sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Bin Laden destruiu as Torres, Trump a Estátua da Liberdade


Daniel Deusdado

A declaração de fraude (ou seja, derrota) que Trump fez ontem à noite a partir da Casa Branca, com o selo Presidencial na tribuna e na pele de Presidente, é um dos maiores atentados planetários feitos à democracia desde a Grécia antiga. Surge a partir do cargo mais importante do mundo, na sede da maior potência livre, difundida para o globo inteiro. Quando isto é possível nos Estados Unidos, é possível em qualquer país, em qualquer instituição, nas empresas ou na vida de todos os dias. É a mentira como método, com a agravante de atrair 70 milhões de americanos. E só não prevaleceu por uma unha negra.No discurso de ontem, Trump tentou criar a cortina de fumo para encobrir a palavra que ele tão bem conhece: "Fired" (despedido). Não que tenha tido um mau resultado - aliás, é tristemente surpreendente como conseguiu ir tão longe. Só que não aceita perder porque a democracia foi apenas um meio de chegar ao poder, não que lhe esteja no sangue.

Tudo o que Donald tentou alinhar como argumentário de fraude, foi traído por duas evidências: o sentimento interior de derrota em cada palavra e, depois, a postura corporal (de desastre) com que abandonou a sala. A raiva esmagadora a corroer-lhe cada célula não tem apaziguamento possível - exceto por fúria e sangue a correr na rua para que devolvam o poder de "Comandante Supremo".

Por isso mesmo recuperemos a história do seu amigo Roger Stone, o gangster preso por fraude e ligação aos russos na eleição de 2016 (e depois indultado por Trump). No notável documentário biográfico "Get me Roger Stone" (Netflix), o próprio explica como criou, a pedido dos republicanos, o tumulto que gerou a paragem da recontagem dos votos na Flórida por ordem do Supremo Tribunal - dando a vitória a George W. Bush por 539 votos. Já com Trump, Roger Stone assume subtilmente os méritos do "atentado" a Hillary Clinton dias antes das eleições de 2016 (o caso dos e-mails oficiais na sua conta pessoal) e de como a FBI foi iludido (e decisivo) para criar uma suspeita inapagável na candidata.

Já nesta campanha, a tentativa de envolver o filho de Biden num esquema de corrupção na Ucrânia tem a marca do sinistro Stone, ainda que desta vez o caso não tenha tido o mesmo sucesso.

A verdade é que Trump perdeu, mesmo que vá contestar a legitimidade da votação por correio. Barafustará como uma criança zangada e egocêntrica, mas alguém terá de pegar nele pelo colarinho e pô-lo fora. Esperemos que os juízes conservadores do Supremo não se tenham tornado instrumentos de fanatismo político e assegurem a Constituição e a História do país.

Não nos limitemos, no entanto, à excrescência que Donald representa enquanto personagem. A descrença no sistema que ele protagoniza é um sentimento de milhões de pessoas por todo o mundo. A desigualdade é o maior problema das nossas sociedades, a par da questão climática. Que Trump seja escolhido por 70 milhões de pessoas para o resolver (e quase ganhe as eleições) é algo, no entanto, que obriga a pensar.

O discurso de ódio de Trump, ontem, reflete a questão mais complexa: pode o populismo tomar o poder sem se tornar anti-democrático? Putin na Rússia, Modi na Índia, Erdogan na Turquia, Órban na Hungria, Duda na Polónia e Maduro na Venezuela, são a prova de que há sempre este perigo. Quem vota neles quer, a prazo, perder o direito/privilégio de manter a democracia a funcionar sem golpes baixos e imprensa livre.

A vida é uma permanente surpresa, no entanto. Na madrugada de 3 para 4 de Novembro, a América parecia algo irrecuperável. Esta noite a esperança ressurge. Não que Biden seja extraordinário. Mas pelo menos é um homem decente. Podemos voltar a ter esperança que retome o Acordo de Paris, não insista numa maior militarização do mundo e faça uma luta coordenada contra a covid.

Uma coisa é certa: mesmo que Biden falhe, mais vale uma América algo paralisada politicamente do que vê-la avançar furiosamente na direção errada, com um louco ao comando. Para já, a decência e dignidade venceu. Por pouca margem, mas venceu. Não é pouco nos tempos que correm.

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