quarta-feira, 30 de maio de 2018

O petróleo é nosso 2.0, por Fábio de Oliveira Ribeiro


O petróleo é nosso 2.0 

por Fábio de Oliveira Ribeiro

A crise aguda por que passa o país expõe uma dupla fragilidade do Brasil. A primeira diz respeito à democracia representativa. O usurpador Michel Temer se comprometeu com o plano de governo do PT, mas assim que conseguiu derrubar Dilma Rousseff e chegou à presidência ele decidiu impor ao país um modelo neoliberal de exploração do petróleo e de administração da Petrobras que não foi aprovado pelos eleitores em 2014.

A segunda, evidenciada pelo caos que foi provocado pela alta do preço do diesel, diz respeito à vulnerabilidade econômica brasileira às variações internacionais dos preços dos derivados de petróleo. O Brasil não está em condições de se dar ao luxo de exportar petróleo cru a preço baixo e importar gasolina e óleo diesel para garantir a máxima rentabilidade do capitalismo global. A Petrobras não é uma empresa privada. Ela também pertence aos brasileiros e sua administração deve necessariamente levar em conta o predomínio do transporte rodoviário de alimentos, matérias primas, máquinas, equipamentos e eletrodomésticos.

O conflito entre interesse nacional (estabilidade econômica, crescimento e aumento da arrecadação tributária) e o interesse privado (máxima lucratividade dos acionistas privados e fornecedores estrangeiros da Petrobras) se tornou evidente à medida que o governo quer ter uma liberdade que não lhe foi conferida pelas eleições: impor ao país uma política petrolífera que fere os interesses dos caminhoneiros e de todos os segmentos industriais que dependem do transporte rodoviário de cargas. A liberdade dos caminhoneiros e empresários de ter lucro foi cerceada pela do presidente da Petrobras que administrou a companhia ignorando os interesses e fragilidades nacionais.

Já que estamos falando de liberdade, nunca é demais levar em conta as palavras de Celso Furtado:

“A liberdade humana projeta-se, evidentemente, num plano epistemológico que escapa às ‘leis naturais’ explicativas de uma realidade a priori reduzida segundo as exigências dos métodos da ciência. Ou se funda no transcendente, como ocorre com a moral cristã ou kantiana, ou se refere a uma faculdade do homem de autotransformar-se. Como todo ato de criação, a liberdade não pode ser apreendida mediante o estudo de seus ingredientes. A eliminação do transcendente como fundamento da moral leva necessariamente seja ao aviltamento do homem, seja a seu enobrecimento. A idéia de um ‘contrato’ entre seres vivos, como fundamento da vida social, responde a esse desejo de enobrecer o homem. Se, como pensava Kant, a razão prática prevalece sobre o entendimento e os imperativos morais são categorias a priori, o aperfeiçoamento das regras de convivência social não será outra coisa senão a plena realização das faculdades humanas. Entre essas faculdades do sujeito transcendental kantiano e a visão hegeliana da História como transformação do caos em ordem racional existe uma perfeita continuidade. Não obstante as duras críticas que faz do racionalismo do século dezoito, o historicismo inscreve-se no mesmo quadro de busca de um pouco de apoio que desempenhe as funções dos antigos dogmas e ao mesmo tempo refira-se a razão. Nietzsche percebeu essa continuidade, daí tê-lo considerado simples ilusão que afastava o homem da confrontação consigo mesmo.” (Criatividade e dependência na civilização industrial, Celso Furtado, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1978, p. 163)

A crise dos combustíveis marcou um encontro inevitável entre o Brasil governamental (neoliberal desligado de qualquer compromisso eleitoral) e o Brasil real (cuja economia depende do fluxo constante de diesel a um preço razoável). Solucionar o problema imediato mediante a redução de impostos é uma medida paliativa, pois novas fontes de arrecadação terão que ser inventadas e isso acarretará mais desconforto. Além disso, não é justo o país ser acionista majoritário da Petrobras e subsidiar os lucros que serão embolsados pelos acionistas privados estrangeiros mediante a redução da arrecadação fiscal.

Meu pai participou da campanha “O petróleo é nosso” que levou à criação da Petrobras e à instituição do monopólio estatal da exploração petrolífera. O sucesso daquela campanha ecoa na política brasileira desde então. Nem o golpe de 1964 nem a redemocratização do país foram capazes de desfazer o consenso que existia no sentido de que o petróleo é um recurso estratégico que deve ser monopolizado e explorado pelo estado em benefício dos interesses nacionais.

A interferência estrangeira nessa dimensão da economia brasileira foi rechaçada de maneira enfática por Juarez Távora na década de 1950:

“A disputa pelo monopólio, ou, no mínimo pelo predomínio sobre as fontes de produção, usinas de beneficiamento e equipamentos de transporte e distribuição, já não opera apenas por conta dos próprios trustes interessados comercialmente em contratá-los, mas através dos bastidores dos Departamentos de Estado e Estados Maiores Militares, que orientam a política internacional das grandes potências mundiais.

A ambição desenfreada de lucro, açulada pelo incentivo de ações diplomáticas, a serviço do predomínio político e econômico das nações mais poderosas, tem levado os trustes internacionais do petróleo a escreverem uma das páginas mais sombrias da história econômica da humanidade.” (Petróleo para o Brasil, General Juarez Távora, Livraria José Olympio, Rio de Janeiro, 1955, p. 65) 

Na década de 1970, em razão da crise do petróleo, do endividamento externo e das reservas petrolíferas nacionais serem minguadas, o governo militar chegou a pensar em abrir a exploração às empresas multinacionais mediante contratos de risco.

“O ambiente favorável aos contratos chegou, então, ao ponto de levantar a suspeita de que a escolha do presidente da Petrobrás, almirante Faria Lima, para ser governador da fusão Guanabara-Estado do Rio na verdade se destinava a facilitar a aprovação dos contratos pela empresa. Cópias de um documento anônimo atribuído a círculos militares eram distribuídas no Congresso, em setembro, advertindo para a suposta manobra concluindo com a lacônica ameaça de que ‘a cobra vai fumar’.

Segundo os jornais, o governo deveria tomar uma decisão sobre o assunto até o final do ano. Antes deste prazo, entretanto, surgiram as descobertas no litoral de Campos, arrefecendo temporariamente o entusiasmo dos defensores da solução finalmente adotada um ano depois. O grande exagero caracterizou os primeiros palpites dados por autoridades governamentais sobre a capacidade de produção das novas jazidas, apesar das repetidas explicações dos setores técnicos da Petrobrás quanto à total precariedade destas ‘estimativas’, acabou dando mais um ano de prazo à empresa para tentar resolver sozinha o problema.

O próprio presidente Geisel, em pronunciamento feito menos de um mês após a descoberta do campo de Garoupa, fazia apelo dramático aos técnicos da Petrobrás, no sentido de garantir sua entrada em produção em tempo recorde, diante da necessidade de pôr fim à sangria de divisas representada pelas importações de petróleo.

Tudo levava a crer que a Petrobrás teria no máximo dois anos para pelo menos aproximar o País da tão sonhada auto-suficiência. Se não conseguisse isso, ou, então, se não tivesse provado a impossibilidade da tarefa por meio de um número suficiente de perfurações fracassadas, o governo partiria para o recurso às empresas estrangeiras.” (Os contratos de risco e a Petrobras, Fausto Cupertino, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1976, p. 5-6) 

Os militares cogitaram liberar a exploração petrolífera mediante contratos de risco não porque isso fizesse parte de um novo modelo econômico e sim porque havia se tornado uma necessidade contingente imposta pelas fragilidades brasileiras naquele momento. Assim que o país descobriu novas reservas de petróleo o projeto foi convenientemente esquecido, voltando a predominar a ideia de que o monopólio petrolífero e a exploração das reservas nacionais pela empresa estatal faziam parte da agenda de longo prazo da nação. Segurança militar, segurança energética e segurança econômica eram consideradas as três faces de um mesmo fenômeno político e sustentavam a preservação do modelo adotado pelo Brasil desde os anos 1950.

Não por acaso, os jovens e adolescentes eram educados para defender o modelo brasileiro:

“A Petrobrás é uma sociedade anônima cujo capital majoritário pertence obrigatoriamente à União, sendo que a participação minoritária deve obrigatoriamente pertencer a brasileiros natos ou naturalizados radicados no País. A Petrobrás, em virtude da mesma lei, detém os monopólios da pesquisa e exploração do petróleo e gases naturais no território nacional, do transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional e de derivados produzidos no País, bem como o transporte, inclusive de gases raros, por meio de oleodutos e de gasodutos.

Antes da instituição da Petrobrás, já existiam no Brasil várias refinarias particulares, bem como um oleoduto entre Santos e São Paulo, pertencente à Estrada de Ferro Santos-Jundiaí. Das refinarias particulares, cita-se a Ipiranga, firma gaúcha; Manguinhos, situada na Guanabara; União e Matarazzo, situadas em São Paulo; Sabba, localizada em Manaus. Estas empresas após a Lei no. 2.004, só podem se expandir para refinar para a Petrobrás.

A distribuição de subprodutos do petróleo não é monopólio da Petrobrás. Daí o motivo de ser ver postos de gasolina da Petrobrás como da Ipiranga, SHELL, ESSO, TEXACO, PETROMINAS, além de outras firmas.” (Brasil processo e integração - Estudos de problemas brasileiros, G. Galache e M. André, edições Loyola, 10a. edição, São Paulo, 1976, p. 411)

Mesmo quando imaginou ser necessário flexibilizar o monopólio do petróleo para admitir os contratos de risco, o governo militar não mudou o programa de ensino. Os estudantes brasileiros seguiram sendo ensinados e aprendendo que o nosso modelo de exploração petrolífera era baseado no monopólio do produto e na sua exploração pela empresa estatal. Naquela época, os militares também eram ensinados a encarar a exploração do petróleo e seu refino como um dos aspectos importantes da vida econômica nacional.

“A partir de 1970, a PETROBRÁS, resolveu atacar um vultoso programa no setor de refino, visando, entre outras metas, à ampliação da capacidade de processamento de petróleo, à melhoria operacional e à diversificação de sua produção, ajustando esta à necessidades do mercado e dando continuidade aos esforços no sentido de alcançar a auto-suficiência. Várias obras de grande porte foram então concluídas, estando em regime normal de operação, e outras encontram-se em fase final de construção.” (Os transportes no atual desenvolvimento do Brasil, coordenação do general João Baptista Peixoto, Biblioteca do Exército Editora, Rio de Janeiro, p. 300-301)

Fiz questão de citar a obra do general João Baptista Peixoto porque ele enfatiza um detalhe importante. Não existe incompatibilidade entre o mercado (a ser atendido pela Petrobras) e a exploração do petróleo pela empresa estatal mediante regime de monopólio. O conflito entre mercado e monopólio estatal do petróleo é artificial. Ele foi inventado pelos neoliberais na década de 1980, quando alguns economistas passaram a defender a tese de que o Estado é incapaz de produzir bens e serviços com eficiência. Todavia, a ineficiência do neoliberalismo pode ser vista nos postos de gasolina e nas estradas brasileiras.

A crise de desabastecimento da década de 1970 não ocorreu por causa do monopólio do petróleo e sim porque o país tinha reservam minguadas do produto (os campos petrolíferos no litoral começaram a ser descobertos naquela época) sendo obrigado a se endividar para importar o produto. A crise atual ocorre no momento em que o Brasil é auto-suficiente de petróleo e o explora como se o monopólio não fosse bom ou não existisse.

O neoliberalismo da dupla Michel Temer/Pedro Parente nos levou a exportar petróleo cru a preço de banana, a reduzir o refino no Brasil e a importar gasolina e óleo diesel a preços elevados. A lógica neoliberal atendeu ao critério da maximização dos lucros dos acionistas da Petrobras ao custo do caos, do desabastecimento e do aumento artificial e desnecessário da vulnerabilidade econômica brasileira num momento em que nada disso ocorreria se o petróleo fosse nosso e refinado aqui para atender nossos interesses.

A crise atual é o resultado de um novo ataque à Petrobras e ao ideal do monopólio estatal do petróleo que nos foi legado desde a campanha “O petróleo é nosso”. Essa é uma história antiga. Desde o debate sobre a necessidade ou não da exploração de petróleo mediante contratos de risco, os inimigos do Brasil usam basicamente o mesmo argumento.

“Os defensores dos contratos de risco gostam de dizer que a Petrobrás é ‘ineficiente’. O professor Adilson Gomes de Oliveira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, resolveu checar isso. Ele verificou o seguinte: entre 1945 e 1962 as empresas americanas encontraram 50m3 de óleo por metro perfurado. Já a Petrobrás entre 1955 e 1979 obteve 46m3. ‘Ora, a ineficiência da Petrobrás é no mínimo igual à das multinacionais do petróleo nos EUA, que têm uma geologia mais favorável.’

Os entreguistas alegam que uma prova da ineficiência da Petrobrás é que a empresa produz apenas 200 mil barris/dia de óleo. Isso não passa de uma idiotice. É preciso não esquecer que a geologia brasileira não vem se revelando, até agora, muito favorável à descoberta de petróleo. Portanto, a Petrobrás tem que ser muito cautelosa nas áreas a perfurar para não jogar dinheiro fora irresponsavelmente. Eis o que diz a respeito o diretor de Exploração da Petrobrás, Carlos Walter Marinho Campos no trabalho A Pesquisa de Petróleo no Brasil:

‘O petróleo não está onde se quer, mas onde a natureza o criou e escondeu.

É muito importante perfurar, porém, mais importante ainda é fazê-lo apoiado em informações geológicas que sejam as mais completas possíveis. Assim, estaremos investindo bem, evitando perfurações ao acaso, apenas para engrossar estatísticas.’ ” (A farsa do petróleo, porque querem destruir a Petrobrás, Ricardo Bueno, editora Vozes, Petrópolis, 1980, p. 53-54)

Durante o governo Lula o Brasil descobriu o pré-sal. A imprensa alegou que a exploração dele não era economicamente viável. Durante décadas o Brasil investiu recursos escassos para se tornar auto-suficiente a fim de evitar choques de desabastecimento/endividamento como aquele que ocorreu na década de 1970. Agora que o pré-sal se tornou viável a Petrobras está sendo administrada não para abastecer o mercado interno ao menor preço e sim para garantir os lucros de alguns estrangeiros com o máximo de prejuízo para os caminhoneiros, empresários, cidadãos e contribuintes brasileiros. Isso é no mínimo insano.

A campanha “O petróleo é nosso”, da qual meu pai participou, foi estudada de maneira detalhada por Maria Augusta Tibiriça Miranda (Ipsis Gráfica e Editora, São Paulo, 2a. edição, 2004, 576 páginas, obra que recomendo a todos interessados na história da exploração do petróleo no Brasil). A crise em curso, que pode ser considerada uma manifestação do problema que não poderá ser resolvido enquanto houver conflito dentro da Petrobras entre os interesses nacionais e os interesses dos acionistas, sugere o relançamento daquela campanha.

Não somos e não devemos ser escravos dos acionistas da Petrobras. Eles não irão indenizar os prejuízos causados pela crise em curso aos empresário, comerciantes, trabalhadores e cidadãos brasileiros. O Brasil real precisa se encontrar novamente com o Brasil governamental. Isso deve ser feito da maneira mais democrática possível. O país não precisa ser tutelado por militares truculentos e/ou por juízes safados, nem tampouco deixar exclusivamente a decisão da questão nas mãos dos deputados, senadores e lobistas.

Todo poder emana do povo e neste caso o próprio povo brasileiro deve ter liberdade para decidir se o nosso petróleo será ou não explorado em condição de monopólio por uma empresa exclusivamente estatal. O plebiscito sobre o tema poderia ocorrer junto com as eleições de 2018. Se o monopólio do petróleo e a estatização da Petrobras forem aprovadas as empresas e acionistas prejudicados poderão ser indenizados ao longo da próxima década.

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