quinta-feira, 5 de abril de 2018

A França no rumo do modelo colonial latino-americano

http://resistir.info/ // por Philippe Chatelin [*]

Qualificar a Revolução francesa de "revolução burguesa" é um lugar comum, mas exprime uma realidade: a formação de uma burguesia nacional portadora de ideais liberais e igualitários. Em França, foi esta combinação ideológica que caracterizou nossa luta de classes e nossa história. Se no século XIX o proletariado estava na Inglaterra e as classes na Prússia (na constituição prussiana), a luta de classes estava em França! Em França, a burguesia nacional não é completamente autónoma e não deve se tornar. Seu comportamento depende das lutas e portanto da articulação das relações entre classes populares e classes médias.

O que poderia se tornar o nosso país sem o ideal da nação e a realidade de uma burguesia nacional? A França dos anos 2010 começa a aproximar-se perigosamente do modelo latino-americano tão bem descrito por Eduardo Galeano. 
O desmoronar de uma nação 

A desindustrialização da França parece hoje coincidir com a desaparição da democracia. Desde o estabelecimento do euro, a França instalou-se no défice comercial, processo que é acompanhado por uma decomposição da vida política. Eis uma entrada em matéria económica bastante conveniente para questionar as ligações entre economia e vitalidade da nação. Pode-se imaginar um país desenvolvido sem indústria, sem capitalismo e sem burguesia?

Retornemos rapidamente ao passado e à ascensão, antes da queda.

Em França, como alhures, o desenvolvimento económico repousou amplamente numa colaboração entre o Estado e a burguesia nacional. Durante a Primeira revolução industrial, o governo deu os impulsos e decidiu grandes investimentos, depois deixou os actores económicos capitalistas agirem livremente para explorar as infraestruturas.

Este período corresponde, com um pouco de atraso em relação à Inglaterra, ao momento do desenvolvimento dos ideais democráticos. Crises económicas começaram a surgir, a partir do Segundo império, quando o capitalismo pretendeu libertar-se das regulações estatais. Mas este capitalismo permaneceu nacional, com elites ansiosas por moderar as políticas que afectavam ramos industriais. Uma vida ideológica intensa, iniciada sob a Revolução francesa, acompanhou o desenvolvimento industrial e permitiu conciliar capitalismo e melhoria do nível de vida. O afrontamento entre princípios de liberdade e de autoridade, de igualdade e desigualdade acabou por favorecer a luta de classes, a democracia liberal e um controle nacional do capitalismo. Sua vida política muito rica fez da França, então em posição central, um modelo de inovação.

Ainda que a França nunca tenha sido um grande país industrial, ela foi por excelência o país da luta de classes e o ensaio clássico de Marx chama-se com efeito "As lutas de classe em França". Esta definição da nação por classes que ali estão em luta durou, ainda que amortecendo, até ao século XX. Uma inventividade social real decorreu da mesma, incluindo um sistema de extracção na fonte da mais-valia do capital, o sistema das contribuições para a Segurança social, ainda em vigor.

Apanhado nesta dinâmica de longo prazo, o patronato, domado temporariamente em 1945, desde então silenciosamente reconstituiu suas forças, para finalmente querer sair da dialéctica de classes e da nação, avançando com a "construção europeia". Esta construção revelou-se uma arma de destruição maciça da democracia liberal, através do contorno do quadro nacional da luta de classes. A criação da União Europeia foi o culminar deste processo: em 1992, ao inventar o euro, nossas classes superiores renunciaram a conduzir uma política económica independente. Os franceses, ao votarem o Tratado de Maastricht, por sua vez renunciaram a existir enquanto nação. A sua tradicional luta de classes não é mais possível, o seu mundo operário vai-se tornar outra vez força de trabalho atomizada.

Mas segue-se um verdadeiro desastre económico, revelado pelo surgimento de um défice comercial estrutural. Um "1940" de longa duração está inscrito nos tratados europeus TUE e TFUE que constitucionalizam as políticas económicas. A entrada na era pós-nacional certamente desembaraçou as classes superiores da democracia e da luta de classes, mas o preço económico desta vitória social terá sido elevado: libertado da sua nação, o nosso capitalismo implode. Entretanto não se pode estar seguro de que a nossa regressão industrial seja um acidente, uma consequência não desejada por classes burguesas pouco conscientes da ligação entre vitalidade da Nação e força da economia. Pois, com efeito, as políticas efectuadas desde 1992 parecem realmente como sabotagem. A escolha da Siemens em detrimento da Alstom e a destruição programada do SCNF talvez não sejam senão elementos planificados de uma escolha anti-nacional em acção.

Fazer política e pretender governar é hoje ocupar-se da "redução dos défices" da gestão da polícia. A introdução do sistema da Dívida evoca a sorte dos países do Terceiro Mundo pressionados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) nos anos 1970. Os franceses, talvez por vaidade, querem continuar a crer que vivem numa das democracias do mundo livre e dominante. A sua situação real é aquela do elo fraco num novo género de sistema colonial, esta União Europeia que abrange países dominados e um país dominante, a Alemanha, que impõe suas regras e seus homens.

Ora, existe um continente que vive esta situação desde há duzentos anos, próximo da França culturalmente, pela língua e pelo temperamento, a América Latina cujo estudo pode nos informar acerca do nosso futuro.

O nacionalismo como projecto social: o caso da América Latina 

A sociedade latino-americana repousa numa dinâmica portadora dos ideais de liberdade e igualdade, como a França. Estes encarnam-se em forças sociais que tomam uma forma bastante diferente desta que existe na Europa: as guerrilhas, os movimentos indigenistas, os cartéis, os grupos paramilitares. Estes dispositivos, cujo funcionamento é horizontal, regulam o clima de violência inter-individual que caracteriza o continente, na ausência de Estado.

Enquanto o Estado-nação construiu-se num longo período em França, a América Latina não tem nem o Estado nem a nação. O nacionalismo, que não é um estado, portanto também faz parte da dinâmica geral: "a causa nacional latino-americana é, antes de tudo, uma causa social" afirma Eduardo Galeano [1] . No século XIX, a América Latina inspirou-se muito nas ideias saídas da Revolução francesa. As correntes liberais, independentistas, afirmavam-se em oposição ao sistema hierárquico da monarquia espanhola. Mas este modelo anti-autoritário não permitiu organizar o Estado: a relação do indivíduo com o Estado é demasiado frouxa.

Esta fraqueza estrutural do Estado favoreceu a manutenção de um modelo económico de tipo colonial e impediu a constituição de capitalismos nacionais. Ela impediu a formação de burguesias nacionais capazes, como em França no prolongamento da sua Revolução, que se sentissem responsáveis pelo conjunto da população, tal como a nobreza.

A descrição de um continente que conservou seu estatuto colonial apesar dos movimentos de independência está no cerne da obra "As veias abertas da América Latina", de Eduardo Galeano (1970) [NR] , painel sobretudo económico da História deste continente.

A história da América Latina opõe-se à dos Estados Unidos, cujo modelo económico repousa na autonomia em relação à Europa, não sendo expatriadas as riquezas produzidas. Aparentemente, o valor da igualdade, da horizontalidade, enfraqueceu a relação de autoridade necessária para um mínimo de eficácia económica.

Assim, a América Latina permaneceu pouco desenvolvida, conservando seu sistema de grande propriedade: em 1910, na véspera da reforma agrária impulsionada pela Revolução, as terras mexicanas eram detidas por cerca de 800 proprietários, dos quais muitos eram estrangeiros a viverem na Europa ou nos Estados Unidos. Dos 15 milhões de habitantes, 12 milhões trabalhavam nas haciendas [2] . Em 1911, o escritor americano John Kenneth Turner lamentava que seu país tivesse transformado em vassalo o ditador Porfirio Diaz e transformado o país numa colónia escravizada [3] . Diante do governo nacionalista de Lazaro Cardenas, cujas reformas sociais são comparáveis àquelas da Frente Popular em França, o cartel petrolífero dos EUA impôs um embargo entre 1939 e 1942!! [4] A Standard e a Shell partilhavam o território mexicano. Cardenas nacionaliza a exploração do petróleo. Mais ao Sul, a economia da Venezuela repartira-se no século XX entre o petróleo e os latifúndios tradicionais. Nos anos 1950, a Venezuela, considerada como o grande lago de petróleo da Standard Oil Company, era a maior base militar americana presente na América Latina. Já no século XIX a indústria na América do Sul repousava na boa vontade dos capitalistas europeus, que controlavam o comércio.

O livre comércio, tal como o "bom" nacionalismo, é um privilégio das potências económicas. As independências beneficiaram assim as grandes potências comerciais, organizando a indústria e destruindo as produções locais tradicionais. Durante esta época, os Estados Unidos consolidavam sua economia através do proteccionismo. O exemplo dos Estados Unidos a sairem da Guerra civil revela assim, sublinha Galeano, a existência de dois modelos históricos, um baseado no livre comércio e na escravidão, o outro no proteccionismo e na economia intensiva, "duas concepções do destino nacional".

Na América Latina, esta situação impediu a emergência de burguesias nacionais. Os burguesas não são senão os comissários de um capitalismo estrangeiro dominador (os marxistas falam de "burguesia compradora"). Para eles, a nação não é portanto um objecto a defender:
"A nação não é senão um obstáculo a ultrapassar – pois a dependência por vezes desagrada – e um fruto delicioso a devorar. (...) A grande galopada do capital imperialista encontrou a indústria local indefesa e sem consciência do seu papel histórico. Quanto ao Estado, sua influência sobre a economia latino-americana, que se enfraquece desde há duas décadas [em 1970] foi reduzida ao mínimo graças aos bons ofícios do FMI. (...) Na América Latina, o processo de desnacionalização foi muito mais rápido e mais económico e tem tido consequências incomparavelmente mais terríveis"[5] .
Ao contrário da Europa, cuja burguesia industrial se tornou hegemónica, a empresa na América Latina foi essencialmente obra do Estado: "O Estado ocupa o lugar de uma classe social (...): ele encarna a nação e impõe o acesso político e económico das massas populares aos benefícios da industrialização. Nesta matriz, obra dos caudilhos populistas, não se forma uma burguesia industrial radicalmente de classes até então dominantes".[6] E, com excepção do México, os populistas, como Péron na Argentina, não tocaram na estrutura latifundiária.

Na América Latina, a burguesia, subordinada às potências económicas, portanto teme mais a pressão popular do que aquela do imperialismo estado-unidense. Na Europa e nos Estados Unidos, ela se desenvolve de maneira muito diferente.

Esta realidade explica a capacidade da burguesia latino-americana de sabotar as economias dos seus próprios países quando consideram necessário, por razões políticas, em geral com o apoio dos Estados Unidos: a história do continente é assim pontuada por movimentos de desestabilização económica interna, com o objectivo de se opor às reivindicações populares e à democracia liberal: no México dos anos 1920, um dos aspectos da guerra dos Cristeros contra a Reforma Agrária é a execução de um boicote económico para reverter o governo revolucionário. No Chile, em 1973, um bloqueio económico interno, nomeadamente de produtos de primeira necessidade, visava o derrube do governo de Salvador Allende. As desestabilizações deste tipo pontuam desde 1999 a história da revolução bolivariana.

Retorno à Europa 

Entregar-se de pés e mãos atados a uma potência dominante, com menosprezo de um capitalismo nacional, quer actue a partir dos Estados Unidos, para a América Latina, ou da Alemanha, para a Europa, não faz senão arrastar nações já constituídas para uma situação de tipo colonial na qual as burguesias ex-nacionais voltam-se contra os seus povos. A ideia de "nacionalismo como causa social", conforme a expressão de Galeano, deverá portanto retomar seu caminho.

Este desvio pela América Latina revela de maneira empírica o erro fundamental dos ideólogos de esquerda que pretendem que a saída do capitalismo passaria pela destruição do Estado-nação.

O paradoxo actual é que as convicções europeias das classes verdadeiramente médias, que incluem as profissões intermediárias e os professores universitários, são muito superficiais. Contentando-se em estigmatizar, aquando de movimentos sociais ou nos seus programa políticos, o Presidente da República ou a Constituição da Vª República, elas mostram que não encaram a luta senão no quadro nacional. Trata-se de uma estratégia de evitamento da questão europeia ou simplesmente de uma incapacidade visceral em se projectar mentalmente fora das fronteiras nacionais para analisar os mecanismos de dominação? Parece em qualquer caso existir um sério "fosso teórico" sobre a questão da inserção das lutas nas relações internacionais. Mas sejamos optimistas. Não será preciso muita coisa para que as classes verdadeiramente médias se juntem às classes populares, numa rejeição comum do desmantelamento do Estado-nação. 
24/Março/2018
1. Eduardo Galeano, Les veines ouvertes de l'Amérique latine, 1970, Pocket/Terre humaine, p. 330.
2. Ibid., p. 167.
3. John Kenneth Turner, "Mexico barbaro", 1911.
4. Eduardo Galeano, op. cit., p. 221.
5. Ibid., p. 289.
6. Ibid., p. 291.

[NR] "As veias abertas da América Latina" pode ser descarregado aqui . 


[*] Historiador

O original encontra-se em www.les-crises.fr/... 


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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