sábado, 1 de abril de 2017

A quem cabe definir o que é “atividade jornalística”?



O caso do blogueiro Eduardo Guimarães, conduzido coercitivamente por ordem do juiz Sérgio Moro para depor na Polícia Federal de São Paulo com a finalidade de revelar sua fonte das informações sobre a condução coercitiva de Lula (divulgadas em seu Blog da Cidadania em 2016) reacenderam uma discussão: a quem cabe definir o que é “atividade jornalística” – e com isso, garantir as prerrogativas e deveres inerentes a quem a exercer? [1]

Historicamente, é bastante usual que regimes e contextos não democráticos restrinjam a liberdade de expressão e de imprensa – e, claro, no Brasil não seria diferente. Esse é o tema da coluna de hoje, em que retomamos a série A herança legal das ditaduras: nossas cicatrizes jurídicas (confira aqui os outros textos da série, como o texto de abertura, o Código Penal de 1940, o Código de Processo Penal e Lei de Contravenções Penais). Hoje falaremos da Lei de Imprensa (5250/1967), regulamentada pelo Decreto-Lei 972/1969, e que foi aplicada até 2009, quando foi considerada pelo Supremo Tribunal Federal como não recepcionada pela Constituição de 1988 [2].

Vale lembrar o contexto político vivido no país de então: o golpe militar de 1964 instauraria a mais recente e duradoura ditadura brasileira. Em 1967 o Congresso foi impelido a aprovar um novo texto constitucional na tentativa de conferir alguma aparência de legitimidade ao regime, mas eram os Atos Institucionais editados pelos generais que tomaram o governo que ditariam as regras do jogo, suprimindo direitos políticos, cassando políticos de oposição, extinguindo partidos e determinando eleições indiretas, além de violarem gravemente as liberdades civis, com torturas, prisões arbitrárias, desaparecimentos forçados e censura prévia. Em dezembro de 1968, o regime autoritário chega ao seu ápice com o AI 5, que fechou o Congresso, suspendeu garantias constitucionais e deu poder ao executivo para legislar sobre todos os assuntos.

Antes da Lei 5250/1967, a liberdade de expressão e pensamento pela imprensa foi regulada pelo Decreto-Lei 24776/1934 e pela Lei 2083/1953, ambos textos produzidos durante governos de Getúlio Vargas (o primeiro, após o golpe de 1930, e o segundo, em seu mandato por eleição em 1950), que não ficou famoso por seu, digamos, apreço pela democracia e pelas liberdades civis.

A Lei de Imprensa dos militares, publicada em fevereiro de 1967, em grande medida reproduziu o texto de 1953 já existente (como, aliás, consta de sua exposição de motivos). Entre outros pontos, definia o conceito legal de empresas jornalísticas (artigo 3º, § 4º) e estabelecia crimes praticados no exercício do jornalismo, tais como fazer propaganda de processos para subversão da ordem política e social (agregada à de guerra, ou de preconceito de raça ou classe, no artigo 14), ou de ofender a moral pública e os bons costumes (artigo 17), além dos tradicionais tipos da calúnia, difamação e injúria pela via da imprensa (artigos 20, 21 e 22).

Como mencionei, nada disso em muito diferia das normas postas por Getúlio Vargas. O problema se agravou, contudo, após a já mencionada edição do AI 5, quando as liberdades civis foram seriamente restringidas, abrindo ainda mais espaço para que o regime militar violasse direitos humanos. Nesse contexto foi editado o Decreto-Lei 972/1969, que passava a regular a profissão de jornalista. O texto do decreto anunciava em seu artigo 1º ser livre o exercício da profissão de jornalista, para, na sequência, colocar a ressalva: “aos que satisfizerem as condições estabelecidas neste Decreto-Lei.“

E seguem a partir daí as restrições: é o Decreto que define quais são atividades consideradas jornalísticas e estabelece a exigência de formação em curso superior específico para exercê-la – o que já dá uma boa ideia de quantas pessoas ficaram impedidas de continuar exercer a atividade jornalística a partir dessa vedação.

A Lei de Imprensa e o decreto regulador da profissão de jornalista expedidos durante a ditadura militar fornecem bons elementos para pensarmos a manifestação da liberdade de pensamento pela via da imprensa: deve haver limites para o seu exercício? Quais são esses limites? E, mais importante: a quem incumbe defini-los?

No acórdão proferido na ADPF 130, que julgou a Lei de Imprensa não recepcionada pela Constituição, fala-se em “mútua causalidade” entre imprensa e democracia. E é verdade: o propósito da atividade jornalística é (ao menos em tese) oferecer às cidadãs e cidadãos um canal de informação diverso dos meios oficiais, fomentando o debate e o pensamento crítico e mantendo o compromisso com a verdade dos fatos e com a diversidade de narrativas.

É por meio do acesso a várias informações e pontos de vista que se exercita a construção do pensamento autônomo, o poder de crítica e a livre expressão de ambos, tão indispensáveis à participação na vida pública, seja como cidadão ou na função de governante. A mesma decisão do STF afirma, ainda, que essa liberdade não tem qualquer restrição condicionada ao suporte físico ou tecnológico (o que, evidentemente, se aplica à atividade exercida pela internet).

Não restam dúvidas, portanto, de que se trata de liberdade fundamental. Deve haver limites? É claro! Como ocorre com qualquer das outras liberdades fundamentais, a liberdade de manifestação do pensamento pela imprensa é limitada para que não fira o direito de terceiros. Sempre vale a pena lembrar o clássico – e grave – caso da Escola Base (separe 50 minutos para assistir à reportagem feita pela TV Brasil em 2014, quando o caso completou 20 anos para termos a certeza do potencial lesivo do mau jornalismo). Por essa razão, é a própria Constituição quem estabelece suas balizas: proibição do anonimato, direito de resposta, indenização por danos materiais e morais proporcional ao agravo, responsabilidade penal quando a conduta corresponder a crime são os limites que o texto constitucional estabelece a essa liberdade civil fundamental.

Porém, a exemplo do que ocorria durante a ditadura militar, não pode o Estado estabelecer requisitos para que se exerça a atividade jornalística, sob o risco de relegarmos a quem detém o poder a capacidade de definir por norma jurídica quem disporá de prerrogativas para criticá-lo.

Mas há outro lado a considerar: como atuar nessa nova realidade trazida pelo advento da internet, com seus blogs e portais independentes de notícias, universo no qual cada um de nós com uma notícia na cabeça e um celular na mão se transforma a qualquer instante em repórter circunstancial? Estaremos vivendo a era de uma nova hashtag, #somostodosjornalistas

Caberia a um juiz em um determinado caso concreto definir quem é o “verdadeiro jornalista” como fez Sérgio Moro no caso mencionado no início do texto, ao afirmar em despacho que “o mero fato de alguém ser titular de um blog na internet não o transforma em jornalista automaticamente”? Ou o certo seria conferir aos próprios jornalistas o poder de legitimar seus colegas de profissão, como quis fazer Eliane Cantenhêde em sua conta no Twitter, na qual chamou Guimarães de “aventureiro”?

Novas realidades sociais fazem emergir novas questões, e a nós cabe debatê-las: parece-me que a definição da atividade profissional de jornalista tem sentido quando se fala em proteção remuneratória pela capacitação técnica, ou na validade da exigência feita por empresas jornalísticas de formação específica na área para contratação de funcionários.

Porém, somente terão direito de divulgar fatos e sua opinião a respeito os jornalistas profissionais (termo aqui empregado para designar aqueles que extraem sua subsistência de seu trabalho em empresa jornalística)? Continuaremos a depender exclusivamente das empresas da chamada “grande mídia” para ter acesso à informação? Não caberá aos leitores e ouvintes o ônus de discernir a boa da má informação (sendo que esta última, aliás, não é exclusividade de blogs ou da dita mídia independente…)?

Aos direitos à livre manifestação do pensamento pela imprensa e o sigilo de fonte correspondem os deveres de indenizar, de conceder direito de resposta e, se for o caso, de responder criminalmente. Parece-me o suficiente para que os limites a essa liberdade fundamental se mantenham no mínimo necessário – como deve ocorrer nos regimes democráticos, conhecidos por não ditarem quem pode e quem não pode criticar o poder.

Maíra ZapaterMaíra Zapater é Doutora em Direito pela USP e graduada em Ciências Sociais pela FFLCH-USP. É especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, Professora e pesquisadora. Autora do blog deunatv.



[1] Saiba mais sobre o caso nesta matéria publicada no Justificando e nesta outra, veiculada pelo site do El País.

[2] No bojo da ADPF 130.

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