quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Nem hétero, nem homo: cansamos

            Helena Vieira e Yuri Fraccaroli
Love, Joy Hester, 1949 (Foto: Reprodução)

Entre os últimos lampejos de 2020 e o começo deste ano, parte das redes sociais acompanhou com atenção o debate iniciado por Vladimir Safatle com o artigo “Não há heterossexuais”, prosseguido da réplica “Há homossexuais”, de Eduardo Leal Cunha e, finalmente, pela tréplica de Safatle, “Sobre a vivência concreta do sexual”, todos publicados pela Cult.

Antes de qualquer afirmação, é preciso enunciar que não pretendemos responder ou ingressar neste debate. Afinal, em briga de lacaniano, é melhor faltar. Tampouco sabemos se uma resposta seria possível em razão das gramáticas utilizadas, as posicionalidades envolvidas e os espaços historicamente construídos para aqueles que ousaram desafiar o lugar que lhes foi concedido na chamada “diferença sexual”. Escrevemos aqui desde a dissidência, posição essa que recusa o esquema réplica-tréplica, movendo-se, em contrário, para fora, para onde essa oposição nem sentido tem.

A curiosa ausência de autoras, autores, performances e movimentos sociais tão importantes para o desenvolvimento político e teórico das questões evocadas pelos textos, que, dentre eles, alguns até mesmo ascenderam ao status daquela que Foucault certa vez entendeu como a forma cultural mais legitimada no Ocidente, a filosofia, nos fez pensar sobre qual desejo e quais práticas mobilizam a escolha da primazia de autores como Freud e Lacan e, consequentemente, o espaço da clínica.

Contudo, dada a relevância do tema, sensivelmente implicado com questões como sexualidade, raça e (forçosamente) gênero; dada a peremptoriedade de certas afirmações, a definição de caminhos, as demandas por supostas novas gramáticas revolucionárias e um desacordo entre tantas (problemáticas) concordâncias, decidimos tratar desses assuntos a partir de outros lugares; dizer desde outras perspectivas, que até o momento não foram mobilizadas neste espaço. Acreditamos assim aportar argumentos mais próximos do que alguns dos sujeitos forçosamente interpelados por uma ideia de diferença sexual têm refletido sobre si mesmos.

Falemos, portanto, dos desejos e das autoras que mobilizam esta escrita de uma travesti e uma bicha, com nossas línguas de serpente e de fogo, como nos ensina Gloria Anzaldúa. Tal demarcação, não supérflua e nem demasiado identitária, é necessária para que não pensem que estamos loucas, afinal, falamos com gramáticas que podem lhes soar animalescas. Talvez possamos também soar estranhas, equivocadas ou incompreensíveis, já que por vezes podemos utilizar até mesmo as palavras e ideias de vossos pais-fundadores em sentidos cabalmente distintos aos que originalmente foram formulados.

Paul B. Preciado, em texto da comunicação que foi interrompida durante a 49º Jornada da Escola da Causa Freudiana, na França, em 2019, faz alusão a um conto de Kafka no qual o macaco Pedro Vermelho, uma vez capturado e transportado para a Europa, relata a necessidade de esquecimento de sua vida enquanto macaco, e a tentativa de dominar a língua humana para que pudesse se tornar um homem. Entretanto, como ressalta Preciado, esse processo não supõe qualquer ideia de emancipação ou libertação. Seria, pelo contrário, uma alegoria crítica ao humanismo colonial europeu. E aqui opera a identificação de Preciado com o macaco Pedro Vermelho: “Eu, como um corpo trans, como um corpo não binário, ao qual nem a medicina, nem a lei, nem a psicanálise, nem a psiquiatria reconhecem o direito de falar com conhecimento especializado sobre minha própria condição, nem a possibilidade de produzir um discurso ou uma forma de conhecimento sobre mim mesmo, aprendi, como Pedro Vermelho, a língua de Freud e Lacan, a língua do patriarcado colonial, a sua língua, e estou aqui para falar com vocês”.

Ao escutarmos Pedro Vermelho e/ou Preciado, entendemos que parte daquilo que pode ser compreendido como uma opressão heterossexual, longe de dizer respeito a questões de convivência ou tolerância, diz respeito à impossibilidade de comunicar-se senão nos termos da heterossexualidade, aspecto destacado por Monique Wittig. Nesse sentido, não há possibilidade de falar sobre sexualidade senão heterossexualmente. No que tange a presente discussão, isso significa dizer, ainda na esteira de Wittig, que esses discursos totalizantes, tais como “não existem heterossexuais” ou “existem homossexuais”, só podem ser enunciados desde o interior do regime heterossexual. A existência da heterossexualidade é a condição da possibilidade de quaisquer tentativas de negá-la – logo, são sempre frustradas, inócuas e contraditórias.

Portanto, não se trata de atestar a existência da heterossexualidade, nem da homossexualidade, ou seja, não se trata de uma questão de ordem ontológica, mas tecnológica. Em outros termos, algo que diz respeito ao funcionamento daquilo que em dado momento do tempo e da história convencionou-se chamar de heterossexualidade e, para além disso, dos efeitos dessas tecnologias na constituição do real, do mundo e dos sujeitos.

Partimos aqui da apropriação de esquema proposto por Gregory Bateson acerca dos problemas filosóficos. De acordo com o antropólogo, existiriam duas grandes ordens de problemas e questões para a filosofia: a primeira seria pautada pela busca da definição do que são as coisas, ou seja, tratar de suas realidades e existências (ontologia); a segunda versaria sobre como podemos conhecer o que as coisas são (epistemologia). Inspiradas por Gilles Deleuze e também por Donna Haraway, gostaríamos de acrescentar uma categoria à esquematização de Bateson, propondo que existe ainda outra categoria de problemas que se refere a como as coisas funcionam.

Nesse sentido, então, deslocamos a problemática do debate para como funciona a heterossexualidade, o que significa pensar a partir de quais práticas, discursos e técnicas esta se constitui, e também quais seus efeitos sobre os modos de vida e de viver e das relações de poder. Para isso, é preciso, em um grande esforço ficcional, retornarmos ao momento de criação dessa mitologia encarnada – ou, nas palavras de Jonathan Ned Katz, a estreia do heterossexual. A partir de registros e notas do doutor Richard von Krafft-Ebing, e também apostando nesse mesmo desafio ficcional, Katz trata de demonstrar a genealogia dos termos heterossexual e homossexual, e os efeitos que produzem tanto do ponto de vista do erotismo quanto da normalização de determinadas práticas e condutas.

É no interior da clínica médica que a heterossexualidade transforma-se em “sexualidade normal” e desenvolve um conjunto de práticas e prescrições que, em sua repetição, conformarão o sujeito heterossexual. Nesse sentido, vale destacar que antes do uso proposto por Krafft-Ebing, o termo heterossexual, como aquele utilizado pelo médico americano James Kiernan, tinha outra conotação, configurando um desvio do homossexual:

Aqueles heterossexuais eram associados a uma condição mental, hermafroditismo psíquico. Essa síndrome presumia que os sentimentos tinham um sexo biológico. Os heterossexuais sentiam a chamada atração física masculina por mulheres e a chamada atração física feminina por homens. Ou seja, aqueles heterossexuais periodicamente tinham inclinações para ambos os sexos. O hetero neles se referia não ao seu interesse por um sexo diferente, mas ao seu desejo por dois sexos”, escreveu Jonathan Ned Katz em 1996.

James Kiernam tratava tanto a homossexualidade quanto a heterossexualidade como desvios, e a ideia de uma sexualidade normal não era nomeada: tratava-se de instinto sexual, que tinha a finalidade deliberada da reprodução. A operação fundamental de Krafft-Ebing, na conformação do heterossexual como o normal, consiste em afirmar que o instinto sexual não precisa mais ser deliberadamente reprodutivo, a reprodução seria sua consequência. O instinto sexual buscaria algo como o prazer, sendo apenas virtualmente reprodutivo. Percebe-se explicitamente essa operação no relato de caso do sr. R., paciente do doutor Krafft-Ebing cuja “cura” passou pelo incentivo ao prazer sexual com mulheres. Nos processos clínicos de Krafft-Ebing não havia um apelo direto à reprodução, apesar disso, como ironicamente afirma Katz, seus tratamentos culminavam quase sempre em casamentos ou na descrição de sonhos com mulheres. Parece haver aqui a inauguração de um mundo subjetivo do desejo a ser corrigido e moldado até mesmo pelo próprio médico: “Eu considero o instinto heterossexual do paciente a criação artificial do seu excelente médico”.

Sobre esse aspecto é que Katz compreende o texto de Kraftt-Ebing como uma transição entre o espaço vitoriano e o moderno, tornando tal “diferença entre o sexos e os eros as características distintivas básicas de uma nova ordem social, linguística e conceitual do mundo”, oferecendo dois erotismos de sexo diferenciado, o ideal e o anormal.

Se a leitura de Katz traz a historicidade desses termos, acreditamos ser relevante destacar um aspecto não ressaltado pelo teórico americano, mas que aparece em basicamente todos os relatos de pacientes do Dr. Krafft-Ebing utilizados: a heterossexualidade não se restringiria ao desejo, mas também a um conjunto de atos sociais que produziriam um corpo adequado para esta forma sexual. Assim, a heterossexualidade comporia o universo das práticas de gênero.

É muito interessante considerarmos isso porque o discurso heterossexual emerge no século 19 junto com uma miríade de outros discursos de poder, na constituição daquilo que Foucault nomeou de dispositivo da sexualidade. Entre esses discursos, está a ascensão do modelo dimorfista. Ora, não é então a heterossexualidade que pressupõe uma natureza corporal binária preexistente, em que o acoplamento pênis x vagina seria como a máxima do desejo humano? Não existe nenhuma possibilidade de se pensar a heterossexualidade sem que a diferença sexual e a própria noção de sexo e gênero sejam evocadas, porque a heterossexualidade é tomada como natural, e não como escolha mainstream que estabiliza a naturalidade das posições homem x mulher.

Portanto, o desejo ou a ideia de uma sexualidade só é possível na matriz heteronormativa, como há trinta anos discutiu Judith Butler, pois a ideia mesma de sexualidade é forjada na invocação performativa de uma anterioridade natural do desejo, da reprodução e do próprio sexo: a ficção pré-discursiva. Nesse sentido, mobilizando a noção de performatividade de Butler, não se trata de identificar um sujeito heterossexual anterior que tomará parte em práticas que são exclusivamente heterossexuais, mas de um campo de disputa das práticas em que aquelas que são socialmente significadas como práticas heterossexuais produzem a existência mesma do sujeito heterossexual. É praticando a heterossexualidade que se torna heterossexual. O sujeito heterossexual é, portanto, uma ficção, mas uma daquelas que existem, como o Estado, o Poder ou o Povo. Sempre que discutimos tal tema, um amigo, o antropólogo Vitor Grunvald, lembra-nos do poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa:

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

Assim como o poeta, que já não sabe mais o que é a dor que sente, a que finge e aquela que finge ao sentir – porque de tanto performar dores múltiplas, os limites entre aquilo que é original e o que é falso deixam de existir -, o sujeito heterossexual, em meio às tensões entre a interpelação do sistema sexo-gênero, sua limitada agência e as formas de sujeição que lhe possibilitam sua condição de sujeito, já não tem mais como enumerar o que lhe pertence ou não porque agora tudo existe, tudo produz efeitos no mundo e nos modos de subjetivação.

Como propõe Monique Wittig, a heterossexualidade é um regime político cujo alcance não diz respeito somente ao desejo ou mesmo à reprodução, ela ordena o funcionamento das instituições ao conceber, por exemplo, o Estado como Pai e a família nuclear como instituição mínima de nossas sociedades. Não apenas a heterossexualidade existe, como são os heterossexuais aqueles investidos de seu poder, como oficiais de justiça. Para além disso é importante considerar que a heterossexualidade como regime político é parte das forças que operam a colonização dos povos do Sul global, cujos corpos, desejos e formas de se relacionar são enquadrados. Indicamos para esta discussão, visto que não poderemos aprofundar o tema, a leitura de Gênero e colonialidade, da socióloga María Lugones.

Ainda em relação a tal concepção política da heterossexualidade, Preciado propõe que esta não seria apenas um regime de governo, mas também uma própria política do desejo. Ao indagar sobre as práticas que constituem este regime de governo, Preciado indica que seus modos de regulação não se dariam na forma da lei, mas por meio de regulação interna, sendo aqui o locus da mencionada política do desejo: “Esta forma de servidão sexual baseia-se em uma estética da sedução, uma estilização do desejo e uma dominação historicamente construída e codificada, erotizando a diferença de poder e perpetuando-a. Esta política de desejo é o que mantém vivo o antigo regime de sexo-gênero, apesar de todos os processos legais de democratização e empoderamento das mulheres”.

Gostaríamos ainda de insistir criticamente sobre a ideia de uma “vivência concreta do sexual” a despeito do quão vaga tal expressão possa nos ter parecido, assim propondo algo mais próximo a um exercício de tradução. Pensamos que o caráter concreto da experiência heterossexual se realiza, ou melhor, se explicita, na inumerável parafernália sexual de incitação à heterossexualidade, da representação pornográfica à telenovela, passando pela literatura, pela clínica psicanalítica, pelo romantismo, pelas representações da masculinidade (carros, barba, música, futebol) e da feminilidade (estética, esmalte, unhas pintadas e batom), ideais da heterossexualidade. Pensamos, portanto, que se não é possível apontar heterossexuais na rua é porque, como o azul do céu, eles constituem a paisagem e, desse modo, não é que lhes falte existência, é que eles simplesmente existem demais.

Não nos parece haver nada de subversivo em enunciar a inexistência do heterossexual; isso já foi feito pela medicina anterior a Krafft-Ebing, quando a sexualidade normal não carregava nome algum. É certo que nomear a norma é uma operação identitária, e que a noção mesma de identidade é violenta e obstaculiza a constituição de alianças. Entretanto, conforme a discussão de Butler em A vida psíquica do poder: teorias da sujeição, é este o paradoxo da sujeição: se a identidade nos limita, é preciso construir práticas que partam dela, algo que pode ser um excelente começo, mas um péssimo fim. Quando Preciado em  “Carta de um homem trans ao antigo regime sexual” nos convida à desidentificação, isso não significa trocar de nomes ou desnomear, mas trocar de práticas. Desidentificar-se da heterossexualidade não significa rejeitar a alcunha heterossexual, mas engajar-se em práticas sexuais não-heterossexuais, não-reprodutivas, porque são as práticas que constituem os sujeitos, e não os nomes.

Tampouco entendemos que isso signifique teleologicamente demandar um processo político por “outras gramáticas” com base em um horizonte de indiferenciação no qual possamos encontrar “uma forma melhor e mais bela de falar de sexo”. Temos certos incômodos com essa posição, seja pela promessa do belo ou pelo apagamento de experiências e até mesmo pelas produções identitárias e linguísticas que constituíram e constituem outras gramáticas para além do vocabulário médico-jurídico, como há tempos já tratou o antropólogo Peter Fry ou como recentemente demonstrou o pesquisador Luiz Morando em Enverga, mas não quebra: Cintura Fina em Belo Horizonte.

Mais uma vez evocando Preciado – não por predileção, mas talvez pela similaridade entre suas discussões no contexto francês e o que parece ser uma importação destas para o campo brasileiro -, é preciso afirmar: “Minha vida fora do regime da diferença sexual é mais bela do que qualquer coisa que vocês poderiam ter me prometido como recompensa por consentimento à norma.”

HELENA VIEIRA é escritora e pesquisadora do Núcleo de Políticas de Gênero da Unilab

YURI FRACCAROLI é mestre em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia (USP)

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