Por Kiko Nogueira
Levando em conta essa tensão epistêmica que estamos vivendo — em que um certo padrão mínimo de racionalidade perde para os subjetivismos, utilitarismos (é só ver o voto do ministro Barroso no HC 152.752 – caso Lula) voluntarismos, realismos e quejandos, como se fôramos tomados um humptidumptismo interpretativo (dou às palavras o sentido que quero) — escrevo estas mal traçadas linhas a seguir.
Palavras e coisas, eis a angústia que persegue o homem desde a aurora da civilização. Como dar nome às coisas? Quais as condições de possibilidade para que eu possa dizer que algo é? Essa partícula “é”: eis o busílis.
Pois vendo, entristecido, o desdém com que — mormente no mundo jurídico — se trata a questão da atribuição de sentidos, deparei-me com a crônica que consta no título do livro O Vendedor de Palavras, de Fábio Reynol. Trata-se da crise gerada pela “grave falta de palavras”. Palavras revelam e escondem. Desvelam e velam. Assim, quando faltam palavras, falta mundo. Que nada seja onde a palavra fracassa, diz um dos meus poetas (S. George). Adapto, aqui, a história montada por Reynol ao que uma professora disse na TV.
Pois um professor resolveu colocar uma banca de venda de palavras. Uma mesa, uma pilha de livros e a cartolina: hermenêutica, presunção da inocência, legalidade, precedentes, súmulas, jurisdição constitucional, pós-positivismo, positivismo, direito/moral, princípios, ativismo — apenas R$ 100!
Demora quase quatro horas para que o primeiro de mais de 50 estudantes, professores de Direito, integrantes de carreiras jurídicas e outros jovens e tantos já agastados bacharéis, parar e perguntar (segue diálogo jovem bacharel – JB e professor -VP):
JB — O que o senhor está vendendo?
VP — Palavras. A promoção do dia é esse combo que está na placa. Na verdade, a promoção é inédita: estou vendendo algumas palavras já “ajuntadas”, uma espécie de combo epistêmico. E vem com um guia de instruções. É excelente para quem sofre de indigência lexical.
JB — O senhor não pode vender palavras. Elas não são suas. Palavras são de todos.
VP — Você sabe o significado das palavras que estão na cartolina?
JB — Não.
VP — Então você não as tem. Não vendo algo que as pessoas já têm ou coisas de que elas não precisem.
JB — Mas eu posso pegar essas palavras, uma por uma, de graça no dicionário. Ou em um livrinho resumidinho ou facilitado ou mastigado.
VP — Você tem dicionário em casa?
JB — Não. Mas eu poderia muito bem ir à biblioteca pública e consultar um. Ou piratear na internet.
VP — Por isso estamos em insolvência epistêmica. Mas, diga-me: você estava indo à biblioteca?
JB — Não. Na verdade, eu estou a caminho da livraria para comprar um livro tipo “direito-mais-simples-possível”. Estou fazendo concurso.
VP — Então veio ao lugar certo. Já que você está para comprar algo desse tipo, recheado de obviedades e palavras já bem usadas, surradas e desgastadas, pode muito bem levar para casa esse combo epistêmico por apenas R$ 100.
JB — Afinal, o que pretende com isso? O que as pessoas vão fazer com as palavras? Palavras são palavras, não enchem barriga.
VP — Ora, os filósofos dizem que cada palavra corresponde a um pensamento. Se temos poucas palavras, pensamos pouco. Se eu vender uma palavra por dia, trabalhando 200 dias por ano, serão 200 novos pensamentos por aí. Isso sem contar os que furtam o meu produto. Há muitos trombadinhas de palavras por aí. Mas também há os que têm medo de descobrir o significado das palavras. Ficam ao redor… mas não compram. Preferem entrar no Google e pegar de terceira mão… Olhe aquele sujeito de gravata — que, com certeza, é um “operador” do Direito — fazendo um olhar de desdém. Ora, quem desdenha quer comprar. Nunca me enganou… Eu tenho certeza de que ele tem um dicionário em casa. Assim que chegar lá, vai abri-lo e me roubar a carga. É um sonegador de palavras. De todo modo, suponho que para cada pessoa que se dispõe a comprar uma palavra, pelo menos quatro a roubarão. Mesmo assim, eu provocarei 800 pensamentos novos em um ano de trabalho. É minha função social.
JB — Mas o senhor está querendo fazer, como vou dizer… me falta a palavra…
VP — Viu só? Você está com séria falta de palavras.
JB — Está bem. Ganhou esta. Tive dificuldade em compreender, porque não sou bom em… de novo me falta a palavra…
VP — É. A coisa está feia. Você já pode fazer comentários raivosos e hate speeches epistêmicos em colunas de sites jurídicos. O Conjur está repleto deles. Você parece ter os atributos certos, como a inópia mental. Noto a falta, principalmente, o ponto de estofo desse seu estado de insolvência: talvez não saiba para que servem as palavras, porque acha que elas são apenas instrumentos. Provavelmente você lida com as palavras como se fossem meras ferramentas, como machados e picaretas.
JB — De fato, estou com grave falta de palavras e também do sentido da “palavra”. Mas não acredito muito nestas palavras que o senhor está dizendo. Para o que me proponho, o conjunto de palavras que disponho é suficiente. Eu me basto. Sou um ser livre. E prático. As coisas são como são.
VP — Sei. Este é o ponto. Agora tenho certeza de que você precisa levar o combo, mesmo.
JB — Não me importa nada disso. Sou um homem prático. Sei o que sei. E o que sei sai de minha cabeça. Como bem diz um professor meu, “cada um explica o mundo e o direito segundo sua consciência”. E ele tem razão. Que cara inteligente, esse meu professor.
VP — Vejo que você está completamente perdido, meu jovem.
JB — Ainda assim, insisto que isso tudo é teoria. O senhor usa palavras estranhas, põe palavras estranhas para vender, como filosofia da consciência, hermenêutica, pré-compreensão, interpretação conforme, etc. Por exemplo, por que essa sua insistência com a palavra “garantismo”? E essa sua mania de dizer que onde está escrito presunção da inocência devemos entender “presunção da inocência”? Por que as palavras não tem o sentido que o intérprete quer? Poxa. Meu professor é que sabe das coisas. Ele diz que, graças a teoria de Dworkin, caiu a presunção da inocência. Gostei desse tal de Dworkin. Eu não gostava da presunção essa. Parece que alguns ministros do Supremo também não gostam. Essa palavra “presunção” parecia presunçosa. A propósito, meu professor fala muito em ponderação. Isso não está no seu catálogo de vendas.
VP — É verdade. É porque não vendo qualquer coisa. Dou-me ao respeito. Essa palavra hoje está valendo não mais do que R$ 3,50. Valor de face muito baixo. Sabe como é. Passando de boca em boca, deu no que deu. Passou a ter tantos sentidos, que seu preço caiu ao limite mínimo. Eu posso vender essa palavra, mas cobrarei uma fortuna. Mas venderei a legítima, só que acompanhada de um folheto explicativo. Para que o freguês não compre gato por lebre. Aliás, você deve dizer ao seu professor que compre um livro do “tal” Dworkin. E que o leia.
JB — Insisto que meu professor tem razão. Ou seja, de que na prática a teoria não é assim.
VP — Hum, hum! Vamos lá. Você não está apenas necessitando comprar muitas palavras. Está precisando mesmo é de um banho de descarrego epistêmico. “Sai desse corpo que não lhe pertence…”. Mas, vamos lá… É normal que na área do Direito se pense que é possível fazer uma cisão entre teoria e prática, entre questão de fato e questão de direito. Quem odiava isso, por exemplo, era Schopenhauer. Quem ler o livro Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão, vai ver como ele odiava quem dissesse a frase: “isso é muito bom na teoria, mas na prática não funciona”. O que se pode fazer na “prática” sem que isso seja de algum modo teorizado? No senso comum teórico no qual você (sobre)vive há uma algaravia conceitual sobre os dualismos metafísicos como “essência e aparência”, “teoria e prática” etc. Desculpe-me, dei-me conta de que você precisa comprar também as palavras algaravia, dualismos, senso comum e metafísica.
JB — Estou saindo. Larguei. Adeus! Só critica e não apresenta solução.
VP — Ei! Vai embora sem pagar?
JB — Tome seus R$ 100.
VP — São R$ 1.500.
JB — Como é que é?
VP — Pelas minhas contas, deve-me por volta de R$ 1.500. Entreguei-lhe um monte de palavras. Só o combo estava na promoção. Mas como senti um laivo de interesse no seu olhar – todos néscios têm salvação – , isto é, senti que você se deu conta de que existe uma porção de palavras que não conhece, faço todas pelo mesmo preço. Afinal, Lacan dizia que a linguagem surge na falta. E vi essa falta em você. E como vi. Na verdade, me comovi. Ups: como diz o Professor Lenio Streck, palavra é pá-que-lavra. Lavrou! Lacrou!
JB — Não complica mais minha vida, por favor. Fecha a conta.
VP — Então somando tudo, incluindo nulidade parcial sem redução de texto, juiz natural, subjetividade, pré-compreensão, metafísica e néscio,[1] por baixo, dá uns R$ 1.300. Entretanto, levando todas, dou de brinde a diferença entre princípios e regras. Esse conceito vai mostrar a você que princípios são deontológicos. Ou não são princípios. Aliás, vai de brinde a palavra deontológico, que não é o que se pensa por aí. E também o conceito de presunção da inocência. Leva também “presunção de não culpabilidade”. Estão muito na moda. Mas essas palavras devem ser, de novo, vitaminadas. Hoje estão sofrendo de anemia significativa, para usar uma expressão de Warat. Veja só, ganhou de brinde mais uma: anemia significativa. Até a palavra néscio, com o tempo, ficou descaracterizada, pelo número incontável deles (dos néscios). Multiplicam-se feito ratos.
JB — Beleza. Fiquei freguês. Volto amanhã depois de digerir estas que o senhor me vendeu hoje.
VP — Ótimo. Eis aí o início de uma fusão de horizontes. Quando voltar, já terá um bônus. Levará o conceito de democracia. Vou lhe dar também o conceito de habeas corpus e o que significa “conhecimento em habeas corpus”.
Sigo na resposta, caro jovem bacharel: Pensando bem, já que fui com a sua cara, também vou lhe dar o conceito de mutação constitucional (não, não é o conceito que o ministro Barroso diz que é). Depois do que fizeram com essa palavra nos últimos tempos, valha-me… Culpa do solipsismo. E do neoconstitucionalismo. E do utilitarismo. E do realismo. Também vou lhe vender outras, bem baratinho, como “ironia”, “sarcasmo” e “metáfora”.
E complemento, jovem bacharel: “Vou lhe vender a palavra mais cara: “colegialidade”. Dizem que é um princípio. Não, não é. De certo modo, o professor Lenio Streck adivinhou o que seria feito dela – e ele fez isso com antecipação, criticando o seu uso ad hoc (ver aqui) -leiam e entenderão; a ministra Rosa Weber usou esse pamprincípio para negar um habeas corpus (falo do HC 152.752) – aliás, como é o desejo de quem defende o tal pamprincípio! Ups: Já lhe dei mais uma porção de palavras de brinde. Agora falta explicar isso tudo para você. Volte amanhã”.
Fim do primeiro ato.
Post scriptum: o colunista fará um artigo específico sobre o julgamento de quarta-feira (a coluna é entregue antes do final, por questões operacionais), especialmente levando em conta a mutilação constitucional e a colegialidade!
[1] Tomás Valladolid, da Espanha, sobre uma coluna que escrevi sobre os néscios, escreveu-me, dizendo: “Excelente artigo, amigo Lenio. Com efeito, os néscios sempre foram os grandes adversários da filosofia. Por exemplo, se me permitires, Maimônides os desdenha em seu maravilhoso ‘Guia para perplexos’. Este grande filósofo do judaísmo distinguia o homem perplexo dos homens néscios: estes estão na vida “de pronto”, embora sejam uns ignorantes. Em um sentido negativo, esta obra de Maimônides é um guia contra néscios”. Bingo, caro Tomás.
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