Márcia Tiburi venceu, mas só Kim Kataguiri poderia tirar proveito da derrota
por Fábio de Oliveira Ribeiro
Há alguns dias Márcia Tiburi se recusou a debater com Kim Kataguiri. A decisão dela acarretou uma controvérsia que se multiplicou ao infinito nas redes sociais, transformando-se rapidamente num embate entre duas facções políticas antagônicas que ocupam espaços distintos na história da evolução das ideias. De um lado os intelectuais, que como a filósofa Márcia Tiburi, recorrem a conceitos sofisticados para compreender a realidade e seu papel dentro dela. De outro, os fanáticos do MBL que adoram repetir mantras neoliberais e agredir seus adversários.
Este conflito poderia ser facilmente enquadrado numa disputa entre os portadores da verdade e os mentirosos, pois o neoliberalismo defendido por Kataguiri e seus escudeiros já foi descrito como uma impostura intelectual que causou uma crise de 2008 que se tornou permanente em razão da persistência dos EUA em continuar alimentando o Minotauro Global apesar dele ter morrido há uma década*. Na pior das hipóteses, a verdade neoliberal que inspira os adversários de Márcia Tiburi é suspeita justamente sua difusão tem sustentado financeiramente o MBL e alguns de seus membros.
“Dificilmente haverá uma figura política mais passível de suspeição justificada do que o contador da verdade profissional que descobriu alguma feliz coincidência entre a verdade e o interesse. O mentiroso, ao contrário, não carece de uma acomodação equívoca semelhante para aparecer no palco político: ele tem a grande vantagem de estar sempre, por assim dizer, em meio a ele.” (Entre o passado e o futuro, Hannah Arendt, Perspectiva, São Paulo, 2009, p. 309)
Márcia Tiburi, por outro, lado reagiu de maneira corajosa e adequada. Ao se recusar a debater com quem é impermeável ao debate por razões econômicas e ideológicas, a filósofa delimitou seu campo de ação e permaneceu fiel a ele. O massacre que tentaram impor a ela, que também ocorreria caso o debate tivesse sido aceito, apenas e tão somente fortaleceu a convicção dos intelectuais de que a filósofa tomou a decisão acertada.
“Jamais se incluiu a veracidade entre as virtudes políticas, pois ela de fato pouco contribui para esta transformação do mundo e das circunstâncias, que é uma das mais legítimas atividades políticas. Somente quando uma comunidade adere ao mentir organizado por princípio, e não apenas em relação a particularidades, a veracidade como tal, sem o apoio das forças distorsivas do poderio e do interesse, se torna fator político de primeira ordem. Onde todos mentem acerca de tudo que é importante aquele que conta a verdade começou a agir; quer o saiba ou não, ele se comprometeu também com os negócios políticos, pois, na improvável eventualidade de que sobreviva, terá dado um primeiro passo para transformação do mundo.” (Entre o passado e o futuro, Hannah Arendt, Perspectiva, São Paulo, 2009, p. 3310/310)
A recusa de debater com quem estabeleceu como sua missão – e fonte de rendimento – interditar o debate político equivaleu, neste caso, a afirmação pública de uma virtude porque revelou uma verdade que poderia ser considerada dolorosa para algumas pessoas influentes: não é necessário perder tempo com Kim Kataguiri e seus animais virtuais amestrados. E todos aqueles que fizeram isso (aí incluído o dono da Folha de São Paulo), só conseguiram se rebaixar ao nível das feras que colocaram em cena.
O dilema enfrentado por Márcia Tiburi, porém, não foi tão singelo. A vitória dela em seu próprio campo se transformou numa derrota no exato momento em que passou a ser debatido exaustivamente na internet. A expressão “Márcia Tiburi x Kim Kataguiri” registra mais de 14 mil ocorrências no Google. A expressão inversa, ou seja, “Kim Kataguiri x Márcia Tiburi” conduz o interessado a mais de 11 resultados. Mesmo se excluirmos as redundâncias, podemos dizer com certeza que o episódio foi transformado num espetáculo.
“Em toda parte onde reina o espetáculo, as únicas forças organizadas são as que querem o espetáculo. Logo, nenhuma pode ser inimiga do que existe, nem transgredir o omertà que tudo envolve. Liquidaram com a inquietante concepção, que predominara por mais de duzentos anos, segundo a qual uma sociedade podia ser criticada e transformada, reformada ou revolucionada. E isso não foi obtido com o aparecimento de argumentos novos, mas apenas porque os argumentos se tornaram inúteis. Por esse resultado é possível medir, mais que a felicidade geral, a força terrível das redes de tirania.” (A sociedade do espetáculo, Guy Debord, Contraponto, Rio de Janeiro, 2008, p. 183)
O ruído provocado por uma explosão, como aquele que ocorreu na estação de Bolonha em 02 de agosto de 1980, às 10:25 horas, deu lugar ao ruído de autoexpressão no Facebook, Twitter, WhatsApp, YouTube, etc... provocado pelo terrorismo virtual do MBL. Por mais que os adeptos daquele movimento – e os inimigos de Márcia Tiburi – consigam racionalizar, o ato em si não tinha o propósito de esclarecer** e sim o de mistificar.
A máxima exposição dos dois protagonistas do debate que não ocorreu certamente favoreceu menos a filósofa do que seu adversário. De fato, apesar de ainda não ter recorrido à violência homicida no mundo real a ação do MBL no mundo virtual parece seguir o padrão definido nos anos 1970 pelas Brigadas Vermelhas e pelo Baader-Meinhof. O alvo inimigo é cuidadosamente escolhido em razão de sua importância pública, respeitabilidade intelectual e visibilidade jornalística. A agressão é planejada de maneira a transformar a agressão num espetáculo para que ele possa ser explorado com três finalidades: intimidação dos adversários, recrutamento de novos aliados e arrecadação de fundos para continuar a difundir o irracionalismo e sobrepujar os intelectuais de esquerda.
No campo de Márcia Tiburi, contudo, existem intelectuais que preferem ficar desligados ao presente. Ao refletir sobre o episódio, eles fizeram referência ao fascismo e à Ditadura Militar. Karl Marx disse que a tarefa do filósofo não deveria ser descrever a realidade e sim transformá-la. A tarefa dos marxistas agora é outra, pois a realidade do mundo virtual se tornou mais real e letal ao humanismo do que a própria realidade tal como ela existia há 40 ou 50 anos.
O espaço do irracionalismo cresceu e se multiplicou ao infinito na internet não por causa de uma regressão aos padrões políticos dos anos 1930 ou dos anos 1960/1970. O mais provável é que isso tenha ocorrido porque alguns jovens ambiciosos e violentos (violentos apenas na internet, por enquanto) foram capazes de tirar proveito de inovações tecnológicas que aprofundaram contradições que já existiam quando Debord investigou a sociedade do espetáculo. O intelectual pode até usar a internet e refletir sobre ela – é exatamente isso que estou fazendo neste momento – mas isso apenas confirma um fato notado por Eric Hobsbawm.
“Essa era do intelectual como a principal face pública de oposição política recuou para o passado. Onde estão os grandes motores de campanhas e signatários de manifestos? Com poucas e raras exceções, mais notavelmente a do americano Noam Chomsky, estão calados ou mortos. Onde estão os celebrados maîtres à penser da França, os sucessores de Sartre, Merlau-Ponty, Camus e Raymond Aron, de Foucault, Althusser, Derrida e Bourdieu? Os ideólogos do fim do século XX preferiram abandonar a tarefa de buscar a razão e a mudança social, deixando-a para as operações automáticas de um mundo de indivíduos puramente racionais, supostamente maximizando seus benefícios através de um mercado que opera racionalmente e tem uma tendência natural, quando livre de interferência externa, a alcançar um equilíbrio duradouro. Numa sociedade de incessante entretenimento de massa, os ativistas agora acham os intelectuais menos úteis como fonte inspiradora de causas do que os roqueiros e astros de cinema mundialmente famosos. Os filósofos já não têm condições de competir com Bono ou Eno, a não ser que se reclassifiquem como essa nova figura do novo mundo do espetáculo midiático – a ‘celebridade’. Vivemos uma nova era, ao menos até que o ruído universal de autoexpressão do Facebook e os ideais igualitários da internet produzam seu pleno efeito público.” (Tempos Fraturados – Cultura e Sociedade no Século XX, Eric Hobsbawm, Companhia das Letras, São Paulo, 2013, p. 230/231)
Márcia Tiburi derrotou Kim Kataguiri quando se recusou a debater com ele. Paradoxalmente, porém, a vitória dela se tornou irrelevante porque o episódio permitiu uma expansão do espaço irracional virtual em que o MBL atua. Se esse novo paradigma não for estudado e compreendido de maneira profunda, os intelectuais de esquerda estarão fadados à extinção. A transformação da realidade pela tecnologia da computação permitiu aos militantes de direita aprender e empregar táticas que foram inventadas pelas esquerdas radicais nos anos 1970. Os esquerdistas terão que reaprender o que esqueceram e a reinventar o ato de aprender para poder sobrepujar seus adversários.
“Dúzias de estudos psicológicos, neurobiólogos, educadores e web designers indicam a mesma conclusão: quando estamos on-line, entramos em um ambiente que promove a leitura descuidada, o pensamento apressado e distraído e o aprendizado superficial. É possível pensar profundamente enquanto se surfa na net, assim como é possível pensar superficialmente enquanto se lê um livro, mas não é o tipo de pensamento que a tecnologia encoraja e recompensa.” (O que a internet está fazendo com os nossos cérebros – A geração superficial, Nicholas Carr, editora Agir, Rio de Janeiro, 2011, p. 161/162)
“As dificuldades de desenvolver a compreensão de um assunto ou conceito parecem ser ‘fortemente determinados pela carga da memória de trabalho’, escreve Sweller, e, quanto mais complexo o material que tentamos apreender, maior a penalidade imposta por uma mente sobrecarregada. Há muitas fontes possíveis de sobrecarga cognitiva, mas duas das mais importantes são, segundo Sweller, a ‘resolução de problemas externos’ e a ‘atenção dividida’. Ocorre que essas são duas das características centrais da net como uma mídia informacional. Usar a internet pode, como sugere Gary Small, exercitar o cérebro de modo como faz um jogo de palavras cruzadas. Mas tal exercício intensivo, quando se torna o nosso primário de pensamento, pode impedir o pensamento e o aprendizado profundos. Tente ler um livro enquanto está fazendo palavras cruzadas; esse é o ambiente intelectual da internet.” (O que a internet está fazendo com os nossos cérebros – A geração superficial, Nicholas Carr, editora Agir, Rio de Janeiro, 2011, p. 174/175)
Nicholas Carr estudou a maneira como a tecnologia favorece ou não determinadas atividades cognitivas. Mas existe outro tema que ele poderia ter estudado: como a percepção da realidade pelas pessoas é alterado no mundo virtual em virtude da manipulação descarada (Fazendas de Likes), empurrão sutil em determinada direção política dado por Algoritmos que favorecem alguns conteúdos e retiram a visibilidade de outros e a censura imposta a textos ou vídeos que contrariam os padrões unilateralmente criados pelo dono do website.
Os espetáculos virtuais da extrema direita só perderão sua substância quando a esquerda perceber que a internet não é a arena política que ela deve ocupar. O espaço da esquerda se encontra no mundo real, onde as greves causam prejuízos econômicos aos empresários, onde as passeatas interrompem o fluxo de mercadorias/pessoas provocando novos conflitos, onde os rolezinhos causam transtornos nos shoppings, etc...
*Sobre este tema vide a obra de Yanis Varoufakis.
** Referência ao Iluminismo.
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