Talvez não exista no ordenamento jurídico brasileiro, mas isso é uma questão de detalhe
por Daniel Gorte-Dalmoro
Nas redes sociais, a pretensa ágora destes tempos pós-modernos (tão pré-apocalípticos), ganha destaque neste dia 3 de novembro, a expressão “não existe estupro culposo”, por conta das imagens divulgadas hoje, pelo InterceptBr [https://bit.ly/3jSbsKZ], do julgamento em que o juiz Rudson Marcos acata a tese do promotor Thiago Carriço de Oliveira e absolve o empresário André de Camargo Aranha da acusação estupro da modelo Mariana Ferrer: ainda que haja a fala da vítima, vídeos, esperma e sêmem, o juiz entendeu que não houve intenção de estuprar – que fez com que o InterceptBr criasse o termo “estupro culposo” para mais esse caso de estupro sem a intenção de estuprar.
Mesmo não sendo advogado com programa na tevê para dizer qual a sacrossanta verdade do direito*, ouso discordar das milhões de pessoas indignadas que estão a repetir “não existe estupro culposo” e afirmo que existe estupro culposo, sim! Talvez não exista no ordenamento jurídico brasileiro, mas isso é uma questão de detalhe: Rudson Marcos tão somente realizou o direito defendido pelo ministro do STF Luis Roberto Barroso, e julgou de acordo com “a voz das ruas”, que eles ouvem de suas janelas (que, creio, não dão para Rocinha, Sol Nascente, Heliópolis, Complexo Curado, nem mesmo para Guadalupe ou Guaianazes) [https://bit.ly/3jUe2jC]. Aranha é branco, rico, influente, alguém assim não comete estupro: se o sexo não foi consentido, pode ter sido por desatenção, por nunca ter tido antes (nem depois) essa experiência de alguma mulher não querer transar com ele. Compreensível. Mariana quem estava errada, por não ceder aos encantos do empresário, isso depois de colocar fotos suas – que não em traje de freira – nas redes sociais. Mais errada ainda por não aceitar satisfazer aos desejos de um macho poderoso: pecadora.
Dizer “não existe estupro culposo” é como dizer “não existe pena de morte no Brasil”, enquanto só a PM de São Paulo já matou 442 pessoas em 2020, um ano de baixa criminalidade, por conta da pandemia de coronavírus; é como dizer “todos são iguais perante a lei” num país em que os jornais apresentam como “traficante” um jovem negro preso com três trouxinhas de maconha e como “estudante” jovem branco preso “comercializando” drogas, em que roubar um pacote de bolacha ou ter um baseado no bolso dá prisão e ser pego com um helicóptero com cocaína não acontece nada; é dizer “não existe preconceito no Brasil” e aceitar como consequência meritocrática as diferenças nas oportunidades de emprego ou as discrepâncias salariais entre homens e mulheres, entre brancos e negros.
Precisamos encarar o mundo como ele, não como gostaríamos que fosse, não para nos conformar com isso, mas parar podermos transformá-lo de fato. Ainda que com outro nome, essa modalidade de estupro é uma constante na sociedade brasileira, machista, violenta, misógina: sacanagem, escorregão, mancada, até mesmo esperteza, fodão, comedor.
O estupro culposo é aquele em que a mulher pediu pra ser estuprada por estar usando roupas curtas demais, ou ousadas demais, ou qualquer outra desculpa usada para justificar a perda de controle do macho sobre seu próprio corpo, impelido a atacá-la contra sua vontade; é aquele em que a mulher “merece” ser estuprada – sei lá por qual motivo poderia haver tal merecimento, se por castigo social ou só por ser bonita, mesmo -; é aquele da mulher que pode ser forçada a transar porque é puta, ou forçada porque é mulher trans; é aquele que ocorre porque a mulher está bêbada, ou drogada, ou porque não se dá valor; aquele da empregada doméstica que cala (se cala, consente, dizem) para não perder o emprego, enquanto satisfaz as taras do patrão e seu filho – não nos esqueçamos que há também os homens que sofrem estupro, e deixemos para outro momento falar das crianças que são abusadas, ainda que para certos religiosos esses seriam outros casos de “estupro culposo”.
Sabemos de várias variações, eu tenho dois casos que desde muito me indignam. O primeiro é de uma conversa que ouvi há uns dez, quinze anos, no Bandejão da Unicamp: um grupo de amigos achava que um deles tinha feito “sacanagem” ao embebedar uma colega para “convencê-la” a fazer sexo anal, e ainda completavam: “com puta tudo bem fazer isso”. Eu não sei por onde começo a me indignar, se por acharem estupro mera sacanagem ou por julgarem que profissional do sexo nem é gente. Enfim. O outro caso é de um casal de conhecidos – ela feminista radical que não aceita críticas, ele, “feministo” também radical – e seu grupo de engajados na luta, que acharam que dava para desculpar um amigo em comum – branco, morador de bairro nobre, formado na USP e na PUC, então cursando mestrado -, que não resistindo aos encantos de outra pessoa do grupo, numa viagem ao exterior, a embebedara até que ela dormisse – acordou com suas calças sendo arriadas. O casal feminista achou que era demais chamá-lo de estuprador, afinal, ele estava bêbado e não quis fazer o que tentou fazer; e só tentou, não fez realmente, e sendo da luta, tendo um futuro promissor, não tinha porque comprometê-lo. No fim, todo mundo continuou amigo, só a vítima e sua companheira ficaram de frescura e se afastaram (eu já havia me afastado deles há tempos).
Vivemos numa sociedade que normaliza as diversas formas de violência – dentre elas contra a mulher -, que julga o caso conforme o grau de importância ou de amizade, que relativiza o estupro, que aceita como liberdade de opinião – ou como brincadeira de mau gosto – o que é crime de incitação à violência; a figura do “estupro culposo” poderia ter sido criado Carriço de Oliveira e Rudson Marcos: daria um verniz jurídico ainda carente a essa violência que de tão quotidiana boa parte dos brasileiros considera banal. De qualquer modo, mesmo sem nomeá-lo, o fato de o juiz permitir que o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho conduza sua fala abjeta, execrável sem ser impoturnado, apenas com admoestações tardias e débeis, praticamente pro forma, deixa à mostra que a função do judiciário brasileiro é ser um legitimador de toda forma de violência que seja aplicada de cima para baixo – toda forma de violência do opressor contra o oprimido, para usar o jargão de Paulo Freire. O que se vê no vídeo da audiência é uma cena grotesca e indigna de um julgamento de um crime hediondo, onde Mariana Ferrer é “estuprada psicologica e dolosamente” pelo advogado, com anuência do juiz e do membro do Ministério Público. Caberia muito bem em um remake de “Häxan – A Feitiçaria Através dos Tempos”, filme de 1922, de Benjamin Christensen, a mostrar como se dava a caça às bruxas na idade média europeia.
Um homem (branco, cristão, rico, de bem e de bens) atacando, acusando e humilhando uma mulher violentada no passado, acuada no presente, sob o olhar complacente de outros dois homens (brancos, de bem e de bens), com o objetivo de defender um homem (branco, rico, influente, de bem e de bens), sai vitorioso num julgamento graças ao “sentir” do juiz. É por isso que digo que estupro culposo existe, e nossa luta é para que ele seja exposto como mais uma modalidade estupro – talvez a mais comum -, e que o estupro seja combatido sem nenhum nuançar – se a vítima estava nua ou de burca, se era virgem ou era puta, se era feia ou era bonita, se estava bêbada ou estava sóbria, se queria e na hora h desistiu, se era desconhecida ou era da família. Evidenciar essas violências escondidas, escandidas, silentes, presentes, marcantes no dia a dia de tantas pessoas; permitir que entre um pouco de luz nesses cantos a meia luz da nossa “cordialidade” brasileira, na verdade complacência – muitas vezes por covardia – com a dominação de alguns, dos de sempre.
04 de novembro de 2020
* Por não ser operador do direito, não perguntei “E o PeTê?”, nem coloquei o Lula no meio, mas fiquei na dúvida de qual a imparcialidade de alguém cujo companheiro se apresentou numa das edições do evento em que houve o estupro, teria conseguido manter a tecnicidade na sua hermenêutica do direito?
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