REUTERS/Serhii Nuzhnenko (Foto: REUTERS/Serhii Nuzhnenko)
Por que o conflito na Ucrânia é um desastre para os pobres deste planeta
Artigo publicado originalmente no site Tomdispatch.com
Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247
Em 1919, o renomado economista britânico John Maynard Keynes escreveu ‘The Economic Consequences of the Peace’ (As consequências econômicas da paz), um livro que se provaria efetivamente controverso. Neste ele advertiu que os termos draconianos impostos sobre a Alemanha derrotada depois daquela que foi conhecida então como A Grande Guerra – a qual nós agora chamamos de Primeira Guerra Mundial – teria consequências ruinosas não somente para aquele país, mas para toda a Europa. Agora, eu adaptei este título para explorar as consequências econômicas da (menos que grande) guerra que está em andamento agora – a guerra na Ucrânia, obviamente – não somente para os diretamente envolvidos nesta, porém para o resto do mundo.
Após a invasão executada pela Rússia em 24 de fevereiro último, não surpreendentemente, a cobertura [das mídias hegemônicas] tem focalizado principalmente no combate dia a dia; a destruição dos ativos econômicos ucranianos, desde edificações e pontes até fábricas e cidades inteiras; a situação tanto dos refugiados ucranianos quanto as pessoas deslocadas internamente, ou PDI (IDP – internally displaced people); e o acúmulo de evidências de atrocidades. O potencial de efeitos econômicos da guerra a longo-prazo, dentro e além da Ucrânia, não atraíram nem sequer a mesma atenção, for razões compreensíveis. Estas são menos viscerais e, por definição, menos imediatas. No entanto, a guerra terá um custo enorme, não só na Ucrânia, mas para pessoas desesperadamente pobres vivendo a milhares de quilômetros [de lá]. Os países mais ricos também vivenciarão os efeitos nocivos da guerra, porém serão mais capazes de lidar com eles.
A Ucrânia destruída
Alguns esperam que esta guerra dure muitos anos, ou até décadas, apesar que esta estimativa pareça sombria demais. No entanto, o que sim sabemos é que, mesmo após dois meses, as perdas econômicas da Ucrânia e a assistência externa que aquele país precisará para alcançar qualquer coisa que uma vez passava por normal são assombrosas.
Comecemos pelos refugiados e PDIs da Ucrânia. Juntos, estes dois grupos já compreendem 29% do total da população do país. Para colocar isto em perspectiva, tentemos imaginar 97 milhões de estadunidenses encontrando-se em tamanho predicamento nos próximos dois meses.
Até o final de abril, 5,4 milhões de ucranianos fugiram para a Polônia e outros países vizinhos. Apesar de que muitos – as estimativas variam entre algumas centenas de milhares e um milhão – começaram a retornar, não está claro se eles serão capazes de ficar (que é a razão pela qual os números da ONU os excluem desta estimativa sobre o número total de refugiados). Caso a guerra piore e, efetivamente, dure por anos, um êxodo contínuo de refugiados poderá resultar num total inimaginável hoje.
Isto resultará em ainda mais tensão nos países que os estão acolhendo - especialmente a Polônia, que já recebeu aproximadamente 3 milhões de refugiados ucranianos. Uma estimativa de quanto custa para provê-los com as suas necessidades básicas é de US$ 30 bilhões – e isto é para um ano somente. Além disso, quando se fez esta projeção havia um milhão de refugiados a menos que agora. Adicionem-se a isto os 7,7 milhões de ucranianos que deixaram os seus lares, porém não o próprio país. O custo de fazer com que estas vidas sejam completas de novo será assombroso.
Uma vez que a guerra acabe e estes 12,8 milhões de ucranianos desenraizados comecem a tentar reconstruir as suas vidas, muitos deles descobrirão que os seus edifícios de apartamentos e suas casas já não estão mais em pé, ou não são habitáveis. Os hospitais e clínicas dos quais eles dependiam, os lugares onde trabalhavam, as escolas dos seus filhos, as lojas e centros comerciais em Kiev e outros lugares onde eles compravam as suas necessidades básicas também podem ter sido arrasados ou muito danificados. Espera-se que a economia ucraniana se reduza em 45% apenas neste ano – o que não é nenhuma surpresa, considerando que metade dos seus negócios não estão operando e, segundo o Banco Mundial, as suas exportações marítimas da sua costa sul efetivamente cessaram. Mesmo para voltar aos níveis de produção de antes da guerra levará pelos menos alguns anos.
Cerca de um terço da infraestrutura da Ucrânia (pontes, estradas, linhas férreas, instalações hidráulicas, etc.) já foram danificados ou demolidos. O reparo ou reconstrução destes demandará entre US$ 60 bilhões e US$ 119 bilhões. O ministro das Finanças da Ucrânia avalia que se foram adicionadas as perdas de produção, exportações e rendas, o dano causado pela guerra já excede a US$ 500 milhões. Isto é quase quatro vezes o valor do PIB da Ucrânia em 2020.
Há que lembrar que estes números, no melhor dos casos, são aproximações. Os custos verdadeiros sem dúvida serão maiores e serão necessárias vastas somas em assistência de organizações internacionais e dos países ocidentais por muitos anos. Num encontro convocado pelo FMI (IMF – International Monetary Fund) e o Banco Mundial, o primeiro-ministro da Ucrânia estimou. que a reconstrução do seu país demandaria US$ 600 bilhões e que ele precisa de US$ 5 bilhões por mês pelos próximos cinco meses apenas para reforçar o seu orçamento. Ambas as organizações já entraram em ação. No início de março, o FMI aprovou um empréstimo emergencial de US$ 1,4 bilhão para a Ucrânia e o Banco Mundial adicionou outros US$ 723 milhões. E isto certamente será apenas o começo de um fluxo de longo prazo de fundos para Ucrânia vindos destes dois credores, enquanto que alguns governos ocidentais e a União Europeia sem dúvida proverão os seus próprios empréstimos e doações.
O Ocidente: inflação mais alta, crescimento mais baixo
As ondas de choque econômico criadas pela guerra já estão causando danos às economias ocidentais e a dor só fará aumentar. O crescimento econômico nos países europeus mais ricos foi de 5,9% em 2021. O FMI prevê que este cairá para 3,2% em 2022 e para 2,2% em 2023. Neste ínterim, só entre fevereiro e março deste ano, a inflação na Europa cresceu de 5,9% para 7,9%. E isto parece modesto comparado com o pulo nos preços da energia na Europa – até março, estes já haviam crescido até gritantes 45% comparados com um ano atrás.Segundo o Financial Times, a boa notícia é que o desemprego caiu para uma baixa recorde de 6,8%. A má notícia é que a inflação ultrapassou os salários, de modo que os trabalhadores na verdade estavam ganhando 3% a menos.
Quanto aos Estados Unidos, a projeção de crescimento econômico de 3,7% projetado para 2022 provavelmente será melhor do que nos principais países europeus. No entanto, o Conference Board – um centro de estudos [think tank] de 2.000 empresas – espera um decréscimo de 2,2% no crescimento para 2023. Neste ínterim, a taxa de inflação nos EUA chegou a 8,54% no final de março. Isto é duas vezes mais do que era há 12 meses e é a taxa mais alta desde 1981. Jerome Powell, presidente do Federal Reserve [“Fed”: banco “central” dos EUA] advertiu que a guerra criará uma inflação adicional. O colunista do The New York Times, o economista Paul Krugman, espera que os aumentos de preços piorem antes que comecem a melhorar. O Fed pode inibir a inflação ao elevar as taxas de juros, porém isso poderá acabar reduzindo ainda mais o crescimento econômico. Efetivamente, o Deutsche Bank noticiou em 26 de abril que a sua previsão de que a batalha do FED contra a inflação criará uma “grande recessão” nos EUA no final do próximo ano.
Junto com a Europa e os EUA, a região da Ásia-Pacífico – a terceira maior potência econômica do mundo – tampouco escapará ilesa. Citando os efeitos da guerra, o FMI cortou em outros 0,5% a sua previsão de crescimento para aquela região, para 4,9% neste ano, comparado com 6,5% no ano passado. A inflação na região da Ásia-Pacífico tem sido baixa, porém espera-se que esta suba em alguns países.
Estas tendências tão indesejadas não podem ser todas atribuídas apenas à guerra. A pandemia do Covid-19 criou problemas em muitas frentes e a inflação nos EUA já estava rastejando para cima antes da invasão – porém isto certamente piorará as coisas. Considere os preços de energia desde 24 de fevereiro, o dia em que a guerra começou. O preço do petróleo estava a US$89 por barril. Depois de zigzaguear e de um ápice de US$ 119 no dia 9 de março, o preço se estabilizou (pelo menos até agora) a US$ 104.7 em 28 de abril – um pulo de 17,6% em dois meses. Os apelos dos governos dos EUA e do Reino Unido à Arábia Saudita e aos Emirados Árabes Unidos para que aumentassem a produção de petróleo não chegaram a lugar algum, de modo que ninguém deve esperar um alívio rápido.
Os preços de transportes via containers marítimos e cargas aéreas, que já haviam sido aumentados pela pandemia, aumentaram mais ainda após a invasão da Ucrânia e a perturbação da cadeia de suprimento também piorou. Os preços dos alimentos também aumentaram, não apenas devido aos custos mais altos da energia, mas também porque a Rússia responde por cerca de 18% das exportações globais de trigo (e a Ucrânia por 8%), enquanto que a participação da Ucrânia nas exportações mundiais de milho representam 16% e os dois países juntos respondem por mais de um quarto das exportações globais de trigo – um item crucial para tantos países.
A Rússia e a Ucrânia também produzem 80% do óleo de girassol do mundo, amplamente usado para cozinhar. Os preços em elevação e a escassez desta commodity já são aparentes não só na União Europeia, mas também nas partes mais pobres do mundo, como no Oriente Médio e na Índia – que recebem quase todo o seu suprimento da Rússia e da Ucrânia. Além disso, 70% das exportações da Ucrânia são transportadas por navio – e tanto o Mar Negro quanto o Mar de Azov agora são zonas de guerra.
A condição dos países de “baixa renda”
O crescimento mais lento, os aumentos de preços e taxas de juros mais altas que resultam dos esforços dos bancos centrais para domar a inflação, bem como o desemprego crescente, causarão danos às pessoas que vivem no Ocidente – especialmente os mais pobres dentre eles, que gastam uma parte muito maior da sua renda em necessidades básicas como comida e gás. Porém, os “paises de baixa renda” (segundo a definição do Banco Mundial, aqueles uma uma renda anual média per capita abaixo de US$ 1,045 em 2020), especialmente os cidadãos mais pobres, serão atingidos muito mais duramente. Dado às enormes necessidades financeiras da Ucrânia e a determinação do Ocidente de atendê-las, os países de baixa renda provavelmente encontrarão mais dificuldades para conseguir financiamentos para pagar as suas dívidas causadas pelo aumento de empréstimos para cobrir os custos de importações, especialmente de itens essenciais como energia e alimentos. Adicione-se a isso a reduzida renda com exportações devido ao crescimento econômico global mais lento.
A pandemia do Covid-19 já havia forçado os países de baixa renda a enfrentar a tempestade econômica pegando mais empréstimos, porém as baixas taxas de juro tornaram as suas dívidas – que já tinham alcançado um recorde de US$ 860 bilhões a ficarem um pouco mais fácil de gerenciar. Agora, com a baixa do crescimento global e o aumento dos custos de energia e alimentos, eles serão forçados e pegar empréstimos a taxas de juro mais altas, o que apenas aumentará a sua carga de repagamentos.
Durante a pandemia, 60% dos países de baixa renda pediram o relevo das obrigações de repagamento das suas dívidas (comparado com 30% em 2015). As taxas de juros mais elevadas, junto com os preços mais altos de alimentos e energia, agora piorarão o arrocho deles. Por exemplo, neste mês Sri Lanka ficou inadimplente na sua dívida. Economistas proeminentes advertem que isso pode provar-se como um alarma, já que outros países como o Egito, o Paquistão e a Tunísia enfrentam problemas similares, os quais são agravados pela guerra. Juntos, 74 países de baixa renda devem US$ 35 bilhões em repagamentos de dívidas neste ano, um aumento de 45% sobre 2020.
E há que lembrar que estes sequer são considerados como países de baixa renda. Para eles, tradicionalmente o FMI tem servido como um credor de último recurso, mas será que eles poderão contar com a ajuda do FMI quando a Ucrânia também precisa urgentemente de enormes empréstimos? O FMI e o Banco Mundial podem procurar contribuições adicionais dos seus estados-membros ricos; porém será que o conseguirão, quando estes países também estão lidando com crescentes problemas econômicos e estão preocupados com os seus próprios eleitores raivosos?
Obviamente, quanto maior for a carga de dívidas dos países de baixa renda, menos eles serão capazes de ajudar os seus cidadãos mais pobres a lidar com os preços mais altos dos itens essenciais, especialmente a comida. O índice de preços da FAO (Food and Agricultural Organization – Organização de Alimentos e Agricultura da ONU) subiu 12,6% só de fevereiro a março deste ano e este já era 33,6% mais alto do que há um ano.
Os elevados preços do trigo – em um momento, o preço por alqueire quase duplicou, antes de estabilizar-se a um nível 38% mais alto do que no ano passado – já criaram escassez de farinha e pão no Egito, no Líbano e na Tunísia, os quais até a pouco tempo importavam da Ucrânia entre 25% e 80% do seu insumo de trigo. Outros países, como o Paquistão e Bangladesh poderão enfrentar o mesmo problema; O Paquistão importa quase 40% do seu trigo da Ucrânia e Bangladesh importa 50% do seu trigo da Rússia e da Ucrânia.
O lugar que mais sofre com a disparada de preços dos alimentos talvez seja o Iêmen – um país que está atolado numa guerra civil há anos e enfrentou a escassez de alimentos e a fome muito antes da Rússia invadir a Ucrânia. Trinta porcento das importações de trigo do Iêmen vêm da Ucrânia e, graças à redução de suprimento criada pela guerra, o preço por quilo já quase quintuplicou no sul do país. O Programa de Alimentos da ONU (WFP – World Food Program) tem gasto US$ 10 milhões por mês de extra para as suas operações no país, já que quase 200 mil pessoas poderão enfrentar “condições de fome” e um total de 7,1 milhões vivenciarão “níveis emergenciais de fome”. No entanto, o problema não se limita a países como o Iêmen. Segundo a WFP, 276 milhões de pessoas no mundo inteiro enfrentavam “fome aguda” mesmo antes da guerra começar e, se esta se prolongar ao verão (do hemisfério norte), outros 27 milhões a 33 milhões se encontrarão exatamente naquela situação precária.
A urgência da paz – e não só para os ucranianos
A magnitude dos recursos financeiros necessários para reconstruir a Ucrânia, a importância que os EUA, o Reino Unido e o Japão dão a esta meta, e o crescente custo de importações críticas, colocarão os países mais pobres do mundo numa situação econômica ainda mais difícil. Certamente, as pessoas pobres nos países ricos também são vulneráveis, porém aqueles nos países mais pobres sofrerão muito mais.
Muitos já estão mal sobrevivendo e não têm a gama de serviços sociais disponíveis aos pobres nas nações ricas. A rede de segurança social dos EUA é ínfima quando comparada com as suas análogas europeias, porém pelo menos esta existe. Não é assim nos países mais pobres. Nestes, os menos afortunados arranjam-se com pouca ou nenhuma ajuda dos seus governos. Apenas 20% deles têm cobertura de algum tipo em programas deste tipo.Os mais pobres do mundo não são responsáveis pela guerra na Ucrânia e não tem a capacidade de fazê-la terminar. No entanto, além dos próprios ucranianos, eles [os pobres] serão os mais atingidos pela prolongação da guerra. Os mais empobrecidos dentre eles não estão sendo bombardeados pelos russos, nem estão sendo ocupados e sujeitos a crimes de guerra como o foram os habitantes da cidade ucraniana de Bucha. Mesmo assim, também para eles [os pobres do mundo], terminar com a guerra é uma questão de vida ou morte. Isto eles compartilham com o povo da Ucrânia.
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