sábado, 2 de julho de 2016

Adeus a tudo: por que o Reino Unido deixou a União Européia

As coisas irão mudar. Drasticamente. Não terão mais 'direitos de passaporte', com os quais os bancos podem vender produtos para todos os 28 membros da UE.

Pepe Escobar, Counter Punch // www.cartamaior.com.br

O que começou como uma aposta de David Cameron sobre uma saída ao descontentamento interno britânico, para ser usado como uma alavanca para barganhar com Bruxelas por mais alguns favorecimentos, se transformou em um terremoto político sobre a desintegração da União Européia.

O medíocre irrepreensível Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, posando como um “historiador”, já havia avisado o Brexit, “pode ser o início da destruição não somente da UE mas da civilização política ocidental por completo”.
Isso é estúpido. Brexit provou que é a imigração, seu estúpido. E mais uma vez, é a economia, seu estúpido (mesmo que o establishment neoliberal britânico nunca tenha dado atenção). Mas apostas sérias podem ser feitas que o sistema da UE não irá aprender com a terapia de choque - e não irá se reformar. Haverá racionalizações que o Reino Unido, classicamente chorão, sempre obstruía, demandando privilégios especiais quando lidava com a UE. Quanto à “civilização política ocidental”, o que irá terminar – e isso é uma grande coisa – é a relação especial transatlântica entre os EUA e a UE com a Grã-Bretanha como um cavalo de Tróia norte-americano.

Então é claro que tudo isso vai além de uma mera combinação entre um Cameron mal calculado sem esperança e um Boris Johnson bobo da corte ambicioso - um Donald Trump com melhor vocabulário e padrões de fala.


A Escócia, previsivelmente, votou pela permanência, e pode realizar um novo referendo – e deixar o Reino Unido – ao invés de ser arrastada pelos votos da classe trabalhadora branca inglesa. Sinn Fein já quer uma votação pela Irlanda unida. A Dinamarca, Holanda e até a Polônia e a Hungria irão querer status especial dentro da UE, ou mais. Ao longo da Europa, o carimbo da extrema direita está funcionando. Marine Le Pen quer um referendo francês. Geert Wilders quer um referendo holandês. Quanto à vasta maioria dos britânicos abaixo de 25 anos que votaram pela permanência, podem estar contemplando passagens de ida não ao continente, mas além. 



Mostre-me o povo 



O historiador anglo-francês, Robert Tombs, ressaltou que quando os europeus falam sobre história eles se referem ao Império Romano, o Renascimento e o Iluminismo. A Grã-Bretanha é de alguma forma negligenciada. Em reciprocidade, alguns britânicos ainda consideram a Europa como uma entidade que deveria ficar mantida a uma distância segura. 

Para compor o problema, essa não é uma “Europa de pessoas”. Bruxelas absolutamente detesta a opinião publica européia, e o sistema exibe uma resistência de ferro à reforma. Esse projeto atual da UE que mira ultimamente em uma federação, modelada nos EUA, não dá certo na Grã-Bretanha. Possivelmente essa é uma das principais razões por trás do Brexit – que por sua parte dá desuniu o reino e pode eventualmente desvalorizá-lo para um pequeno posto de comércio nos limites da Europa. 

Faltando um “povo europeu”, o sistema de Bruxelas não poderia ser nada senão uma burocracia kafkaniana não eleita. Além do mais, os representantes dessa Europa sem povo em Bruxelas defendem na realidade o que eles consideram ser de interesse nacional, e não do interesse europeu. 

O Brexit, no entanto, não significa que a Grã-Bretanha será livre das ordens da Comissão Européia (EC). A EC propõe políticas, mas nada pode ser seguido sem decisões do Parlamento Europeu e do Conselho de Ministros, que agrupam representantes de todos os governos eleitos dos estados membros. 

A permanência, no melhor caso possível, teria levado a um exame de consciência em Bruxelas, e a um alerta, traduzido em uma política monetária mais flexível; uma pressão para conter a imigração dentro das fronteiras africanas; e mais abertura com a Rússia. O Reino Unido permaneceria na Europa dando mais peso à países fora da zona do euro enquanto a Alemanha iria se concentrar na zona do euro de 19 nações.

Então, a permanência, teria levado o Reino Unido a aumentar seu peso político-econômico em Bruxelas enquanto a Alemanha seria mais aberta para moderar o crescimento (ao invés da austeridade). No entanto, a Grã-Bretanha iria possivelmente estremecer frente à noção de um futuro ministro da Fazenda da zona do euro, um FBI europeu e um ministro das Relações Interiores europeu, de fato toda a noção de uma união monetária e econômica completa. 

Isso é tudo água debaixo da ponte agora. Adicionalmente, não esqueça do drama do mercado único.

O Reino Unido não somente irá perder acesso isento de impostos ao mercado único da UE de 500 milhões de pessoas; terá que renegociar todos os acordos de comércio com o resto do mundo já que todos eles têm negociado com a UE. O ministro da economia francesa e esperança para a presidência, Emmanuel Macron, já alertou que, “se o Reino Unido quer um tratado de acesso comercial ao mercado europeu, os britânicos devem contribuir ao orçamento europeu como os noruegueses e os suíços. Se Londres não quer isso, então deve ser uma saída total”. A Grã-Bretanha será excluída do mercado único – para onde vai 50% de suas exportações – a não ser que pague quase tudo que já paga atualmente. Alem do mais, Londres ainda deve aceitar liberdade de movimento, como a imigração européia. 

A cidade conseguiu um olho roxo 

O Brexit derrotou uma gama espantosa do que o Zygmunt Bauman definiu como as elites globais da modernidade liquida; a cidade de Londres, Wall Street, o FMI, o Fed, o Banco Central Europeu (ECB), grande fundos de investimento, todo o sistema global interconectado de bancos.

A cidade de Londres, presumivelmente, votou pela permanência por mais de 75%. $2.7 trilhões são comercializados todos os dias, o que emprega quase 400.000 de pessoas. E não é somente isso, a cidade agora inclui Canary Wharf (sede de alguns grandes bancos) e Mayfair (espaço privilegiado de fundos de investimentos).

A cidade de Londres – a capital financeira incontestada da Europa – também gerencia gritantes $1.65 trilhões de bens de clientes, riqueza de todos os cantos do planeta. No livro Ilhas do Tesouro, Nicholas Shaxson argumenta, “companhias de serviços financeiros foram para Londres porque permite que eles façam o que não podem fazer em casa”.

Desregulação desenfreada combinada com influência incomparável no sistema de economia global se une em uma mistura tóxica. Então o Brexit pode também ser interpretado como um voto contra a corrupção que permeia a indústria mais lucrativa da Inglaterra.

As coisas irão mudar. Drasticamente. Não terão mais “direitos de passaporte”, com os quais os bancos podem vender produtos para todos os 28 membros da UE, acessando uma economia integrada de $19 trilhões. Tudo o que é necessário é uma sede em Londres e alguns mini-escritórios via satélite. Terão muitas negociações sobre os “direitos de passaporte”, bem como sobre o que acontece com os pregões de Londres dominados pelo euro.

Eu segui o Brexit de Hong Kong – que, 19 anos atrás teve seu próprio Brexit, dando adeus ao Império Britânico para se juntar à China. Pequim está preocupado que Brexit será traduzido em fluxo de capital, “pressão de depreciação” no yen, e interferência do gerenciamento de política monetário do Banco da China.

O Brexit poderia até afetar as relações China-UE, enquanto Pequim em tese pode perder influência em Bruxelas sem o apoio britânico. É crucial lembrar que a Grã-Bretanha apoiou um pacto de investimento entre a China e a UE e um estudo de viabilidade conjunta sobre acordos de livre-comércio China-UE.

He Weiwen, co-diretor do Centro de Estudo China-EUA-UE da Associação de Comércio Internacional da China, parte do ministério do Comércio, é cego; “é provável que a União Européia adote uma aproximação mais protecionista ao lidar com a China. Para as companhias chinesas que têm sedes ou filiais no Reino Unido, podem não ser capazes de aproveitar o acesso sem tarifas ao mercado europeu depois de a Grã-Bretanha sair da UE”.

Isso se aplica, por exemplo, às companhias chinesas líderes de alta tecnologia como Huawei e Tencent. Entre 2000 e 2015, a Grã-Bretanha era o principal destino europeu para o investimento chinês direto, e foi o segundo maior parceiro comercial da China dentro da UE. 

Ainda assim, tudo pode reverter em uma vitória para a China. A Alemanha, França e Luxemburgo – todas competindo com Londres pelo negócio de yens além mar – iram aumentar sua participação. Chen Long, economista do Banco Dongguan, está confiante que o “continente europeu, especialmente países da Europa Central e do Leste, serão mais ativamente envolvidos nos programas ‘Um cinturão, Uma estrada’ da China”.

Então a Grã-Bretanha irá se tornar a nova Noruega? É possível. A Noruega se saiu muito bem depois de rejeitar ser membro da UE no referendo de 1995. Será uma estrada longa até o artigo 50 ser invocado e ser iniciada uma negociação de dois anos entre o Reino Unido e a UE. O ex chanceler do Exchequer Alistair Darling resumiu tudo, “ninguém sabe o que significa essa ‘saída’”. 

Créditos da foto: reprodução

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