quarta-feira, 21 de março de 2018

A crise do Habeas Corpus

   Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF 


Reportagem publicada pelo Jornal O Globo noticia divergência de entendimento entre a presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministra Cármen Lúcia, e o Ministro Edson Fachin, relator do habeas corpus apresentado pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para evitar sua prisão. A Ministra Presidente disse que não caberia a ela incluir em pauta o citado habeas corpus e que bastaria o ministro Edson Fachin leva-lo diretamente a julgamento no plenário. Ocorre que o ministro Edson Fachin decidiu que não fará isso e irá aguardar que a Ministra Presidente marque a data de julgamento.
O mérito do habeas corpus questiona as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal que autorizariam a prisão diante da condenação em segundo grau, antes, portanto, do trânsito em julgado. Como sabem, o Egrégio Supremo Tribunal Federal restringiu a garantia do “trânsito em julgado da sentença penal condenatória” para o da “condenação em segundo grau”. Há, no entanto, a possibilidade desse entendimento ser revisto pelo Plenário em função da nova composição da Corte ou em decorrência da mudança de orientação de alguns dos ministros, o que poderia livrar o ex-presidente do risco de ser preso antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Ocorre que, como dito acima, não há previsão de julgamento do habeas corpus pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal diante do impasse instalado entre os citados ministros quanto a inclusão em pauta da referida ação constitucional.

A questão acima, tecnicamente se assemelharia a um conflito negativo de atribuições, no qual órgãos declinariam, ambos, de sua atribuição para tomar a providência cabível (apresentação em plenário do habeas corpus). A questão, no entanto, apresentaria baixa complexidade jurídica porque, na verdade, o § 1º do artigo 192 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal atribuiria ao relator do habeas corpus a incumbência de apresentar o feito em mesa na primeira sessão da Turma ou do Plenário.[1]

Para quem não é da área jurídica, cumpre esclarecer que apresentar em mesa para julgamento significa, justamente, a possibilidade de levar o processo a Turma ou ao Plenário para julgamento independentemente de inclusão prévia na pauta. Logo, nesse conflito negativo de atribuições assistiria razão a Ministra Presidente do Supremo Tribunal Federal, pois, como dito, ela não precisaria pautar o habeas corpus e caberia, então, ao Ministro Relator apresenta-lo em mesa.

Tal providência – apresentar o habeas corpus em mesa – seria recomendável e necessária porque o ordenamento jurídico brasileiro destaca-se, essencialmente, por eleger a Dignidade da pessoa e os respectivos Direitos Fundamentais como merecedores de intenso reconhecimento e proteção. Alguns, com razão, consideram a Dignidade da Pessoa Humana um supra princípio constitucional que ilumina todos os demais princípios, normas constitucionais e infraconstitucionais, que não poderia ser desconsiderado em nenhum ato de interpretação, aplicação ou criação de normas jurídicas.[2] O princípio da Dignidade da pessoa representaria o epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiaria efeitos sobre todo o ordenamento jurídico e balizaria não apenas os atos estatais, mas as relações privadas.[3] Nesse sentido, os Direitos Fundamentais, em especial a Vida, a Liberdade e a Propriedade, essenciais ao desenvolvimento da personalidade humana, ganhariam consistência mediante um sistema que os reconhece, os organiza e os protege.

A par disso, a ordem jurídica brasileira democrática recebe substancial reforço pela adesão do Brasil aos Tratados e Convenções Internacionais que versam sobre os Direitos Fundamentais. Nesse contexto, restrições aos Direitos Fundamentais somente seriam aceitas se amparadas no texto constitucional e nas Convenções e Tratados internacionais subscritos pelo país. No plano internacional o Pacto de San Jose da Costa Rica estabelece no artigo 7º que “ninguém pode ser submetido à detenção ou encarceramentos arbitrários”.

Existem, ainda, diversos procedimentos instituídos para garantir os efeitos desses direitos e impedir que eles sejam violados. Com relação à liberdade de ir vir e ficar, direito fundamental por excelência, a mais grave restrição é a privação da liberdade ou a prisão. Para ser considerada legítima a prisão deve estar amparada, como dito acima, no texto constitucional, nas Convenções e Tratados internacionais. No Brasil, a prisão somente é considerada uma restrição legítima ao direito fundamental de liberdade se fundamentada em uma ordem judicial escrita, veiculada por um mandado, amparada em uma decisão cautelar ou em uma decisão definitiva com trânsito em julgado. Para corrigir eventuais erros e tutelar a liberdade fundamental de ir, vir e permanecer o ordenamento prevê a ação constitucional célere e desburocratizada do Habeas Corpus, que pode ser interposto por qualquer pessoa, sem observar qualquer forma ou formalidade, ou mesmo proclamado de ofício pelo magistrado diante de uma arbitrariedade e ilegalidade (Art. 5º, LXVIII) (art. 654, § 2º, do CPP).

Todos esses instrumentos e garantias depositam no Magistrado o invulgar papel de guardião dos Direitos Fundamentais dos cidadãos. Se nenhum titular de poder ou função pública pode descurar do trato dos direitos fundamentais, o magistrado, por essência, recebeu a missão de tutela-los porque nenhuma lesão ou ameaça de lesão pode ser subtraída do conhecimento do Poder Judiciário. Por isso, se reconhece ao Poder Judiciário o poder contramajoritário, ou seja, o poder dever de na defesa dos Direitos Fundamentais posicionar-se contra a decisão da maioria, ainda que proveniente de poderes legitimamente constituídos (Legislativo, Executivo ou mesmo do Judiciário) quando ela violar os direitos fundamentais.

Pelos singelos argumentos acima expostos torna-se difícil compreender a razão pela qual o julgamento do habeas corpus do ex-presidente pelo Plenário ainda não foi marcado e converteu-se num conflito de atribuições.

Essa negativa de jurisdição (consequência direta da negativa em julgar o habeas corpus) serve apenas para estimular ideias (com os quais não concordo a priori) de que o Poder Judiciário teria caído na tentação de ser o porta-voz de uma opinião pública punitiva ou, então, sucumbido a pressão midiática de encarcerar o ex-presidente, quando, para o Poder Judiciário (para se diferenciar do Poder Político) o ‘fazer justiça’ consistiria, simplesmente, no cumprimento correto dos procedimentos estabelecidos pelo ordenamento jurídicoou, em outras palavras, o desincumbir-se de uma correção procedimental em que há uma sucessão lógica de acontecimentos, não sujeita a humores, a arbitrariedade ou a caprichos. [4]

Nós já tivemos outras crises do Habeas Corpus na história do Supremo Tribunal Federal, mas todas as outras crises, salvo melhor juízo, foram positivas e contribuíram para reforçar o papel contramajoritário da Corte Constitucional na defesa dos Direitos Fundamentais.

Conforme relato da obra Advocacia em Tempos Difíceis,[5] basta recordar a consistente atuação do Supremo Tribunal Federal nos primeiros meses do governo militar no sentido de impedir que os civis acusados de subversão fossem processados perante a Justiça Militar, que, pela Constituição então vigente (1946), guardava competência apenas para casos de segurança externa, e não interna (art. 108, § 1o), o que levou a Corte Constitucional a conceder ordem de habeas corpus a um professor de Ciências Sociais do Rio de Janeiro, ainda em 1964[6], ou, então, quando, em 1965, por excesso de prazo, ordenou a soltura de Miguel Arraes, decisão relatada pelo Ministro Evandro Lins e Silva [7] (que foi posteriormente cassado com fundamento no Ato Institucional nº5) mas que foi deliberadamente desobedecida pelos militares, ou, ainda, pouco tempo depois, a decisão que ordenou a soltura do deputado comunista Francisco Julião.[8]

Essa crise dos Habeas Corpus suscitou atritos entre militares de alta patente e o presidente do Supremo Tribunal Federal, Álvaro Ribeiro da Costa, [9] que, em um dado momento, teria afirmado que “os militares precisavam entender que num regime democrático as Forças Armadas não eram mentoras da nação”, o que teria levado Costa e Silva, então Ministro da Guerra de Castello Branco, a retrucar que “o Exército não teria chefe e por isso não precisaria de lições do Supremo Tribunal Federal”.[10]

O Supremo Tribunal Federal também não tem chefe e não precisa de lições de ninguém. Oxalá, no entanto, em defesa da Liberdade, dos Direitos Fundamentais, da Imparcialidade e Independência do Poder Judiciário que os ideiais liberais e garantistas de ex-ministros do Supremo Tribunal Federal, como Evandro Lins e Silva e Álvaro Ribeiro da Costa, prevaleçam em nossa atual Corte Constitucional para o bem de nossa ordem jurídica.

Silvio Luís Ferreira da Rocha é Mestre e Doutor em Direito Civil pela PUC-SP. Doutor e Livre-Docente em Direito Administrativo pela PUC-SP. Professor da Graduação e Pós-Graduação da PUC-SP. Juiz Federal Criminal em São Paulo.

[1] Art. 192. Quando a matéria for objeto de jurisprudência consolidada do Tribunal, o Relator poderá desde logo denegar ou conceder a ordem, ainda que de ofício, à vista da documentação da petição inicial ou do teor das informações.

1º Não se verificando a hipótese do caput, instruído o processo e ouvido o Procurador-Geral em dois dias, o Relator apresentará o feito em mesa para julgamento na primeira sessão da Turma ou do Plenário, observando-se, quanto à votação, o disposto nos arts. 146, parágrafo único, e 150, § 3º (g.n).

[2] Massimo Palazzolo, Persecução Penal e Dignidade da Pessoa Humana, São Paulo: Quartier Latin, 2007, p.66. Luiz Antônio Rizzato, O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: São Paulo: Saraiva, 2002, p.51.

[3] Daniel Sarmento. A ponderação de interesses na Constituição brasileira. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2000, p.59-60.

[4] Gisele Cittadino e Luiz Moreira, Aliança Política entre Mídia e Judiciário (ou Quando a Perseguição se Torna Implacável), in O Caso Lula: A Luta pela Afirmação dos Direitos Fundamentais no Brasil, p.82.

[5] Paula Spiler e Rafael Mata Rabelo Queiroz, Advocacia em Tempos Difíceis, Fundação Getúlio, pág. 36.

[6] STF, HC 40.974, Rel. Min. Antonio Villas Boas, j. em 01.10.1964. De acordo com a obra Advocacia em Tempos Difíceis a postura do STF foi uma das razões pelas quais os militares viram-se obrigados, no AI-2, a mudar formalmente a competência da Justiça Militar, que a partir de então passou a incluir os crimes contra a segurança nacional interna.

[7] STF, HC 42.108, Rel. Min Evando Lins e Silva, j. em 19.04.1965.

[8] STF, HC 42.560, Rel. Min. Evandro Lins e Silva (p/o acórdão), j. em 27.09.1965.

[9] Conforme a obra Advocacia em Tempos Difíceis para a posição de Ribeiro da Costa e um relato do episódio, v. SILVA, Evandro Lins. Salão dos passos perdidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira / FGV, 1997. p. 381 e ss.

[10] Conforme a obra Advocacia em Tempos Difíceis a contenda entre militares e STF pode ser melhor entendida com a leitura da obra de Elio Gaspari sobre A Ditadura Envergonhada. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. p. 271.

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