segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Márcia Tiburi venceu, mas só Kim Kataguiri poderia tirar proveito da derrota


Márcia Tiburi venceu, mas só Kim Kataguiri poderia tirar proveito da derrota

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Há alguns dias Márcia Tiburi se recusou a debater com Kim Kataguiri. A decisão dela acarretou uma controvérsia que se multiplicou ao infinito nas redes sociais, transformando-se rapidamente num embate entre duas facções políticas antagônicas que ocupam espaços distintos na história da evolução das ideias. De um lado os intelectuais, que como a filósofa Márcia Tiburi, recorrem a conceitos sofisticados para compreender a realidade e seu papel dentro dela. De outro, os fanáticos do MBL que adoram repetir mantras neoliberais e agredir seus adversários.

Este conflito poderia ser facilmente enquadrado numa disputa entre os portadores da verdade e os mentirosos, pois o neoliberalismo defendido por Kataguiri e seus escudeiros já foi descrito como uma impostura intelectual que causou uma crise de 2008 que se tornou permanente em razão da persistência dos EUA em continuar alimentando o Minotauro Global apesar dele ter morrido há uma década*. Na pior das hipóteses, a verdade neoliberal que inspira os adversários de Márcia Tiburi é suspeita justamente sua difusão tem sustentado financeiramente o MBL e alguns de seus membros. 

“Dificilmente haverá uma figura política mais passível de suspeição justificada do que o contador da verdade profissional que descobriu alguma feliz coincidência entre a verdade e o interesse. O mentiroso, ao contrário, não carece de uma acomodação equívoca semelhante para aparecer no palco político: ele tem a grande vantagem de estar sempre, por assim dizer, em meio a ele.” (Entre o passado e o futuro, Hannah Arendt, Perspectiva, São Paulo, 2009, p. 309)

Márcia Tiburi, por outro, lado reagiu de maneira corajosa e adequada. Ao se recusar a debater com quem é impermeável ao debate por razões econômicas e ideológicas, a filósofa delimitou seu campo de ação e permaneceu fiel a ele. O massacre que tentaram impor a ela, que também ocorreria caso o debate tivesse sido aceito, apenas e tão somente fortaleceu a convicção dos intelectuais de que a filósofa tomou a decisão acertada.

“Jamais se incluiu a veracidade entre as virtudes políticas, pois ela de fato pouco contribui para esta transformação do mundo e das circunstâncias, que é uma das mais legítimas atividades políticas. Somente quando uma comunidade adere ao mentir organizado por princípio, e não apenas em relação a particularidades, a veracidade como tal, sem o apoio das forças distorsivas do poderio e do interesse, se torna fator político de primeira ordem. Onde todos mentem acerca de tudo que é importante aquele que conta a verdade começou a agir; quer o saiba ou não, ele se comprometeu também com os negócios políticos, pois, na improvável eventualidade de que sobreviva, terá dado um primeiro passo para transformação do mundo.” (Entre o passado e o futuro, Hannah Arendt, Perspectiva, São Paulo, 2009, p. 3310/310)

A recusa de debater com quem estabeleceu como sua missão – e fonte de rendimento – interditar o debate político equivaleu, neste caso, a afirmação pública de uma virtude porque revelou uma verdade que poderia ser considerada dolorosa para algumas pessoas influentes: não é necessário perder tempo com Kim Kataguiri e seus animais virtuais amestrados. E todos aqueles que fizeram isso (aí incluído o dono da Folha de São Paulo), só conseguiram se rebaixar ao nível das feras que colocaram em cena. 

O dilema enfrentado por Márcia Tiburi, porém, não foi tão singelo. A vitória dela em seu próprio campo se transformou numa derrota no exato momento em que passou a ser debatido exaustivamente na internet. A expressão “Márcia Tiburi x Kim Kataguiri” registra mais de 14 mil ocorrências no Google. A expressão inversa, ou seja, “Kim Kataguiri x Márcia Tiburi” conduz o interessado a mais de 11 resultados. Mesmo se excluirmos as redundâncias, podemos dizer com certeza que o episódio foi transformado num espetáculo.

“Em toda parte onde reina o espetáculo, as únicas forças organizadas são as que querem o espetáculo. Logo, nenhuma pode ser inimiga do que existe, nem transgredir o omertà que tudo envolve. Liquidaram com a inquietante concepção, que predominara por mais de duzentos anos, segundo a qual uma sociedade podia ser criticada e transformada, reformada ou revolucionada. E isso não foi obtido com o aparecimento de argumentos novos, mas apenas porque os argumentos se tornaram inúteis. Por esse resultado é possível medir, mais que a felicidade geral, a força terrível das redes de tirania.” (A sociedade do espetáculo, Guy Debord, Contraponto, Rio de Janeiro, 2008, p. 183)

O ruído provocado por uma explosão, como aquele que ocorreu na estação de Bolonha em 02 de agosto de 1980, às 10:25 horas, deu lugar ao ruído de autoexpressão no Facebook, Twitter, WhatsApp, YouTube, etc... provocado pelo terrorismo virtual do MBL. Por mais que os adeptos daquele movimento – e os inimigos de Márcia Tiburi – consigam racionalizar, o ato em si não tinha o propósito de esclarecer** e sim o de mistificar.

A máxima exposição dos dois protagonistas do debate que não ocorreu certamente favoreceu menos a filósofa do que seu adversário. De fato, apesar de ainda não ter recorrido à violência homicida no mundo real a ação do MBL no mundo virtual parece seguir o padrão definido nos anos 1970 pelas Brigadas Vermelhas e pelo Baader-Meinhof. O alvo inimigo é cuidadosamente escolhido em razão de sua importância pública, respeitabilidade intelectual e visibilidade jornalística. A agressão é planejada de maneira a transformar a agressão num espetáculo para que ele possa ser explorado com três finalidades: intimidação dos adversários, recrutamento de novos aliados e arrecadação de fundos para continuar a difundir o irracionalismo e sobrepujar os intelectuais de esquerda.

No campo de Márcia Tiburi, contudo, existem intelectuais que preferem ficar desligados ao presente. Ao refletir sobre o episódio, eles fizeram referência ao fascismo e à Ditadura Militar. Karl Marx disse que a tarefa do filósofo não deveria ser descrever a realidade e sim transformá-la. A tarefa dos marxistas agora é outra, pois a realidade do mundo virtual se tornou mais real e letal ao humanismo do que a própria realidade tal como ela existia há 40 ou 50 anos.

O espaço do irracionalismo cresceu e se multiplicou ao infinito na internet não por causa de uma regressão aos padrões políticos dos anos 1930 ou dos anos 1960/1970. O mais provável é que isso tenha ocorrido porque alguns jovens ambiciosos e violentos (violentos apenas na internet, por enquanto) foram capazes de tirar proveito de inovações tecnológicas que aprofundaram contradições que já existiam quando Debord investigou a sociedade do espetáculo. O intelectual pode até usar a internet e refletir sobre ela – é exatamente isso que estou fazendo neste momento – mas isso apenas confirma um fato notado por Eric Hobsbawm. 

“Essa era do intelectual como a principal face pública de oposição política recuou para o passado. Onde estão os grandes motores de campanhas e signatários de manifestos? Com poucas e raras exceções, mais notavelmente a do americano Noam Chomsky, estão calados ou mortos. Onde estão os celebrados maîtres à penser da França, os sucessores de Sartre, Merlau-Ponty, Camus e Raymond Aron, de Foucault, Althusser, Derrida e Bourdieu? Os ideólogos do fim do século XX preferiram abandonar a tarefa de buscar a razão e a mudança social, deixando-a para as operações automáticas de um mundo de indivíduos puramente racionais, supostamente maximizando seus benefícios através de um mercado que opera racionalmente e tem uma tendência natural, quando livre de interferência externa, a alcançar um equilíbrio duradouro. Numa sociedade de incessante entretenimento de massa, os ativistas agora acham os intelectuais menos úteis como fonte inspiradora de causas do que os roqueiros e astros de cinema mundialmente famosos. Os filósofos já não têm condições de competir com Bono ou Eno, a não ser que se reclassifiquem como essa nova figura do novo mundo do espetáculo midiático – a ‘celebridade’. Vivemos uma nova era, ao menos até que o ruído universal de autoexpressão do Facebook e os ideais igualitários da internet produzam seu pleno efeito público.” (Tempos Fraturados – Cultura e Sociedade no Século XX, Eric Hobsbawm, Companhia das Letras, São Paulo, 2013, p. 230/231)

Márcia Tiburi derrotou Kim Kataguiri quando se recusou a debater com ele. Paradoxalmente, porém, a vitória dela se tornou irrelevante porque o episódio permitiu uma expansão do espaço irracional virtual em que o MBL atua. Se esse novo paradigma não for estudado e compreendido de maneira profunda, os intelectuais de esquerda estarão fadados à extinção. A transformação da realidade pela tecnologia da computação permitiu aos militantes de direita aprender e empregar táticas que foram inventadas pelas esquerdas radicais nos anos 1970. Os esquerdistas terão que reaprender o que esqueceram e a reinventar o ato de aprender para poder sobrepujar seus adversários.

“Dúzias de estudos psicológicos, neurobiólogos, educadores e web designers indicam a mesma conclusão: quando estamos on-line, entramos em um ambiente que promove a leitura descuidada, o pensamento apressado e distraído e o aprendizado superficial. É possível pensar profundamente enquanto se surfa na net, assim como é possível pensar superficialmente enquanto se lê um livro, mas não é o tipo de pensamento que a tecnologia encoraja e recompensa.” (O que a internet está fazendo com os nossos cérebros – A geração superficial, Nicholas Carr, editora Agir, Rio de Janeiro, 2011, p. 161/162)

“As dificuldades de desenvolver a compreensão de um assunto ou conceito parecem ser ‘fortemente determinados pela carga da memória de trabalho’, escreve Sweller, e, quanto mais complexo o material que tentamos apreender, maior a penalidade imposta por uma mente sobrecarregada. Há muitas fontes possíveis de sobrecarga cognitiva, mas duas das mais importantes são, segundo Sweller, a ‘resolução de problemas externos’ e a ‘atenção dividida’. Ocorre que essas são duas das características centrais da net como uma mídia informacional. Usar a internet pode, como sugere Gary Small, exercitar o cérebro de modo como faz um jogo de palavras cruzadas. Mas tal exercício intensivo, quando se torna o nosso primário de pensamento, pode impedir o pensamento e o aprendizado profundos. Tente ler um livro enquanto está fazendo palavras cruzadas; esse é o ambiente intelectual da internet.” (O que a internet está fazendo com os nossos cérebros – A geração superficial, Nicholas Carr, editora Agir, Rio de Janeiro, 2011, p. 174/175)

Nicholas Carr estudou a maneira como a tecnologia favorece ou não determinadas atividades cognitivas. Mas existe outro tema que ele poderia ter estudado: como a percepção da realidade pelas pessoas é alterado no mundo virtual em virtude da manipulação descarada (Fazendas de Likes), empurrão sutil em determinada direção política dado por Algoritmos que favorecem alguns conteúdos e retiram a visibilidade de outros e a censura imposta a textos ou vídeos que contrariam os padrões unilateralmente criados pelo dono do website. 

Os espetáculos virtuais da extrema direita só perderão sua substância quando a esquerda perceber que a internet não é a arena política que ela deve ocupar. O espaço da esquerda se encontra no mundo real, onde as greves causam prejuízos econômicos aos empresários, onde as passeatas interrompem o fluxo de mercadorias/pessoas provocando novos conflitos, onde os rolezinhos causam transtornos nos shoppings, etc...

*Sobre este tema vide a obra de Yanis Varoufakis.

** Referência ao Iluminismo.

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