por Marx Memorial Library
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Para a maioria das pessoas capital financeiro significa dinheiro, ou melhor, dinheiro no banco para além do que é necessário à sobrevivência e que potencialmente possa ser investido para ganhar mais dinheiro. A maioria das pessoas não tem muito dele e aquele que têm não lhes rende muitos juros.
Mas algumas pessoas têm aos montes, corporações e bancos têm ainda mais. Por vezes eles investem em capital "produtivo": matérias-primas, energia, materiais e serviços e, acima de tudo, maquinaria (os "meios de produção") e na força de trabalho dos trabalhadores que empregam.
Marx chamou a isto de "capital real" ao lado de "capital monetário" – os fundos reais utilizados. Isto permite-lhes produzirem uma mercadoria cuja venda realiza um lucro – mais capital financeiro – o qual pode ou não ser reinvestido.
O "Capital fictício" é diferente. O capitalismo depende do crédito e da dívida. Sempre dependeu. Se você contrair um empréstimo – comprar alguma coisa com o seu cartão de crédito por exemplo (dois séculos atrás poderia ter sido um empréstimo de um agiota para comprar sementes ou ferramentas), tem de trabalhar para reembolsá-lo – com juros. O dono de uma fábrica que contrai um empréstimo para expandir está a "apostar" o seu reembolso com a exploração de futuros empregados.
O que há de novo hoje é o domínio global da financiarização – e o facto de que uma proporção crescente do capital financeiro é, para usar o termo de Marx, "fictícia".
Hoje, o "capital fictício" é independente da produção real de mercadorias (bens ou serviços). No fundo, ele consiste essencialmente de "pretensões" ("claims") financeiras sobre bens e serviços que ainda não foram produzidos (e que poderão nunca virem a ser produzidos), a promessa de ganhos futuros com base na mais-valia criada por trabalhadores que ainda não foram empregados.
Inclui acções, quotas e outros valores mobiliários, os quais, disse Marx, são "meramente um título de propriedade de uma porção correspondente da mais-valia a ser realizada por ela" – conferindo essencialmente ao seu possuidor uma participação em lucros futuros, uma fatia do valor apropriado do trabalho daqueles que o produziram.
O capital fictício de hoje envolve a invenção de produtos financeiros "em papel" (na verdade electrónicos) cada vez mais complexos, tais como derivativos, activos titularizados e hipotecas em moeda estrangeira, tudo inimaginável na época de Marx e cada vez mais distanciado da produção de mercadorias físicas.
A tecnologia financeira ou "fintech" – o reforço automatizado dos serviços financeiros – é um dos principais focos de inovação e de investimento global, particularmente na Grã-Bretanha pós-Brexit, onde o investimento especulativo dobrou no ano passado para cerca de £37,5 mil milhões.
Hás exemplos que vão desde plataformas de crowdfunding (empresas como Kickstarter e GoFundMe), passando por aplicativos inteligentes de investimento e negociação de acções, até novas blockchain e criptomoedas.
Marx não apenas cunhou o termo "capital fictício" como dedicou bastante esforço a analisá-lo. Um capítulo intitulado Crédito, capital fictício e crise no volume III de O capital demonstra como o capitalismo se torna cada vez mais dependente do crédito e da dívida como elementos-chave do capital fictício.
Hoje, crédito e dívida – desde o saldo do seu cartão de crédito até à dívida nacional – são fundamentais para o capitalismo. Ao nível individual, agências de cobrança perseguem os devedores por conta de um credor.
Mas o próprio crédito é uma mercadoria: ele é comprado e vendido. E se bastantes pessoas incumprirem, há um problema.
A parte "fictícia" do capital fictício geralmente só se torna visível publicamente num momento de crise, mais particularmente durante o colapso de uma companhia ou de um banco, quando o capital social ou o "dinheiro" depositado (pelo qual o investidor tem um recibo) se torna sem valor.
Naquilo em que a crise actual difere das anteriores é no papel do Estado a intervir para salvar o sistema económico. Sem isto, o consenso – tanto da direita quanto da esquerda – era que teria entrado em colapso na sua totalidade. E, naturalmente, a "prosperidade" que [a intervenção] retornou é restrita a um número relativamente pequeno de indivíduos.
A intervenção do Estado para salvar a economia não é nada de novo. Engels ressalta (em nota de rodapé do volume III de O Capital) que o Banco da Inglaterra era capaz de "emitir qualquer quantidade de notas bancárias, independentemente da reserva de ouro em seu poder; portanto, de criar uma quantidade arbitrária de capital fictício em papel-moeda e de usá-lo para o objectivo de fazer empréstimos a bancos, corretores de câmbio e, por meio deles, ao comércio".
A partir da década de 1930, o "padrão ouro" foi abandonado (inicialmente nos EUA a fim de acabar com a Grande Depressão) para ser substituído por "moeda fiduciária" ("fiat money") – moeda emitida por governos mas não vinculado a qualquer activo específico, cujo "valor" é essencialmente uma questão de fé e que pode ser usada para comprar alguma coisa.
"As reservas fraccionais da banca" – a prática normal pela qual as reservas mantidas por um banco são apenas uma fracção de seus passivos para com os depositantes (o que permite que a oferta de moeda cresça para além da base monetária criada pelo banco central) significa que o estado tem de actuar como prestamista de último instância para esses bancos comerciais.
Em consequência, na crise de 2007-8 o Banco da Inglaterra criou moeda nova, electronicamente, a partir do nada, um processo chamado "facilidade quantitativa" ("quantitative easing", QE).
Parte dela – cerca de 45 mil milhões de libras – foi usada para "comprar" acções do RBS [Royal Bank of Scotland], agora avaliadas em menos da metade do que o contribuinte pagou por elas. E quantias muito mais altas foram supostamente "injectadas" na economia – não através do investimento directo na produção, transportes, educação ou serviços de saúde, mas sim na recompra de títulos dos bancos comerciais, que então ficavam livres para usar o dinheiro como quisessem.
A QE continua a crescer – de £200 mil milhões em 2009 para cerca de £435 mil milhões em 2018. Os valores foram ainda maiores no ano passado, a fim de combater os efeitos do Brexit – cerca de um quarto do PIB da Grã-Bretanha.
11/Maio/2020
Capital
fictício , L. N. Krasavina
Reflexões
sobre a crise , Remy Herrera
Alucinações circulatórias da moeda e do capital fechando o
ciclo , José Martins
Criptomoedas:
do fetichismo do ouro ao hayekgold , Paulo Nakatani e Gustavo Moura de
Cavalcanti Mello
Não, o coronavirus não é o responsável pela queda das cotações
bolsistas , Eric Toussaint
Roubo
ou exploração? , Michael Roberts
O
capital fictício, como a finança se apropria do nosso futuro , Daniel
Vaz de Carvalho
Crise: algumas
perguntas e respostas , Jorge Figueiredo
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