quinta-feira, 29 de março de 2018

Luís Roberto Barroso: o retorno do intelectual demiurgo, por Diogo Cunha

     Foto: José Cruz/ Agência Brasil

Luís Roberto Barroso: o retorno do intelectual demiurgo 

por Diogo Cunha

Em reposta às críticas feitas por Conrado Hübner Mendes ao Supremo Tribunal Federal, o ministro Luís Roberto Barroso publicou um longo artigo no caderno Ilustríssima, da Folha de São Paulo, na edição do dia 23 de fevereiro passado. Sem entrar no mérito das soluções propostas pelo ministro para os eventuais problemas institucionais da suprema corte, um aspecto chama a atenção do historiador da vida intelectual brasileira: o papel “iluminista” que ela deveria exercer. Esse papel da instituição – a quem cabe “empurrar a história” e “impor a razão ao senso comum majoritário”, nas palavras do ministro – parece se ajustar ao papel intelectual que Barroso se atribui. 

O Ministro do Supremo parece estar convencido da sua “missão civilizadora”: a do intelectual portador da consciência nacional, convicto do seu papel de organizador (e moralizador) do Estado e da sociedade. Esse tipo de conduta por parte do intelectual esteve presente ao longo da história do Brasil desde a Independência. A partir do final dos anos 1960, os intelectuais começaram a se preocupar menos em influenciar a condução e a organização do país do que obter o reconhecimento dos pares. Surgia então o intelectual “professor-pesquisador universitário”, produto da profissionalização resultante da expansão das universidades federais. Eis que agora, no final dos anos 2010, a figura do “intelectual demiurgo” ressurge encarnada por Luís Roberto Barroso. Essa postura, contudo, suscita uma série de questões sobre o papel do intelectual na sociedade nos dias atuais e sua relação com o poder. 

A definição do intelectual não é evidente. De Julien Benda a Edward Saïd, passando por Antonio Gramsci, Michel Foucault e Pierre Bourdieu, para citar apenas os nomes mais célebres, procurou-se definir o intelectual e sua função na sociedade. Uma das principais referências sobre o surgimento desse ator político, inclusive para nós brasileiros, é francesa e data do final do século XIX. No dia 13 de janeiro de 1898, o jornal Aurore publicou uma carta de Émile Zola endereçada ao presidente da República Francesa Félix Faure. Sob o título de “Eu acuso”, o escritor protestava contra a condenação, fundada em provas falsas, do capitão Alfred Dreyfus, acusado de fornecer documentos confidenciais aos alemães. Nessa carta, o célebre autor da saga dos Rougon-Macquart exigia a revisão do processo em nome da verdade e da justiça. Na França, essa data marca o “nascimento” do intelectual, ou seja, o momento em que esse termo passa a designar aqueles que, oriundos do campo da criação ou da mediação cultural, se engajam no debate público. De onde a definição, minimalista, do historiador francês Pascal Ory: “o intelectual é o homem da cultura em situação de homem político”. Ao longo do século XX, a definição de intelectual se ampliou e passou a abranger, além dos célebres maître à penser, todos aqueles que, além de criadores, estavam engajados na difusão e na mediação cultural. É importante destacar, contudo, que cada sociedade teve, ao longo de sua história, indivíduos que exerceram uma função intelectual que podia ser distinta da francesa. 

Nesse sentido, e não obstante o peso dessa referência francesa, o papel do intelectual em sociedades subdesenvolvidas como a brasileira, foi bem diferente. Em um ensaio provocativo, hoje clássico, intitulado La ciuddad letrada, Ángel Rama sustenta a tese segundo a qual desde a fundação do regime colonial na América até a maior parte do século XIX, as elites letradas formaram parte do sistema de poder. Ou seja, elas estavam estreitamente associadas às funções do poder produzindo discursos de legitimação da ordem social e de definição da cultura legítima, que não era outra senão a deles próprios. Posteriormente, mudanças ocorreram nas modalidades do papel social dessas elites letradas e dos discursos correspondentes de legitimação: do discurso religioso passou-se aos discursos ideológicos modernos; do papel de evangelizadores passou-se ao papel de educadores. 

No Brasil, especificamente, a condição de país “periférico”, caracterizado pela presença de um grande número de analfabetos e pelo peso das estruturas patriarcais e autoritárias, levou os letrados a assumirem o papel de portadores da “consciência nacional” e de agente natural da construção do Estado. Assim, no momento da Independência, eles estão convencidos de ter por missão guiar a jovem nação emergente e elaboram uma série de estratégias tendo em vista a valorização do país. No final do século XIX, uma geração de intelectuais – a célebre “Geração 1870” formada por nomes como os de Quintino Bocaiúva, Salvador de Mendonça, Joaquim Nabuco, Silvio Romero, Teixeira Mendes, Alberto Sales, Assis Brasil, entre outros – propôs uma série de amplas reformas políticas a partir de um repertório de ideias europeias e também nacionais. Apesar da grande diversidade que existiam entre esses intelectuais e, consequentemente, no modelo de sociedade que deveria emergir dessas reformas, eles estavam de acordo sobre as linhas diretivas: modernização econômica, liberalização política e laicização do Estado. Eles estavam também de acordo com a ideia de que, para o país sair do seu arcaísmo e se integrar na cultura ocidental era preciso, além das reformas mencionadas acima, definir a nacionalidade. Para isso, eles 
partiam de questões julgadas cruciais: Quais eram os elementos que definiam o Brasil? Qual era , no contexto internacional, a especificidade do Brasil? 

A partir do início do século XX, os intelectuais estavam então convencidos que os elementos que definiam a nacionalidade e que permitiam, portanto, responder às questões sobre a especificidade do país, existiam em “estado bruto” no povo. Cabia a eles, intelectuais, a tarefa de “revelar” e de “moldar” a nacionalidade, uma missão que só eles eram capazes de cumprir graças ao seu saber científico. Era, antes de tudo, uma missão política pois eles entendiam estar criando, assim, uma identidade nacional, condição para a construção da nação. Note-se o caráter autoritário dessa geração intelectual: se colocando “acima” do social, ela se considerava dotada de um saber superior que deveria permiti-lhes criar uma identidade nacional e assim forjar a Nação. 

Se as preocupações dos intelectuais de definir o que seria o nacional remontam ao fim do século XIX, a Grande Guerra veio abalar profundamente a maneira como eles pensavam o Brasil. No final do conflito, a ideia de uma Europa como modelo de civilização foi radicalmente colocada em causa e os intelectuais reforçaram a necessidade de criar uma nação com instituições “adaptadas a realidade brasileira”, como se dizia na época. Para grande parte dos intelectuais das décadas de 1920, 1930 e 1940, era necessário um Estado forte e autoritário para organizar a nação e criar um “povo brasileiro”, missão urgente pois era ele que devia garantir a unidade do país. Esse período forneceu os grandes nomes do autoritarismo de direita cujos trabalhos formam até hoje os fundamentos do pensamento político brasileiro: entre outros, Alberto Torres, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, Octávio de Faria, Miguel Reale e Francisco Campos. 

Os anos 1960 testemunham transformações que se produzem simultaneamente na forma em que o intelectual estava habituado e habilitado a intervir e no lugar de onde ele intervinha. O final dessa década marca o inicio da era que os intelectuais tomam parte na política procurando menos agir na sociedade do que influenciar seu próprio meio. Consequentemente, o intelectual “demiurgo” antes encarregado da representação popular, se apaga em benefício do intelectual “professor-pesquisador”, crítico, que se endereça antes de tudo aos seus pares e a seu público. O intelectual segue sendo um ator político, mas, diferentemente das décadas precedentes, um ator que se coloca no interior da sociedade e das relações de força. 

O Ministro do STF Luís Roberto Barroso, arauto do que o cientista político Christian Lynch chamou de “revolução judiciarista”, parece querer ressuscitar a figura do “intelectual demiurgo”, portador da consciência nacional e moralizador e organizador do Estado e da sociedade, que tem uma longa tradição em nossa história e, há de se convir, foi marcado por um comportamento pedante e autoritário. Da mesma forma que é legítimo nos questionarmos sobre a eficácia do tenentismo togado na moralização da vida política do país e no aperfeiçoamento e consolidação da democracia, também é legítimo nos questionarmos sobre a eficácia do “intelectual demiurgo” no debate das ideias. .
 
Diogo Cunha é Doutor em História pela Universidade Paris 1 (Panthéon-Sorbonne), pós-doutorando em Ciência Política e professor-substituto de Teoria Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). 

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