A Suprema Corte e a questão da lealdade
por André Araújo
Um juiz indicado para um Supremo Tribunal deve ser leal a quem o indicou? A História indica que a lealdade é um dos mais altos valores civilizatórios, acima da conveniência política, acima da moral e da ética, é um valor essencial para compor as regras que fez o homem se alçar a um nível superior aos animais irracionais. Animais não são leais e só percorrem o caminho da sobrevivência, mas o homem se elevou para o patamar da civilização por um conjunto de valores entre os quais a lealdade está em lugar central através da História conhecida.
No histórico da Suprema Corte dos EUA se registra o extraordinário valor da lealdade na relação entre os Presidentes dos Estados Unidos e os juízes que eles indicaram para a Suprema Corte, um entendimento que é parte do alinhamento político entre o Presidente e o indicado no modelo de democracia que arquitetou a construção dos Estados Unidos.
Vamos tomar como exemplo a longa presidência de Franklin Roosevelt, de 1933 a 1945.
Roosevelt teve três grandes batalhas na sua longa Presidência, o programa do New Deal contra a Grande Depressão, a luta contra o nazi-fascismo e a investida para controlar a Suprema Corte; sua arqui-inimiga desde o primeiro dia de governo após derrotar Herbert Hoover.
Quando Roosevelt assumiu em 1933 a Suprema Corte era dominada pelos conservadores que não aceitavam o programa do New Deal, uma plataforma visando usar o Estado como instrumento para sair da Grande Depressão, que trouxe miséria e desalento à população americana, com índices de desemprego que se aproximavam dos 40%. Os juízes da Corte se filiavam à linha monetarista, a mesma que hoje comanda a politica econômica brasileira, eles achavam que o mercado sozinho daria conta da saída da Depressão, o que era uma ilusão absoluta, o mercado sozinho não iria tirar do abismo a economia americana nem em 100 anos, era preciso o Estado usar de sua força para reativar a economia.
Roosevelt, orientado por Keynes, acreditava que políticas públicas eram essenciais para relançar a economia americana. Tentou então de todas as formas substituir os juízes da Suprema Corte, que tinham mandatos vitalícios, inclusive apresentou ao Congresso projeto para aumentar o numero de juízes para 17, que não foi aprovado. Sua luta levou mais tempo do que previa e a natureza se encarregou de abrir oito vagas durante seu mandato.
No decorrer de seus 12 anos conseguiu nomear 8 juízes e para cada vaga indicou colaboradores que trabalhavam no seu Governo ou aliados políticos de confiança, para com isso obter apoio e neutralizar oposição a seus projetos. Dentro da regra civilizatória, cada um dos indicados agiu com lealdade a Roosevelt que teve uma Suprema Corte dedicada a ele e seu programa de Governo, apoiando sua plataforma e combinando com seus pontos de vista.
É puramente teórica a ideia de que uma Suprema Corte deve ser independente do Executivo a ponto de contestá-lo frontalmente. Não é assim que opera um grande Estado pela simples razão de que um Governo em conflito com a Suprema Corte não consegue funcionar. Nenhum Pais é governável a partir de conflitos permanentes entre poderes.
Desacordos pontuais podem ocorrer sobre temas específicos, esse debate está dentro do modelo de Democracia, mas o choque frontal permanente simplesmente dissolve o Estado.
LEALDADE DE GOVERNO E LEALDADE PESSOAL
Um juiz indicado para a Suprema Corte tem que lidar com dois tipos de lealdades, a primeira em relação ao Governo, um juiz pode discordar pontualmente de atos do Governo que o indicou mas está fora de cogitação a deslealdade pessoal com quem o nomeou.
O Presidente que indica um juiz da Suprema Corte tem o direito de esperar lealdade PESSOAL desse por ele nomeado, assim indica a História da Suprema Corte dos EUA e essa lealdade nada tem a ver com Democracia, trata-se de um valor ACIMA DA JUSTIÇA, sempre um valor relativo, enquanto a LEALDADE é um valor absoluto. A Democracia americana NÃO conhece deslealdade de juiz da Suprema Corte com o Presidente que o indicou, a lealdade é esperada e observada, faz parte do código de alianças no círculo mais alto do poder em Washington.
OS JUIZES DE ROOSEVELT
Roosevelt indicou o senador Republicano Hugo Black, o senador Republicano James Byrnes, os ex-Procuradores Gerais Frank Murphy e Robert Jackson, o Procurador Stanley Reed, o ex-presidente da Comissão de Valores Mobiliários William Douglas, o juiz da Corte Federal de Washington Willey Rutledge e seu amigo pessoal e professor de Harvard Felix Frankfurter.
O juiz mais próximo indicado por Roosevelt foi Felix Frankfurter, judeu nascido em Viena e que veio para os EUA com 12 anos de idade. Frankfurter foi juiz de 1939 a 1962, conselheiro de Roosevelt, com o qual passava os fins de semana em Hyde Park, a casa de campo de Roosevelt nas margens do Rio Hudson, era o interlocutor do Presidente junto a Suprema Corte, Roosevelt atuava politicamente para resolver seus problemas na Suprema Corte, não podia ter problemas legais para operar a complexa legislação do New Deal e os atos administrativos e diplomáticos para o comando da guerra mundial em duas frentes.
Os oito indicados por Franklin Roosevelt tinham alto gabarito intelectual, sensibilidade para a politica e especialmente, eram amigos de Roosevelt conhecidos de longa data, em quem ele podia confiar, as relações pessoais eram da essência das nomeações feitas pelo Presidente.
Robert Jackson foi indicado por Roosevelt para ser o principal Promotor no Tribunal Internacional de Crimes de Guerra de Nuremberg, função que o tornou internacionalmente conhecido por exposição à mídia, filmes documentários e de ficção, sua atuação em Nuremberg ao lado do Promotor soviético Roman Rudenko foi registrada na História.
A QUESTÃO DA LEALDADE EM POLÍTICA
A lealdade é o valor mais alto da política através da História. Sem ela não há como o Estado funcionar. A negação da LEALDADE faz o conceito de Estado regredir à Era das Cavernas.
O tragédia de Shakespeare “JULIO CESAR“ tem seu eixo em torno da questão da deslealdade de MARCUS TULIUS BRUTUS contra JULIO CESAR, seu benfeitor, colocando a maldade e a desonra em BRUTUS, personagem maligno da História, símbolo máximo da DESLEALDADE, atormentado pelo que fez a ponto de terminar a vida com o suicídio.
O CASO DE ROBERTO CAMPOS E JUSCELINO
Um caso claro de LEALDADE pessoal na politica brasileira foi a atitude do então poderoso Ministro de Planejamento do Governo Militar de 1964, ROBERTO CAMPOS. Quando o Presidente Castello Branco lhe apresentou para contra-assinatura o Decreto de cassação do ex-Presidente Juscelino Kubitschek, em 15 de agosto de 1964. Roberto Campos disse a Castello “Senhor Presidente, não posso assinar esse decreto, não vou trair quem me beneficiou, fui Embaixador de Juscelino em Londres, seria indigno apunhalá-lo na desgraça, o senhor pode me demitir agora mas eu não assino.” Roberto Campos mostrou CARÁTER de grande homem.
Poderia ele mesmo se tornar um perseguido por esse ato, mas não se importou, prevaleceu a questão de caráter representando a lealdade a quem o beneficiou. Castello respeitou sua atitude e o Decreto de cassação de JK foi publicado sem a assinatura de Roberto Campos.
O CASO PETAIN
O Marechal Henri Phelippe Petain foi o grande colaborador da França derrotada com o Terceiro Reich, um papel indigno perante a História. Finda a guerra, o Marechal Petain foi submetido a julgamento por um tribunal francês sob acusação de crime de alta traição por colaboração com o inimigo, o que era uma evidência reconhecida por todo o mundo.
Foi sentenciado a morte por fuzilamento, a sentença foi colocada para o Presidente do Governo provisório da Republica Francesa, Charles De Gaulle, para sanção. De Gaulle recusou-se a assinar a sentença de morte de Petain. Alegou questão de lealdade. Petain foi padrinho de batismo de seu filho por isso recebeu na pia batismal o mesmo nome de Petain, Henri Phelippe, além disso Petain conseguiu para ele o primeiro cargo politico, Subsecretário da Guerra em 1934. Foi através desse cargo que De Gaulle ganhou projeção politica.
De Gaulle comutou a pena para prisão perpétua, que foi cumprida no Fort Saint Pierre na Ilha de Yeu, litoral atlântico francês. Petain lá morreu na cama em 1951, cumpriu a pena ao lado da esposa, era na realidade uma prisão domiciliar dentro de uma fortaleza.
De Gaulle foi muito criticado, mas manteve-se firme, “lealdade é inegociável” e essa lealdade para ele era pessoal e não de Estado, sua mão não poderia assinar a sentença de morte de quem o beneficiou em outro momento da vida.
UMA QUESTÃO DE ESTADO
No seu nível mais elevado um Estado não pode funcionar sem a lealdade no seu topo. Essa é a liga que faz o Poder se transformar em atos de governo na cadeia hierárquica, é assim em uma empresa, em um time de futebol, em uma a Prefeitura, em um Exército. A lealdade está muito acima de Justiça, cujos conceitos são sempre subjetivos, tanto que é preciso muitas mentes para interpretá-la em conflito. A lealdade é objetiva e simples, um valor mais alto sem o qual os Estados se decompõe em lutas de selva longe da civilização.
Nas grandes Democracias como Reino Unido, França, Alemanha e Estados Unidos os pactos de lealdade entre quem indica cargos como juízes de Suprema Corte, Procuradores Gerais e Chefes de Policia são levados a sério. A ideia de que é possível trair na curva da esquina é inconcebível. Mas nas sociedade primitivas esses códigos civilizatórios não são observados, uma das marcas do atraso de costumes e regras que distinguem países avançados de primitivos, quanto mais atrasado o Pais menos se observam os códigos de hora.
LEALDADE não é incompatível com Democracia, ao contrario, é a base da Democracia.
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