quarta-feira, 31 de julho de 2019

A cultura do linchamento e as redes sociais, por Paulo Fernandes Silveira

Pelas análises dos sociólogos, os linchamentos nos EUA e no Brasil, nas primeiras décadas do século XX ou nos dias atuais, respondem à uma demanda sádica da população.


Cena final do videoclipe “This is America”, de Donald Glover

A cultura do linchamento e as redes sociais

por Paulo Fernandes Silveira

“Em 1904, o afro-americano Luther Holbert foi amarrado a uma árvore em Doddsville, no Estado americano do Mississippi, por uma multidão que o acusava de ter matado um fazendeiro branco. (…)

Junto de Holbert, também presa a uma árvore, estava uma mulher – acredita-se que era sua esposa. Ambos foram obrigados a erguerem as mãos. Em seguida, seus dedos foram cortados um a um, e depois jogados para a multidão, como uma espécie de souvenir macabro. Suas orelhas também foram cortadas.

Além disso, os dois foram espancados. Uma espécie de saca-rolhas foi usado para fazer buracos em seus corpos e retirar pedaços de suas carnes. Finalmente, Holbert e a mulher foram jogados em uma fogueira e morreram queimados. (…)

A tortura e o assassinato de Holbert e da mulher desconhecida foram assistidos por uma multidão de homens, mulheres e até crianças, todos brancos. Enquanto presenciava o linchamento, o público comia ovos recheados e bebia limonada ou uísque, com a mesma atitude tranquila de quem está fazendo um piquenique.”

“’Lincha, mata’, ouviu o policial apedrejado durante o protesto em SP”, esse foi o título de uma das reportagens da FOLHA de São Paulo sobre as manifestações de junho de 2013. Em abril de 2014, numa entrevista concedida ao EL PAÍS, o sociólogo José de Souza Martins afirma que, após as manifestações, o número de linchamentos no Brasil saltou de três ou quatro por semana para mais de um por dia.

Em suas pesquisas, Martins reconhece uma cultura do linchamento nos EUA e no Brasil. Segundo o sociólogo, no século XIX, os linchamentos tinham uma clara motivação racial. Para um negro ser linchado bastava entrar nos espaços dos brancos. Atualmente, tanto nos EUA quanto no Brasil, um negro não é linchado por ser negro, mas a prontidão para linchar um negro é maior do que para linchar um branco que tenha cometido o mesmo delito.

Ao analisar o videoclipe “This is America”, de Donald Glover, o sociólogo David Pilgrim destaca as referências aos espetáculos de menestréis e ao período dos linchamentos nos EUA. No seu videoclipe, Glover coloca lado a lado essas duas práticas, a do teatro e da arte de negros para entreter os brancos, e a dos brancos perseguindo os negros.

Num trabalho fundamental sobre o tema, a socióloga Maria Victória Benevides alerta para uma pesquisa realizada em 1980, segundo a qual 44% dos brasileiros apoiavam o linchamento; em 2018, esse índice era de 23,5%. Entre os dados e os depoimentos apresentados e analisados por Benevides, chama a atenção as palavras de um morador humilde e idoso da Baixada Fluminense: “o rádio diz a toda hora para o povo colaborar com a polícia; o povo colabora linchando”.

No início do século XX, relata o sociólogo Stewart Tolnay, jornais americanos, como o New Orleans State e o Starkville Daily News, convocavam a multidão para participar de alguns linchamentos. Numa reportagem de 2018, publicada pela Época, o jornalista Ariel Palacios explica o formato do chamado “linchamento 2.0”. Nas redes sociais, certos grupos espalham rumores sobre supostos crimes, organizam a população para o linchamento e, posteriormente, divulgam imagens das atrocidades cometidas.

Na leitura primorosa de Celso Favaretto, com suas músicas, imagens e poesia, a Tropicália compôs significados valendo-se de uma linguagem caleidoscópica que justapõe fragmentos de notícias, ideias e experiências. Sem ter o talento dos tropicalistas, de Donald Glover, de Hermano Vianna ou de Djamila Ribeiro, que também dominam essa linguagem caleidoscópica, tentei aproximar cenas de horror e de barbárie. Pelas análises dos sociólogos, os linchamentos nos EUA e no Brasil, nas primeiras décadas do século XX ou nos dias atuais, respondem à uma demanda sádica da população. Seguindo a lógica das redes sociais, o atual governo parece comprometido com essa demanda.

Paulo Fernandes Silveira – FEUSP e IEA-USP

Nenhum comentário:

Postar um comentário