Eric Zemmour (Foto: REUTERS/Benoit Tessier/File Photo)
Um judeu argelino que 'demoniza' os árabes e o Islã, Eric Zemmour é o novo protagonista político a eletrizar as eleições presidenciais francesas de 2022
Por Pepe Escobar, ao The Cradle
Tradução de Patricia Zimbres, para o 247
Em nítido contraste com o moroso ambiente político reinante por toda a Europa, a eleição presidencial francesa - por estranho que pareça - coloca-se agora como um dos pleitos mais fascinantes que iremos assistir em 2022.
No exato momento em que todos, da Normandia à Côte d'Azur, pareciam resignados a sofrer uma recaída de macronismo, o polemista transformado em político Eric Zemmour tirou da cartola uma lúgubre reviravolta no enredo.
Bastou-lhe menos de uma semana. Na segunda-feira, 29 de novembro, Zemmour anunciou oficialmente ao mundo que seria candidato nas eleições. Ele deu uma de De Gaulle total, lendo seu próprio discurso ao som de Beethoven, em frente de um microfone das antigas e cercado de livros.
Zemmour, então, anunciou o nome de seu novo partido político: 'Reconquête' – referindo-se à batalha cristã de sete séculos de duração para expulsar os mouros da Península Ibérica, o que foi por fim alcançado em 1492.
Para Zemmour e seus fervorosos acólitos, trata-se de reconquistar a França do inimigo muçulmano.
Então, no domingo 5 de dezembro, ele fez seu primeiro comício como candidato falando a mais de dez mil pessoas. Nenhum político da França atual é capaz de atrair uma multidão dessas dimensões.
As manchetes do dia seguinte só tratavam da invasão de manifestantes, um dos quais se atirou sobre Zemmour prendendo-o em uma gravata quando ele se dirigia ao palanque. Mas, na cartilha de Zemmour, o episódio pode se converter em um triunfo: indo além das propostas incendiárias que são sua marca registrada, ele conseguiu fazer a transição de intelectual a aspirante à presidência em uma única noite.
Agora, qualquer coisa pode acontecer. A saga de Zemmour, é claro, tem paralelos com a ascensão, em 2016, de Trump, que também migrou da mídia para a política. Zemmour é fanaticamente anti-imigração e aposta em um nacionalismo fervoroso contra aquilo que é descrito por conservadores de todo o Ocidente como 'islamo-esquerdismo'.
Programas de entrevistas como púlpito
Mesmo na França, a maioria das pessoas não sabe que a candidatura de Zemmour à presidência começou em um jantar mais ou menos secreto em Paris, em fins de junho último.
A nata do establishment francês estava presente, incluindo o Conde Henri de Castries, 66, um antigo luminar da Ecole Nationale d’Administration (ENA), a alma mater de praticamente todos os que contam nos círculos do poder parisiense.
De Castries foi CEO da gigantesca seguradora AXA, membro do conselho-diretor da Nestlé; presidente do Bilderberg Club; e diretor do think tank Institut Montaigne, financiado pelo setor empresarial – que virtualmente 'inventou' um certo Emmanuel Macron em 2017, depois que François Fillon, favorito na disputa pela candidatura da Direita, foi destruído por um vazamento sobre os obscuros cargos ocupados por sua mulher.
Se Fillon tivesse ganho a eleição presidencial de 2017, de Castries teria sido Ministro da Defesa.
Nesse jantar, Zemmour atirou duas granadas políticas:
A primeira: "Temos que proibir primeiros nomes não-franceses".
A segunda: "A principal questão que teremos que enfrentar na próxima eleição presidencial e nos próximos 30 anos é a imigração muçulmana".
Pode ter demorado seis meses, mas desde o último verão, a irresistível ascensão de Zemmour cercou-se de uma aura de inevitabilidade, chamando a atenção até mesmo de um ansioso Palácio do Champs Elysées, cujos funcionários observaram corretamente que, nos níveis ideológico e cultural, Zemmour era quem estava ditando toda a agenda da Direita Francesa.
O púlpito costumeiro de Zemmour na CNews – a resposta francesa à Fox News – estava alcançando uma audiência de pelo menos um milhão de telespectadores a cada noite. Ele se tornou o queridinho do mega-magnata Vincent Bolloré, proprietário de um império midiático comparável ao de Murdoch. O conglomerado Vivendi de Bolloré é dono do grupo Canal+, que inclui a Cnews; 27 por cento do Lagardere, proprietário da Europe 1, do Paris Match e do Le Journal du Dimanche; e Hachette Livre, que possui as editoras Grasset e Fayard.
Bolloré, que não é um parisiense esnobe, mas um 'provinciano' da Bretanha, logo de partida ficou fascinado com a ascensão social de Zemmour – do tipo que só ocorre nos esportes e na música. Um percurso como o dele na esfera intelectual é praticamente inexistente na hipercodificada França.
O arabofóbico
Zemmour vem de uma família judia argelina de meios modestos que se mudou para Saint Denis, um subúrbio 'quente' de Paris. Ele construiu sua persona - e seu impacto sobre o beau monde de Paris – com um racionalismo cartesiano. Por trás de tudo há o inconfundível complexo de classe: ele anseia pela aprovação dos notáveis da intelligentsia.
Zemmour é um personagem complexo, mas também sempre redutível a sua obsessão monotemática: O 'Perigo Muçulmano'. Ao mesmo tempo, ele é a favor da assimilação e não tem nada contra muçulmanos que se tornam plenamente republicanos.
Zemmour demorou algum tempo para encontrar seu nicho político. O partido Les Republicans – do ex-Presidente Nicolas Sarkozy – é demasiadamente brando e amorfo. A superstar da extrema-direita Marine Le Pen sempre alcança 20 por cento dos votos no primeiro turno das eleições presidenciais, e nunca consegue quebrar o telhado de vidro no segundo (esse é um dos segredos mais mal-guardados da França, devido a seu pai fascista e porque ela não pertence à elite).
A elite financeira, desta vez, achou um caminho de ouro tirado de O Leopardo, de Lampedusa ("tudo tem que mudar para que tudo permaneça o mesmo"). Macron continua sendo seu garoto. Zemmour está sendo usado – pelos 'invisíveis' banqueiros doadores – para passar a perna em Marine Le Pen da Direita e permitir a Macron uma reeleição fácil.
E mesmo que Zemmour não ganhe em 2022, o que importa é que Marine Le Pen estará definitivamente morta e enterrada, e o caminho estará aberto para um movimento conservador unificado mais próximo dos 'valores' que lhes são caros, liderado, é claro, por Zemmour.
Zemmour, entretanto, enfrenta um problema muito sério: como ampliar seu eleitorado para além dos homens brancos irados, como os trumpistas. Trump era um bilionário e uma fera da comunicação, de modo que era mais fácil. Zemmour é um desertor de classe desajeitado que floresceu no minúsculo e incestuoso meio midiático-literário de Paris.
Na família Zemmour, a identidade sempre foi um tema de debate da máxima importância. O General De Gaulle era a entidade suprema – inclusive com sua admiração pelos judeus, "seguros de si e dominantes". O pai de Zemmour, Roger, falava árabe e costumava jogar baralho nos bares do bairro Goutte D’Or.
Zemmour, um nome de família berbere, significa 'trombeta barulhenta' em árabe, enquanto seu derivado, Ezmour, é o nome da oliveira-macho na língua berbere (amazigh), principalmente na Argélia. Zemmour sempre se refere a si mesmo como um judeu berbere. Ele se recusa a ser chamado de árabe, ressaltando que os "berberes foram colonizados, massacrados e perseguidos pelos árabes, e islamizados à força".
E aqui nos aproximamos do cerne do enigma: Zemmour é essencialmente um arabofóbico, e muito especificamente contra os árabes do Magreb. Ele jamais se refere aos árabes do Golfo Pérsico, em especial aos wahabis e salafi-jihadis – denotando escasso conhecimento sobre o Islã histórico e suas perversões pelos impérios ocidentais. Ele parece analfabeto no que diz respeito ao Islã xiita do arco de resistência, ao Islã do sufismo da Ásia Central e do brando Islã tropical da Indonésia.
Na França, é tabu discriminar abertamente os árabes. Foi por essa razão que Zemmour escolheu 'Islã' como seu termo amplo para, essencialmente, demonizar os árabes do Magreb.
Um herói em um remix de Balzac
Para entender Zemmour, é preciso ler Balzac. A seu favor, Zemmour é uma espécie em extinção: um produto de uma cultura literária. Ele cresceu atolado em Alexandre Dumas e Balzac – Ilusões Perdidas, deste último, é sua referência máxima.
Desde os onze anos de idade, Zemmour se imaginava como Lucien de Rubempré, o herói de Ilusões Perdidas: foi quando ele decidiu se tornar jornalista e escritor. A obra-prima balzaquiana concentra todas as suas paixões: história, jornalismo e literatura. Rubempré é um poeta que se torna jornalista e sonha em escrever romances históricos.
Entre todos os heróis memoráveis de Balzac, Zemmour escolheu um sedutor que tenta compensar sua origem provinciana e modesta com uma tremenda exuberância. Seus críticos, entretanto, preferem, sarcasticamente, identificá-lo com um outro personagem de Balzac, o ultra-ambicioso Rastignac, obcecado em enriquecer e se tornar ministro do governo. Não é bem assim: Zemmour preferiria permanecer no esplendor da glória a se tornar um mero parafuso na máquina burguesa.
Sete anos atrás, muito antes de Trump, já se ouviam rumores de uma Geração Zemmour surgindo na França: os que sentiram os efeitos da combinação da blitzkrieg da União Europeia, da imigração e da globalização.
Esse é o grosso do eleitorado de Zemmour: conservadores burgueses, vítimas da globalização e as classes populares desclassificadas, os que realmente perderam com as fronteiras abertas do globalismo. Foram eles que ofereceram a Zemmour a chance de se converter no porta-voz da Direita esmagada.
Nem mesmo Marine Le Pen poderia desempenhar esse papel, porque ela é vista como "populista" demais pelos burgueses e, além do mais, ela investiu demasiadamente pesado em seu processo de des-demonização para ser aceita pelo establishment.
Quanto a Sarkozy, ele exagerava demais na ostentação de riqueza para o gosto das famílias da velha França. Zemmour, com sua 'ginga de filho da periferia' e a bagagem de cultura clássica de um excelente aluno, foi esperto o bastante para identificar a oportunidade.
Dinamitando a si próprio?
Zemmour talvez não seja um groupie da Virgem Maria. Ao publicar seu livro Destino Francês, em 2018, ele teve que admitir, frente a uma plateia de católicos fervorosos, estar "convencido de que não se pode ser francês sem ser profundamente impregnado pelo catolicismo, por seu culto de imagens, sua pompa, pela ordem instaurada pela Igreja, por essa sutil mistura de moral judaica, razão grega e direito romano, marcada porém pela humildade dos servos".
Isso é o mais perto que se pode chegar do credo Zemmour.
O que torna as ideias de Zemmour preocupantes nas terras do Islã – da África do Norte à Ásia Ocidental, Central e do Sul – é que ele define "o inimigo não como o Islã político, o islamismo, o jihadismo ou o radicalismo islâmico: o inimigo é o Islã (itálicos meus.
Ele acusa, sem provas, que o "ódio à França é consubstancial a essa religião. O Islã é incompatível com o secularismo, a democracia, com uma república secular. O Islã é incompatível com a França".
Foi isso, exatamente, que ele repetiu neste último domingo, em seu primeiro discurso como candidato à presidência: um choque das civilizações revisitado.
De seu catálogo de propostas consta que nenhum primeiro nome muçulmano seja permitido na França; que as "medidas sociais de solidariedade nacional" valham apenas para os franceses; que sejam expulsos todos os estrangeiros que tenham cometido crimes (pelo menos 15.000, atualmente); que sejam fechadas as fronteiras francesas, se necessário; e estancado o fluxo de imigrantes - que chegam a 400.000 a cada ano, incluindo-se aí os que pedem asilo político. Zemmour, explicitamente, quer que os estudantes da África e do Magreb não tenham acesso a bolsas de estudos.
Zemmour quer limitar a imigração legal a um mínimo. Ele afirma que o Islã é uma "civilização muito distante da nossa". Ele, impiedosamente, acusa Macron de querer "dissolver a França na Europa e na África". Macron explica que uma mulher também pode ser pai, mas Zemmour diz: "Não concordo. Quero que as crianças tenham um pai e uma mãe".
É aí que a islamofobia de Zemmour se transmuta em sua crítica ao "islamo-esquerdismo" e da galáxia da cultura woke, que inclui a teoria da raça, os estudos de gênero, o pós-colonialismo, a interseccionalidade, a política de identidade e a cultura do cancelamento. Esse é o terreno privilegiado, onde ele pode ganhar um maior impulso vindo dos valores tradicionais franceses.
A CNews elogiou Zemmour como sendo O Dinamitador. No entanto, ele corre o risco de dinamitar a si próprio, acuando-se em uma armadilha islamofóbica inventada por ele mesmo, ao pretender refundar a direita radical francesa e "reconquistar" a República.
Talvez seja cedo demais, mas ele não deu o salto eleitoral que esperava após subir ao ringue. Do jeito que as coisas andam, ele está fora do segundo turno, empatado com a perene Marine Le Pen e praticamente superado por uma outra mulher, Valérie Pécresse, uma discípula de Sarkozy com uma veia de dominatrix, que vem vendendo a união da direita 'respeitável' e sua capacidade de se livrar de Macron para sempre.
Mas nunca se deve subestimar o imensamente ambicioso que se autodescreve como um judeu berbere e pretende 'reconquistar' a República lutando uma jihad islamofóbica.
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