente de divisas. De acordo com o Instituto de Finanças Internacionais, os países emergentes vão registrar em 2015 a maior saída de capital desde que foi inventada a noção de “emergência”, nos anos 1980 (Financial Times, 2 out. 2015). Entre os países mais afetados, está o Brasil. Enquanto alguns celebram há anos a “dissociação” do Sul em relação às economias do Norte, o equilíbrio da balança das contas externas do gigante sul-americano assenta em grande parte na decisão de uma norte-americana: Janet Yellen, presidenta do Federal Reserve.

Cientes do mecanismo analisado por Prebisch, os governos progressistas têm buscado reequilibrar suas economias, estimulando o setor industrial. Com ainda mais entusiasmo quando se sabe que a maioria de seus líderes retoma uma ideia desenvolvida pelo movimento comunista: em nações subdesenvolvidas, a revolução visa, em um primeiro momento, à emergência de uma burguesia nacional; apenas após essa primeira etapa “anti-imperialista” é que seria possível trabalhar pela revolução socialista.

Jogar uma parte do patronato contra a outra: a ideia pode parecer atraente. Mas a modernização capitalista realmente atrapalha o capital? Interessado no caso venezuelano, o estudioso libertário Rafael Uzcátegui, hostil à Revolução Bolivariana, sugere que outra forma de instrumentalização estaria em curso: “Nossa suposição é a de que a chegada ao poder, na Venezuela, de um presidente populista, carismático, lembrando um caudilho, possibilita o ajuste do país [...] para as mudanças exigidas pelo processo de produção globalizada”.1

O raciocínio de Uzcátegui revela-se mais intrigante à medida que os esforços para estimular a indústria fracassam. Depois de sofrer um golpe orquestrado – entre outros – pelo patrão dos patrões venezuelanos em 2002, depois um locaute generalizado em 2003, o ex-presidente Hugo Chávez reuniu mais de quinhentos empresários, em 11 de junho de 2008, para propor um esforço nacional de “recuperação produtiva”. Em um discurso de reconciliação, ele repetiu a palavra “aliança” mais de trinta vezes. Cinco anos mais tarde, as coisas não tinham avançado nada. E seu sucessor, Nicolas Maduro, renovou a iniciativa: “Lançamos um apelo [...] para construir um setor privado nacionalista”, declarou à imprensa (Folha de S.Paulo, 7 abr. 2013).

Um pouco mais ao sul, os esforços da presidenta brasileira, Dilma Rousseff, para agradar a indústria espantam até a liberalíssima revista Veja: “A presidente fez tudo o que os empresários exigiram”, constata o editorial da publicação, em uma edição cuja capa fala em “choque de capitalismo” (12 dez. 2012). “Eles queriam que as taxas de juros baixassem? Elas caíram a níveis recordes. Queriam taxas de câmbio favoráveis à exportação? O dólar ultrapassou 2 reais. Exigiam menores custos salariais? Estes foram reduzidos em vários setores.”

Confronto inevitável

Mesmo assim, nem a produção industrial nem o investimento privado aumentaram. Membro do PT, Valter Pomar não se surpreende: “Os empresários enfrentam uma dificuldade real: eles são capitalistas. Não seria responsável de sua parte escolher um caminho diferente daquele que otimiza a rentabilidade”. No Brasil, como em outros lugares, a financeirização da economia apagou a distinção entre o capital industrial e o especulativo. Apostar em produtos financeiros (no Brasil) ou jogar com a taxa de câmbio (na Venezuela) é muito mais rentável do que investir no aparelho produtivo...

“Há muitas maneiras de aumentar a demanda”, conclui o jornalista Breno Altman. “Podemos introduzir um salário mínimo, programas sociais, desenvolver serviços públicos. Aumentar a oferta, ao contrário, está provando ser uma verdadeira dor de cabeça. Nessa área, os governos dependem da sabedoria dos empresários.” Pomar chega à mesma conclusão: “Ou o Estado assume a liderança e aceita o confronto com a burguesia, ou tenta convencê-la a entrar no jogo, sem garantia de que ela vá aceitar”.

Renaud Lambert é jornalista.



1 Rafael Uzcátegui, Venezuela: révolution ou spectacle? [Venezuela: revolução ou espetáculo?], Spartacus, Les Lilas, 2011.

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