Por Franco “Bifo” Berardi ! Tradução: Vitor Costa
Inimigo interno
A lógica da guerra é o horror.
Por Franco Berardi
Na semiótica da guerra, todas as histórias de horror, mesmo as falsas, são eficazes porque produzem ódio e medo.
Por que se surpreender se os EUA lançarem bombas de fósforo em Fallujah ou se os russos matarem prisioneiros indefesos em Bucha?
Estamos falando de crimes de guerra? Mas a guerra é um crime em si, uma cadeia automática de crimes.
A pergunta a responder: quem é o responsável por esta guerra?
Quem a queria, a provocava, a armava?
O nazi-stalinismo russo liderado por Putin, não há dúvida. Mas todos vemos que mais alguém a desejou e a está alimentando ativamente.
Se em fevereiro a União Europeia tivesse convocado uma conferência internacional para discutir as demandas do chanceler russo Sergey Lavrov, a máquina da guerra poderia ter parado. Em vez disso, preferiram colocar lenha na fogueira.
Um delegado ucraniano que participava de conversas com os russos declarou de forma muito franca: “Estou surpreso. Por que a OTAN disse tão cedo que não interviria em caso de guerra? Foi assim que ela estimulou a Rússia a escalar o conflito” (citado em Limes 3/2022, El fin de la paz, La palabra a los pueblos mudos).
Os que participam de uma guerra são incapazes de pensar. Por razões neurocognitivas bastante fáceis de entender, os que fazem a guerra não têm tempo para pensar, eles têm é que salvar suas vidas, eles têm é que matar aqueles que podem atentar contra suas vidas.
E primeiro eles devem silenciar o inimigo interno.
Esse inimigo interno é a sensibilidade do ser humano, a consciência, se quiserem nomeá-la assim. Freud falava disso em um texto sobre a “neurose de guerra” escrito durante a I Guerra Mundial: o inimigo interno se manifesta como dúvida, hesitação, medo, deserção. O inimigo interno é a vontade de pensar.
Agora estão toda a mídia e todo o sistema político determinados a derrotar esse inimigo interno.
Já estamos muito longe no processo de militarização do discurso público e a classe política e jornalística italiana traz disciplinadamente o cérebro à massa nacionalista. Nessa massa é difícil distinguir as vozes de jornalistas de extrema direita e aquelas dos intelectuais de formação trotskista.
O sistema de mídia passou por uma mutação dramática nos últimos dois anos. Durante a pandemia ele foi constantemente mobilizado para fins sanitários. Vinte e quatro horas por dia nos mostravam ambulâncias, aventais verdes, aparelhos de ventilação e, depois de certo ponto, injeções, seringas e mais injeções e mais seringas, num fluxo ininterrupto de ansiedade e intimidação. Alguém previu que esse cerco da mídia médica era o preâmbulo de uma mutação definitiva na mídia. Agora, por vinte e quatro horas, vemos espetáculos aterrorizantes, corpos mutilados, a fuga desesperada e dolorosa de mães e filhos. Vinte e quatro horas por dia testemunhamos a multidão de comentaristas e generais clamando pela guerra e silenciando seu inimigo interno.
O que você faria se morasse em Kiev?
Eu também me perguntei: o que eu faria se morasse em Kiev? Durante dias essa pergunta me assombrou. Meu pai participou da resistência italiana contra o fascismo, disse a mim mesmo, então não seria meu dever apoiar a resistência do povo ucraniano? Não deveria lutar pelos valores que a agressão russa põe em perigo?
Então me lembrei que meu pai não era antifascista quando teve que fugir do quartel de Pádua onde era um simples soldado. O problema nunca havia sido levantado, o fascismo era uma condição natural óbvia para ele, como era para a grande maioria dos italianos. Quando o exército italiano se desfez depois de 8 de setembro, ele fugiu como tantos outros, foi visitar sua família em Bolonha, mas seus pais fugiram da cidade por medo de bombardeios. Então, com seu irmão, ele decidiu fugir para as montanhas próximas, quem sabe por quê. Eles encontraram um grupo de outros evacuados, encontraram alguns guerrilheiros e uniram forças. Para defender sua vida, ele se tornou um partigiano. Conversando com os colegas, parecia-lhe que os mais preparados e generosos eram os comunistas. Assim, ele entendeu que tinham uma explicação para o passado e um plano para o futuro, então se tornou comunista.
Se eu morasse em Kiev e alguém me explicasse que tenho que defender o Mundo Livre, a Democracia, os Valores Ocidentais, palavras com letra maiúscula, eu desertaria. Mas talvez eu decidisse me juntar à resistência para defender minha casa, meus irmãos, palavras com letras minúsculas.
Portanto, não posso responder quando me pergunto se eu participaria da resistência ucraniana, se atiraria em soldados russos ou não. O que eu sei com certeza é que as principais razões pelas quais o “Mundo Livre” chama os ucranianos à resistência são falsas. E igualmente falsa é a retórica dos europeus que nos encorajam a continuar com o show.
O nazismo é uma evolução da humilhação
Um show de horrores desencadeia-se na Europa, como ocorreu na Síria, Afeganistão, Iraque, Líbia, Iêmen por algumas décadas. Mas eram lugares distantes, habitados por pessoas diferentes de nós, na verdade. Para ser mais preciso, habitados por pessoas que odiamos e consideramos inferiores.
Vladimir Putin, que nunca escondeu sua vocação imperial e seus métodos stalinistas quando foi cortejado por nossos presidentes, empresários e jornalistas, desencadeou esta guerra porque a maioria do povo russo reagiu à humilhação dos últimos trinta anos da mesma forma que o os alemães reagiram à humilhação de Versalhes na década de 1930.
O nazismo é uma evolução da humilhação, é uma promessa de redenção agressiva contra a humilhação. E quem quiser conhecer a profundidade da humilhação sofrida pelos russos desde os anos 1990 deveria ler Second Hand Time (O Fim do Homem Soviético, na tradução Brasileira), de Svetlana Aleksievich.
Mas, como diz Xi, “uma única mão não faz barulho”. A mão de Putin não é suficiente. A outra mão é a de Joe Biden, que empurrou os russos e ucranianos para a guerra a fim de alcançar quatro resultados: destruir politicamente a União Europeia, impedir a criação do gasoduto Nord Stream 2, triunfar nas urnas em seu país e derrotar os russos.
Os dois primeiros objetivos foram perfeitamente alcançados.
O projeto Nord Stream 2 foi cancelado pelo governo alemão, por isso agora a Europa terá que se abastecer no mercado norte-americano, onde o combustível custa um pouco mais. De qualquer forma, isso não será suficiente para substituir o gás russo.
Politicamente, a União Europeia esteve sob o comando da OTAN e foi forçada a se identificar como nação, o que é exatamente o oposto do que pensavam os fundadores da UE.
A União Europeia nasceu para sair da obsessão nacionalista do século XX, mas nos primeiros meses de 2022 a OTAN a transformou em nação. E agora a “Nação Europa” está indo para o batismo de fogo da guerra como qualquer outra nação na história passada.
Sobre os outros resultados, a questão se complica, porque a maioria dos americanos desaprova a política externa de Biden (o que nunca havia acontecia antes, nem nos tempos da Guerra do Vietnã, nem da Guerra do Iraque). As preferências eleitorais, de acordo com as últimas pesquisas, não são favoráveis para Biden. É provável que os democratas percam as eleições legislativas de novembro e no futuro próximo um republicano (não sei qual mas não descarto Trump) ganhe as eleições presidenciais.
Quanto ao último resultado que Biden queria alcançar, a derrota da Rússia, as coisas são ainda mais complicadas. Apesar da feroz resistência do povo ucraniano, a Rússia está conseguindo o que pretendia, ou seja, a destruição do exército ucraniano e o controle dos territórios do sudeste e da Crimeia. Que os soldados russos morram aos milhares, e mesmo que os generais russos caiam nos combates, Putin se importa muito pouco. O sacrifício é a alma do místico nacionalista russo, como sabe quem leu Tolstói ou Isaac Babel e Alexander Blok.
Mais tarde, é previsível que o conflito se torne endêmico em território ucraniano e que a Rússia entre numa fase de catástrofe econômica e social.
Mas será que os estrategistas da intransigência anti-Putin refletiram sobre o que significa uma guerra de sucessão na hierarquia militar daquele país que tem seis mil ogivas nucleares?
A vida é um paraíso
De acordo com algumas pesquisas, 83% dos russos apoiam a guerra.
Não acredito, acho que as pesquisas que vêm de Moscou não são confiáveis. Mas é provável que a agressão desfrute de um consenso majoritário.
Uma minoria crescente de jovens russos também está se voltando para as ideias de ultranacionalistas, para quem a guerra na Ucrânia é uma autopurificação da alma russa e o prelúdio de aventuras mais amplas.
“Obrigado, Ucrânia, por nos ensinar a ser russos novamente”, declarou liricamente um idiota chamado Ivan Okhlobystin.
Há uma longa tradição martirológica que descende do espiritualismo ortodoxo, passando por Dostoiévski e se estendendo pelo século XX, reaparecendo em Vassili Grossman e no próprio Alexander Soljenitsyn. Essa vitimização mística é resumida nas palavras do irmão moribundo do monge Zósima em Os Irmãos Karamazov:
“Mãe, não chore, a vida é um paraíso e estamos todos no paraíso, mas não queremos admitir, porque se tivéssemos a vontade de admiti-lo amanhã, o paraíso se estabeleceria em todo o mundo."
O paraíso de que fala Dostoiévski é a dor, o frio, a miséria, a tortura, enfim, a cruz. O nacionalismo ortodoxo russo ama a dor como prova de proximidade com Cristo na cruz e ama o povo tanto quanto odeia mulheres e homens concretos: “Como os homens são repugnantes”, diz Raskolnikov antes de cometer o crime sem sentido que deve ser cometido precisamente por causa de sua loucura. A ignorância americana encontra a ilusão russa e esse não é um encontro fácil. Os americanos (falo, é claro, da classe que tem poder político e midiático naquele país) nunca foram capazes de entender a diferença cultural, exceto como atraso e inferioridade a ser explorada, submetida ou corrigida com bofetadas.
Mas a diferença cultural russa permanece irredutível em sua mistura de universalismo salvífico e culto do sofrimento sofrido e infligido.
A loucura russa e a ignorância americana arrastaram a Europa para um precipício no qual agora parece difícil se segurar.
O país líder do Mundo Livre
No país que lidera o Mundo Livre (com letras maiúsculas, por favor) a polícia mata regularmente três pessoas por dia, geralmente negros.
Em 2020, após a revolta do Black Lives Matter, quando se tratava de conquistar o voto dos negros e da esquerda, o Partido Democrata prometeu reduzir o financiamento da polícia e investir pesadamente para melhorar as condições de vida. Claro que essas promessas não foram cumpridas: nenhum cancelamento de dívida estudantil, etc. Mas acima de tudo, nenhuma redução no orçamento policial. Pelo contrário, o financiamento aumentou.
Na fronteira mexicana, o retrocesso em relação aos imigrantes atingiu níveis que nos fazem lamentar os dias de Donald Trump.
Por uma razão ou outra, o apoio a Biden caiu para os níveis mais baixos. Após a derrota em Cabul, Biden teve que mostrar que, apesar de ter perdido a guerra contra o país mais pobre do mundo, os Estados Unidos poderiam vencê-la contra a Rússia. Por isso, ele não concordou em levar em consideração os seguidos pedidos de Sergei Lavrov, que repetiu muitas vezes que a Rússia queria discutir sua segurança, suas fronteiras e, portanto, a expansão que a OTAN vem buscando nos últimos 25 anos.
Como os velhos costumam fazer quando se rebelam contra sua dolorosa impotência, Biden decidiu enfrentar os russos linha-dura e preparar o confronto com Putin. Mas no final os ucranianos ficaram sozinhos contra o criminoso stalinista-czarista do Kremlin. Os apoiadores euro-americanos da resistência ucraniana fornecem as armas e o apoio da mídia. Mas são os ucranianos que estão morrendo, são eles que compreensivelmente foram empurrados para posições ultranacionalistas por uma longa história de opressão.
Uma guerra entre brancos precipita uma nova geopolítica do caos
Além da psicopatologia da demência senil, que desempenha um papel essencial no colapso psicótico da raça branca (russo-europeu-americana), qual é a motivação estratégica para esta guerra? Biden é categórico: o mundo livre deve ser defendido, ou seja, o Ocidente do qual ele decidiu ser o líder novamente. Defender o Ocidente após cinco séculos de colonização, violência, roubo sistemático e racismo não é uma tarefa fácil, e a guerra entre brancos precipitou o declínio, devolvendo o Ocidente ao colapso.
O que começou em 24 de fevereiro é uma “guerra interbranca”, na qual a raça branca está lutando contra a raça branca, e dessa guerra surgirá uma nova geopolítica pós-global.
Quando em 1989 o mundo livre derrotou o campo socialista que abriu caminho para a privatização do mundo e a imposição financeira do neoliberalismo, os ideólogos se perguntaram se essa nova ordem seria irrevogável e eterna e, portanto, se a história havia acabado, com todas as suas consequências, suas revoltas e suas guerras.
Francis Fukuyama falou um tanto precipitadamente a esse respeito, e os liberais democratas repetiam: democracia e mercado eram um par imbatível. Juntamente com a lei de ferro do mercado, a palavra democracia logo se tornou nonsense: a cada quatro ou cinco anos os cidadãos do mundo livre podiam eleger seus representantes, mas seus representantes não podiam fazer nada além de aplicar as leis do mercado, cuja lógica automática não podia ser solapada pela vontade política.
Esse teatro não poderia durar muito e a partir de 2016 a democracia foi reduzida a uma piada.
Alguém um pouco menos estúpido que Fukuyama escreveu um livro para explicar que uma era de conflito entre civilizações havia começado. Em O Choque de Civilizações e a Recomposição Mundial, Samuel Huntington delineou a geopolítica desse choque, que em sua opinião deveria ter colocado um certo número de blocos de civilização (talvez sete ou mais) uns contra os outros.
De certa forma, a teoria de Huntington viu na identidade (étnica, religiosa, cultural) a linha divisória entre as forças em conflito, e antecipou as guerras norte-americanas contra os países islâmicos, e o embate vindouro entre o Ocidente e o mundo chinês. Huntington não estava tão errado quanto Fukuyama, mas sua teoria banaliza um processo muito mais complexo.
O triunfo da democracia liberal coincidiu com a privatização geral da esfera social e a precarização geral do trabalho. Seu efeito foi o desmantelamento da “civilização social”, uma forma de sociedade em que os interesses da maioria são protegidos por normas políticas e, sobretudo, por uma educação que permite suspender a lei natural da selva.
Junto com muitas outras coisas, o totalitarismo capitalista destruiu a escola pública. Os processos educativos que na segunda metade do século XX motivaram a vida humana num sentido ético e solidário, promovendo o humanismo e o igualitarismo, foram substituídos por processos formativos desumanizantes: publicidade onipresente, palpitante, incontornável; digitalização dominada por grandes empresas globais que controlam a atividade cognitiva de humanos associados.
Assim, produziu-se o mais fantástico efeito de conformismo já conhecido: a ignorância e a superstição publicitária eliminaram todas as regras políticas e todas as formas culturais que não coincidiam com a imposição do lucro.
A financeirização abrangente da economia, possibilitada pelas tecnologias digitais, possibilitou o domínio definitivo do abstrato sobre o concreto.
O capitalismo financeiro apareceu como um sistema automático sem alternativas, o trabalho precário mostrou-se incapaz de gerar solidariedade e o futuro parecia definitivamente encapsulado no presente automatizado.
Nesse sentido, Fukuyama estava certo: a história havia acabado, a miséria psíquica se espalhava como um violento incêndio florestal e a subjetividade estava sujeita a uma ditadura psicofarmacológica maciça e a uma datificação digital generalizada.
Então veio a Catástrofe. Após as convulsões globais do outono de 2019 (as revoltas globais de Hong Kong, Santiago, Quito, Teerã) o vírus chegou.
E o vírus criou as condições para o colapso psíquico que agora perturba o cenário mundial.
O caos viral bloqueou a circulação de mercadorias e a continuidade do trabalho em grande parte do mundo, mas agora a ameaça de guerra perturba a cadeia concreta de produção-distribuição-consumo e a ameaça atômica perturba a imaginação deprimida, como um pesadelo sobre o qual acordamos apenas para descobrir que o sonho ruim é realidade.
Vingança
A guerra entre brancos, paradoxalmente, faz com que o mundo se divida em linhas inéditas, que não têm muito a ver com ideologia ou geopolítica, e têm mais relação com a história da colonização e da exploração racial.
Quando a proposta de condenação da invasão russa foi apresentada à ONU, os países mais populosos – Índia, Paquistão, Indonésia, África do Sul – juntamente com a China se abstiveram. Pela primeira vez, delineia-se um cenário geopolítico que percorre a linha de fratura colonial. Impérios brancos do passado colidem ou se unem, enquanto o mundo não-branco aparece no horizonte.
A Rússia é o coringa, o louco, o elemento interno que funciona como gazua para perturbar o mundo branco.
Outros elementos malucos são vistos por aí, você nem precisa nomeá-los. Outros ainda vão ficar loucos.
A guerra interbranca na Ucrânia é o catalisador de um processo de fratura entre o sul e o norte do mundo, do qual estamos vendo apenas os primeiros movimentos.
Às vezes me lembro do presidente Mao, de quem nunca fui seguidor, mas que disse coisas interessantes. Lembro que nos anos 1960 Mao teorizou que os subúrbios logo estrangulariam as metrópoles.
A teoria foi particularmente apoiada por seu leal escudeiro Lin Piao (que mais tarde foi eliminado enquanto pilotava um avião, em 1971),
Mas a visão do Grande Timoneiro deve ser entendida como uma aliança estratégica entre os trabalhadores do mundo industrializado e a população proletária ou camponesa dos países periféricos. O lema da Internacional Comunista “Trabalhadores do mundo, uni-vos!” foi reformado pelos maoístas: “Proletários e povos oprimidos, uni-vos!”
Naqueles anos, o colonialismo parecia retroceder e, em 1975, a derrota dos americanos no Vietnã parecia o momento culminante de um processo de emancipação.
Mas as coisas não saíram exatamente como esperávamos: o colonialismo derrotado ressuscitou em novas formas como dominação econômica, como o extrativismo, como a colonização cultural.
A fórmula “o campo estrangulará as cidades” pode ser considerada, em retrospectiva, como uma alternativa estratégica à aliança entre trabalhadores industriais e povos empobrecidos pelo colonialismo.
Se tudo correr bem, disse Mao, haverá uma aliança entre os trabalhadores do norte e os camponeses do sul. Se algo der errado e os trabalhadores do norte forem derrotados, serão os povos oprimidos que estrangularão o capitalismo imperialista.
Espero que você me perdoe pela simplificação caricatural, mas Mao não estava brincando. A Longa Marcha foi isso: o campo cercou as cidades até que ele tomou o poder em um país predominantemente camponês.
Os chineses guardam a memória da humilhação que as potências ocidentais em ascensão infligiram ao Império Celestial em meados do século XIX. Neste momento, os chineses voltam a se propor como ponto de referência para os povos empobrecidos pelo colonialismo, submetidos à exploração e humilhação por dois séculos, mas que hoje ameaçam a metrópole branca de várias maneiras: migrações, tribalismos nacionalistas, tendências de ruptura do papel do dólar como moeda global.
A “boa” perspectiva estratégica falhou porque o comunismo operário foi derrotado pelo capitalismo global neoliberal. Assim, apenas o segundo, o pior, permanece: nacionalismos ressurgidos, vingança.
Por enquanto, a vingança está ocorrendo dentro do mundo branco, com o conflito entre a Rússia e o Mundo Livre. Mas o próximo capítulo é o ressurgimento agressivo dos poderes que foram subjugados nos séculos passados.
O Ocidente será capaz de sobreviver a este duplo ataque que aumenta a persistência da hostilidade islâmica, pronta para ressurgir no Oriente Médio, mas também nos subúrbios da Europa?
Somente o internacionalismo da classe trabalhadora poderia ter evitado que o confronto com o colonialismo passado e presente terminasse em um banho de sangue global: nas décadas de 1960 e 1970, uma parte decisiva dos trabalhadores do Ocidente industrial e dos proletários dos povos oprimidos pelo colonialismo se reconheceram no mesmo programa comunista. Mas o comunismo foi derrotado, e agora temos que enfrentar a guerra de todos contra todos em nome do nada.
Precipício europeu
Neste precipício geral, deve-se tentar imaginar a evolução do precipício europeu. Como se dará o processo de desintegração social quando a economia for paralisada e a sociedade empobrecer de uma forma impensável até então? Quem vai liderar as prováveis revoltas europeias?
No momento parece certo que as forças predominantes serão nacionalistas e psicóticas, e vem à mente a profecia de Sandor Ferenczi, que em um artigo de 1918 descartou que uma psicose de massa fosse curável.
Este é o desafio de hoje: como tratar uma psicose que ultrapassou seus limites individuais e invadiu a esfera da mente coletiva?
Não podemos responder a essas perguntas hoje de forma coerente, mas devemos nos fazer essas perguntas com urgência, pois a subjetividade social oscila entre uma epidemia depressiva e uma psicose de massa agressiva, e somente uma cura efetiva para essa condição patológica pode impedir o holocausto terminal.
Encontrar essa cura eficaz é uma tarefa a altura do desafio presente.
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