domingo, 16 de abril de 2017

O capitalismo brasileiro está sob ataque?

Grandes corporações nacionais, públicas e privadas, vem enfrentando o que parece ser um cerco jurídico nacional e internacional

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     Foto: Hélio Campos Mello

Grandes corporações nacionais, públicas e privadas, vem enfrentando o que parece ser um cerco jurídico nacional e internacional, com óbvias implicações para a economia brasileira como um todo. A Petrobras, que vive sob um ataque interno e externo desde sua fundação, mas tinha conseguido se firmar como grande empresa em meio a esta adversidade, foi um dos primeiros alvos desta nova onda de investigações, e continua na berlinda. As grandes corporações privadas da engenharia brasileira, desde os anos 1980 players internacionais na área, viraram as vilãs da corrupção mundial.

O programa nuclear brasileiro, bem como seus projetos derivados, também foi arrochado em operações internacionais de espionagem e operações internas contra a corrupção, causando a prisão de um dos seus mais renomados cientistas-empreendedores, o almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva. Recentemente, a indústria da carne esteve no centro de um escândalo internacional, desencadeado por outra operação anticorrupção da Polícia Federal. Até a mídia tupiniquim, que gosta de operações policiais escandalosas e vazamentos seletivos, desta vez ficou do lado do agronegócio, menina-dos-olhos dos nossos arautos liberais. 

Ao que parece, a sanha moralista de juízes e policiais federais, com majoritário apoio da opinião pública, na sua luta contra a corrupção sistêmica (da esquerda) e seus aliados fisiológicos, provocou um resultado colateral: aumentou a crise do PIB e fez com que a economia brasileira perdesse espaço no mundo. 

Pululam nas redes várias “teorias da conspiração”, algumas delirantes, outras mais bem fundamentadas e comprovadas via wikileaks. Os juízes e procuradores seriam agentes da CIA infiltrados no Estado brasileiro? Dilma Rousseff caiu porque o Brasil iria se tornar uma potência mundial em aliança com os BRICS? Os Estados Unidos querem destruir as grandes corporações brasileiras para abrir o nosso mercado aos “seus” capitalistas?

Delírios à parte, não vejo uma manipulação centralizada de malignos gênios do mal em todo este imbróglio político e geopolítico em que nos metemos e fomos metidos. Mas é inegável que o cerco às empresas brasileiras está servindo a muitos interesses internos e externos, para além da épica e sempre bem vinda luta contra a corrupção. Trata-se, digamos, de uma janela de oportunidades para os tubarões do capitalismo agirem, aproveitando-se da política de condomínio-treme-treme que tomou conta do Brasil.

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Além das questões conjunturais deste tumultuado início de século XXI, o conflito entre o projeto desenvolvimentista brasileiro e o capitalismo internacional tem uma história longa, complexa e cheia de nuances, para além do simples embate maniqueísta entre “nacionalistas” e “entreguistas”. Penso que a origem desta querela está no final da década de 1930, quando se delineou um projeto de industrialização e afirmação econômica nacional capitaneado pelo Estado e por alguns atores políticos e econômicos internos, como o Exército e a burocracia federal varguista.

Antes disso, o Brasil era um grande fazendão de café, um parque agro-exportador, com indústrias leves aqui e a acolá. Claro, ninguém, a rigor, era contra a industrialização, só não havia uma política nacional coordenada, nem estratégias claras para que ela acontecesse em condições de atraso e subdesenvolvimento. Os termos de troca comerciais com os países industrializados eram desiguais e a política alfandegária pouco estimulava a indústria brasileira. A vocação agrícola do País era cantada e decantada pelos políticos empertigados da Primeira República, quase todos ligados organicamente ao fazendão. Já os coronéis dos grotões, também proprietários de terra e de gente, pouco se importavam com a economia nacional, desde que pudessem continuar mandando no município, indicando seus agregados para os cargos públicos e nomeando juízes e delegados para controlar a malta.

A moderna política externa brasileira, construída no início da República e consolidada pelo Barão do Rio Branco, se adaptou a esta realidade. Em meio à corrida imperialista do final do século XIX e início do XX, o Brasil confirmava sua vocação como exportador de matérias primas, “potência” regional sem maiores aspirações, subordinada à grande potência mundial em ascensão, os Estados Unidos. Obviamente, não se trata de uma historinha de vítimas e vilões, mas de negociações tanto complexas, quanto assimétricas, que não cabem neste artigo. 

Mas no meio desta Casa Grande feliz com a parte que lhe cabia no latifúndio mundial, por volta dos anos 1920, começaram a surgir vozes que defendiam a industrialização planejada e tutelada pelo Estado. Entre estas vozes, um punhado de líderes políticos de corte autoritário, como Getúlio Vargas, e militares que se sentiam os últimos defensores da pátria violada. Depois da chamada “Revolução de 1930”, este grupo tomou o poder, com ajuda de elites agrárias dissidentes, cansadas de sustentar o café paulista. Logo percebeu-se que não era tão simples modernizar a economia, sem modificar a estrutura da sociedade. E, neste sentido, os “revolucionários” de 1930 eram pouco revolucionários. Entre trancos e barrancos, o projeto industrializante começou a ser delineado ao melhor estilo varguista, ou seja, tentando agradar “gregos e troianos”, fazendeiros e industriais, operários e patrões, Alemanha Nazista e Estados Unidos, novas e velhas elites.

Este projeto de desenvolvimento industrial ganhou o debate nacional e se tornou política de Estado entre fins dos anos 1930 e meados dos anos 1950, opondo duas grandes forças na sociedade: os grandes comerciantes importadores-exportadores e setores da burocracia federal – civil e militar – capitaneada pelo varguismo, com apoio de alguns grandes industriais. Os dois grupos tinham concepções diferenciadas sobre o processo de industrialização e o papel do Estado na economia. Para os grandes grupos comerciantes e agro-exportadores, encastelados no discurso liberal, a industrialização deveria ocorrer “naturalmente”, sem estímulos cambiais e fechamento de mercado. Para os desenvolvimentistas, era necessário estímulo do Estado, planejamento e alguma intervenção na economia. Este debate sobre a melhor política econômica para o Brasil acabou se conectando a um outro grande debate nacional: qual era, afinal, o lugar do Brasil no mundo? 

Os militares, a partir de meados dos anos 1940, tinham uma posição paradoxal. Eram grandes inimigos da política de massas varguista, que julgavam uma porta aberta para a subversão da ordem social, mas, no geral, apoiavam o projeto industrializante conduzido pelo Estado. Dada a posição do Brasil na Segunda Guerra Mundial ao lado dos Aliados, os militares brasileiros esperavam o apoio norte-americano para um projeto industrializante de larga escala, pela simples razão de que sem indústria pesada não haveria Exército nacional forte. Terminada a Guerra, porém, a América do Sul saiu do radar e dos interesses do Tio Sam. A lógica da agenda externa norte-americana voltou a repetir o eterno mantra da abertura de mercados e importação de capitais privados. A industrialização, se viesse, deveria ser a consequência deste processo, e não do fechamento autárquico do mercado nacional às importações.

A política econômica do segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954) sinalizou um papel do Estado mais ativo no projeto de industrialização de base, criando as condições para a ampliação de uma indústria pesada nacional. A criação da Petrobras, particularmente, enfrentou fortes resistências externas e internas, ainda que a estatal não monopolizasse o comércio de combustível, a parte mais lucrativa do negócio.

O suicídio de Vargas fez com que, momentaneamente, a política nacional-desenvolvimentista se visse ameaçada. Mas as forças sociais e políticas que defendiam a industrialização se articularam em torno de Juscelino Kubitschek. Habilmente, JK conseguiu fazer convergir os três atores econômicos que estavam em tensão: o Estado, os capitalistas nacionais e as corporações multinacionais, contando com o apetite do capitalismo europeu em ascensão para contrabalançar excessiva presença norte-americana no mercado de bens duráveis. O modelo desenvolvimentista de JK optou por estimular a indústria de bens de consumo e as grandes obras públicas de infraestrutura a cargo do Estado.

A retórica da era JK era nacionalista, mas a realidade econômica que dela resultou foi um capitalismo “associado e dependente” de recursos financeiros, plantas industriais e tecnologia importada. Isto parecia ser o único caminho possível de industrialização de um país atrasado dentro do sistema capitalista, uma escolha possível diante da realidade geopolítica e econômica do Brasil. O pacto social entre trabalhadores, capitalistas, latifundiários e classes médias garantiu alguns anos de paz e prosperidade, entre um e outro chilique da direita udenista. O capital internacional também ficou feliz.

Além de consolidar um novo modelo econômico interno, no qual a indústria tinha lugar privilegiado, JK lançou, ainda que timidamente, as bases de uma nova política externa. O raciocínio do Presidente era mais ou menos o seguinte: um processo vigoroso de industrialização no Brasil e na América Latina só reforçaria o capitalismo no continente, criando uma sociedade mais rica, diluindo os bolsões de pobreza e subdesenvolvimento e, por consequência, o fantasma do comunismo. Por tudo isso deveria ser apoiada ativamente pelos norte-americanos. Mas até a Revolução Cubana, os comunistas pareciam estar longe demais das Américas para preocupar os Estados Unidos que fizeram ouvidos moucos à Operação Pan-Americana, como se chamou a proposta por JK. 

Esta política foi consolidada, paradoxalmente, sob o enigmático e contraditório Jânio Quadros, arqui-inimigo de JK em política interna. Passou a se chamar “Política Externa Independente” e foi ampliada por João Goulart, que estava à esquerda dos dois presidentes que lhe antecederam. Suas reformas prometiam mais desenvolvimento, um capitalismo mais autônomo, distribuição de renda e mais democracia. Se tudo isto era viável ou não, demagogia barata ou reformismo sério, o fato é que a partir de 1962 reacendeu a preocupação norte-americana com uma possível ruptura da aliança histórica entre Brasil e EUA. A queda de Goulart após o golpe de 1964, uma das batalhas da Guerra Fria na América Latina, parecia cortar as asas do nacionalismo econômico brasileiro.

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O alinhamento inicial dos militares com os Estados Unidos, grandes apoiadores do golpe, parecia confirmar as suspeitas de que os “entreguistas” conquistaram o poder para lesar a economia brasileira e recolocá-la na vocação agroexportadora, livrecambista e subordinada ao “imperialismo norte-americano”. Entretanto, passada a lua-de-mel, logo se percebeu que o Exército no poder não tinha um pensamento econômico e geopolítico homogêneo. Se o anticomunismo unia os militares a Washington, o projeto do Brasil Grande que começou a se esboçar em 1968, causava certa tensão com o Departamento de Estado e a Casa Branca. A recusa do Brasil em assinar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear naquele ano foi um dos primeiros sintomas deste estranhamento.

A relação entre os dois países passou a ser um namoro de interesses na era Médici, quando o Brasil se tornou uma peça importante na luta contra as guerrilhas e governos de esquerda da América do Sul e sua economia pujante sugava todos os dólares à disposição. Grande importador de capitais e com uma industrialização voltada para o mercado de consumo interno, a economia do “milagre” não chegava a ameaçar o jogo geopolítico e os mercados internacionais. O sistema estava feliz. A classe média consumia, os operários não reclamavam (até porque não podiam), os comunistas estavam mortos, presos ou exilados.

A relação complicou-se de vez no governo Geisel. A reorientação de investimentos para a indústria de base, a nova onda de estatização da economia, o protecionismo econômico e a projeção do Brasil para mercados nunca antes ocupados, causaram uma das conjunturas de maior tensão com Washington e seus office-boys neoliberais. Para piorar, os americanos passaram a ter certeza de que o Brasil queria entrar no clube atômico ao estabelecer um acordo nuclear com a Alemanha Ocidental em 1974. Além de pressionar por todos os meios diplomáticos o projeto nucelar brasileiro, os Estados Unidos souberam utilizar a sua política internacional de Direitos Humanos contra a ditadura que, por sinal, fornecia todas as razões para ser condenada nesta área. O ponto máximo de tensão foi o rompimento do acordo militar com os Estados Unidos em 1977, mais simbólico do que efetivo naquela conjuntura. Mas ainda assim, eloquente.

O Brasil sob Geisel queria ter um protagonismo econômico e político para além da condição de sócio menor dos norte-americanos. O País se projetava para a África, cuja bandeira foi fincada com o pronto reconhecimento de Angola, independente de Portugal e governada por comunistas, pela nossa ditadura de direita. O País se projetava para o Oriente Médio, passando a vender armas, frangos e expertise em construção civil para ditaduras pró-soviéticas, em troca de petróleo. 

Apostando nas Estatais e no fechamento do mercado interno, a era Geisel quis vitaminar o capitalismo brasileiro, não para romper com o capitalismo internacional, do qual o Brasil era, como sempre fora, dependente, mas para alçar o País a um novo patamar no jogo político e econômico internacional. O País ganhou mais autonomia energética, criou novas matrizes, completou a segunda revolução industrial, quando o mundo capitalista já iniciava a terceira. Os militares brasileiros, no apagar das luzes do regime militar, até tentaram pegar carona neste processo, estimulando por decreto a indústria nacional de informática.

O Brasil não explodiu a Bomba Atômica, as usinas nucleares consumiram uma fortuna e demoraram muito para sair do papel, as indústrias de informática nacionais não conseguiram competir com os Gates e Jobs da vida. A crise econômica dos anos 1980 e a dívida externa implodiram o sonho do Brasil desenvolvido dos anos JK e do Brasil Grande dos militares. Nos anos 1990, o Brasil iniciou seu longo caminho de volta para ser uma economia exportadora e primária, campeão das commodities. Hoje, com 100 toneladas exportadas de soja, conseguimos pagar 1 chip de celular. 

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A era Lula, mesmo sem ameaçar seriamente esta realidade, tentou conciliá-la com uma nova política social e uma nova geopolítica. Sem a sombra da Guerra Fria, acreditava-se que o Brasil poderia se afirmar como player mundial sem ser considerado uma ameaça ao “Ocidente”. Mas parece que esquecemos de “combinar com os russos”, ou melhor, com os americanos.

A descoberta das reservas do pré-sal pela Petrobras, o programa espacial brasileiro, o programa de reequipamento militar e o submarino nuclear voltaram a preocupar Washington. Além disso, as conversas de Lula com os BRICS, com os hermanos bolivarianos e a ousadia em se arvorar como mediador, ao lado da Turquia, na pacificação do Oriente Médio e na reinserção do Irã na comunidade das nações, foram demais para os brothers. A política dos “campeões nacionais”, simbolizada por Eike Batista em seus tempos pré-Bangu, de glória e glamour, era o caminho para a afirmação do novo Brasil Potência. Dilma Rousseff e sua nova matriz econômica prometiam ir além.

A partir de 2013, o portal da história novamente se fechou. O capital financeiro internacional começou a denunciar a gastança do Estado brasileiro e a ameaça ao sagrado superávit primário. O pacto social lulista, já criticado no andar de cima havia algum tempo, acabara. A classe média branca não quis mais dividir aeroportos com pobres e faculdades públicas com os negros. Os “campeões nacionais” se revelaram apenas o que sempre foram, capitalistas apostadores de cassino, pegando dinheiro barato do BNDES e aplicando no mercado financeiro. Como se houvesse alguma surpresa nisso.

Os casos de corrupção sistêmica facilitaram o cerco ao projeto político petista e à política econômica nacional-desenvolvimentista, que já se revelava insustentável sem uma efetiva reforma política, fiscal e tributária, que aliás nunca esteve seriamente na agenda da esquerda no poder. Mais do que isso, mostraram o caminho para implodir o símbolo máximo da luta pela industrialização no Brasil, a Petrobras. A Operação Lava-Jato escancarou as relações perigosas entre a estatal, empreiteiras e partidos políticos. O modelo de financiamento de campanhas eleitorais, construído ainda nos anos 1950, ampliado ao longo dos anos 1990, foi colocado em xeque e foi a tática para varrer a esquerda do comando do Estado. O resto é história.

Ao que parece, o sistema jurídico-político do Brasil e sua sociedade civil enfrentam o dilema de como conciliar a luta contra a corrupção – imperativo que poderia unir várias correntes ideológicas se envolvesse uma reforma política profunda e não fosse escandalosamente seletiva – e a defesa estratégica dos interesses econômicos nacionais, malgrado gostarmos ou não das leis de ferro do capitalismo mundial. 

Sob aplauso de uma parte da opinião pública, os nervos podres dos nossos capitalistas e empresas globais são expostos nos autos de fé pela moralidade pública, esta súbita obsessão dos brasileiros, mesmo aqueles que sonegam impostos, subornam guardas de trânsito e apostam no velho jogo do bicho. Os novos empreendedores, adoradores dos deuses de mercado, querem limpar nosso capitalismo a fórceps. Como se o mercado não fosse o grande corruptor da política, como se existisse o “nosso” capitalismo, e como se ele fosse mais sujo do que o dos outros.

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