Marina Gusmão, Formas.
Por JEREMY CORBYN*
Discurso proferido na “Conferência do Fim do Mundo” da Internacional Progressista
Falas como essa costumam começar com o palestrante enfatizando que nos encontramos em um momento urgente. Hoje, porém, quando você observa o mundo ao redor, percebe que se trata de uma verdade. Tantas coisas estão acontecendo no mundo – e tão rapidamente – que, por vezes, é difícil e atordoante acompanhar.
A Internacional Progressista (IP) é um projeto jovem, mas que já fez tanto para nos aproximar, pela ação em defesa de transformações radicais e para tornar nosso mundo acelerado compreensível. Eu me orgulho de que o Peace and Justice Project seja membro e tenho a honra de compor o seu conselho junto a tantos líderes e ativistas inspiradores.
A primeira conferência da Internacional Progressista, que ocorreu em setembro de 2020, organizou-se em torno do título “Extinção ou Internacionalismo”. Um ano e meio depois, devemos ser realistas: o ponteiro aproximou-se mais da extinção.
No mês passado, os climatologistas alertaram que, para limitar o aquecimento global, é “agora ou nunca”. É quase possível ouvi-los gritar diante de seus teclados, desesperados para que os governos realmente façam alguma coisa, quando destacam a importância de cortes “rápidos, profundos e imediatos” nas emissões de CO2.
O alerta vermelho começou a soar depois do fracasso da COP26, em Glasgow, onde dependemos de que vozes alternativas, nas margens do evento, nos dissessem a verdade e planejassem um futuro melhor. Mas as suas palavras – assim como as dos cientistas – não são apenas um alerta acera do futuro; elas descrevem a presente realidade de bilhões de pessoas.
O sul da Ásia já está no terceiro mês de uma onda de calor extrema, com temperaturas ultrapassando os 40ºC um dia após o outro. Imagine isso: nenhuma trégua, nenhum alívio, trabalhar neste calor.
Nós, humanos, somos incrivelmente capazes de nos adaptar, mas a morte chega antes quando está tão quente. Cientistas descobriram que até mesmo aumentos relativamente pequenos na temperatura média levam a riscos muito maiores de mortes em massa devido ao calor. Já vimos como o calor extremo provoca incêndios florestais, destruindo habitats e matando animais e pessoas.
Trinta milhões de pessoas tiveram que migrar devido aos choques climáticos em 2020. E estes choques acumulam mais conflitos futuros ao arruinar as safras. Punjab, o celeiro da Índia, já observou uma queda preocupante nas colheitas de trigo deste ano devido ao calor.
E não é apenas o sul da Ásia que está escaldando. Em março, ambos o Ártico e a Antártica estavam, ao mesmo tempo, a 30ºC acima de suas temperaturas médias. Deixe-me dizer mais uma vez. O polo Norte e o polo Sul estavam, ambos, 30ºC mais quentes do que o normal para um mês de março. O gelo está derretendo e o nível do mar está aumentando. Pequenas nações insulares estão em risco, assim como bilhões de pessoas que vivem em regiões costeiras ou dependem de cadeias de abastecimento que utilizam a infraestrutura costeira.
Sabemos que o modelo econômico dominante, com sua poluição, extração e obsolescência interna pouco se preocupa com o nosso meio ambiente. Mas as suas artérias, a cadeias globais de fornecimento que conectam as minas, as fábricas, as vias de navegação, os portos, os armazéns, as redes de suprimento e os consumidores de todo o planeta já estão profundamente abaladas, mesmo antes de se poderem sentir todos os efeitos do colapso climático.
Na economia capitalista global intensamente integrada, especialmente após o FMI passar décadas forçando os países a abandonarem a produção para seus mercados domésticos, a interrupção implica desastre. Mais de 800 milhões de pessoas – uma a cada dez pessoas da população mundial inteira – já estão indo dormir com fome.
O preço do trigo já dobrou este ano. E ele pode continuar subindo conforme os efeitos da invasão criminosa da Rússia na Ucrânia e do isolamento parcial da economia russa, decorrente disso, são sentidos. Os dois países estavam dentre os cinco maiores exportadores de trigo do mundo antes da guerra. Muitos países no Sul Global dependem deles para seu abastecimento alimentar.
A guerra da Rússia na Ucrânia deve ser condenada. E ela devia focar nossa atenção em todas as outras vítimas de guerra em países beligerantes por todo o mundo. É claro, estamos com o povo ucraniano, assim como estamos com qualquer população vítima de invasão, deslocamento e ocupação. E devemos, enquanto movimentos progressistas por todo o mundo, nos manter extremamente firmes em nosso apoio aos refugiados, cujos direitos e cujas vidas devem ser protegidos. Aqueles fugindo da violência e da fome no Afeganistão e no Iêmen, atualmente os lugares mais pobres do planeta devido à sua destruição pela guerra, devem ser recebidos com humanidade e hospitalidade, não racismo e ressentimento.
Guerras levam à fome, ao sofrimento psíquico e à morte por anos depois que as lutas cessam. Não temos tempo a perder. Deve haver um cessar-fogo imediato, a retirada das forças russas e a negociação de um acordo.
Se não houver, não apenas o povo ucraniano continuará enfrentando o horror das bombas, dos tanques e das sirenes antiaéreas; não apenas os refugiados ucranianos sofrerão futuros incertos e terão que se deslocar de suas famílias e comunidades; não apenas jovens recrutas russos serão enviados para serem brutalizados no exército e para morrer em uma terra estrangeira por uma guerra que não compreendem; não apenas o povo russo irá sofrer sob sanções; não apenas as pessoas no Egito, na Somália, em Laos, no Sudão, e muitas outras que dependem do trigo das nações em guerra enfrentarão o aumento da fome; não apenas os preços para os consumidores por todo o mundo irá aumentar, intensificando a luta para simplesmente seguir em frente.
Mas todos na Terra enfrentarão a ameaça do Armageddon nuclear. A ameaça de um confronto direto entre as forças russas e a OTAN é uma ameaça clara e atual para todos nós. Ambos os lados estão sendo incentivados por forças selvagens e perigosas em suas respectivas mídias. Estas ações são extremamente perigosas. Elas estabelecem uma atmosfera de ameaça e de medo extremos que tornam a destruição da vida como a conhecemos muito mais provável.
Já estivemos aqui antes. A maioria das pessoas não sabe quão perto chegamos de uma guerra nuclear. Em 1983, as lideranças soviéticas estavam convencidas de que o Ocidente iria lançar um ataque nuclear. Em 26 de setembro, o sistema soviético de alarme nuclear prévio disparou, sugerindo que os Estados Unidos haviam dado início a um ataque. De acordo com o protocolo, a URSS lançaria um ataque nuclear retaliatório imediato.
O oficial encarregado, Stanislav Petrov, desrespeitou o protocolo, evitando um ataque em retaliação por acreditar – ou talvez esperar – que se tratava de um alarme falso. Ele aguardou, durante aqueles nervosos minutos, para ver se as bombas viriam. Ele estava certo, e salvou a humanidade. É a essa distância que chegamos da aniquilação: um homem revogando os protocolos militares estabelecidos e confiando em seus instintos em vez de na tecnologia.
É por isso que é tão importante defender a proibição de armas nucleares, o tratado global de proibição, que hoje faz parte das leis internacionais devido a campanhas inspiradoras do Sul Global. E, agora, devemos nos unir e construir um movimento global pela paz. Conforme afirma a declaração política da Internacional Progressista: desmontar a máquina de guerra e construir uma diplomacia dos povos.
Não será fácil. Empresas armamentistas se dão muito bem fora da guerra. Elas financiam políticos e think tanks. Elas têm muitos porta-vozes midiáticos. Aqueles que lutam pela verdadeira paz são demonizados, uma vez que os interesses da máquina de guerra estão por detrás do conflito.
É por isso que defensores da justiça também são atacados com tanta persistência. Eles ameaçam a riqueza e o poder ilícito dos poucos. Vemos isso acontecer repetidamente. Seus interesses não são os interesses gerais. Eles não são os interesses de vocês.
Podemos ver isso com uma clareza dolorosa na pandemia, conforme o Big Pharma se recusa a compartilhar a tecnologia das vacinas que foram desenvolvidas, principalmente, com financiamentos públicos. Quem se beneficia disso? Os executivos da indústria farmacêutica e seus acionistas. Quem perde? Todas as outras pessoas. Mais mães e mais pais morrem. Mais vidas são arruinadas. E a ameaça da mutação viral ronda sobre todos, vacinados e não vacinados.
Como é que eles se safam disso? Eles convenceram os governos de alguns dos países mais ricos e poderosos de que os interesses empresariais são os seus interesses. Não é uma conspiração. Apenas observem os fatos. O Estado é usado para sustentar a riqueza dos mais ricos. Bancos centrais injetaram 9 trilhões de dólares em 2020 em resposta à pandemia. O resultado? O patrimônio dos bilionários aumentou em 50% em um ano enquanto, ao mesmo tempo, a economia global retraiu. Ela ficou menor.
Os bilionários e as empresas dizem que odeiam a ação governamental. Na verdade, eles a amam. A única coisa que odeiam são governos agindo em defesa dos interesses de vocês.
E, por isso, eles lutam para manter os governos em seus bolsos e tentam derrubar aqueles que não estão. Eles precisam que o Estado os sustente. Uma vez que o crescimento econômico provavelmente será pequeno nas próximas décadas, conforme as elites evitam e administram mal a transição energética, a riqueza e as dívidas dos poderosos precisarão ser constantemente reforçadas por bancos centrais e políticas governamentais.
Assim, quando damos um passo atrás e avaliamos todas as dinâmicas e perigos que acompanham isso, uma verdade surge diante de nós. Estávamos acostumados a pensar que existe uma série de crises distintas: a climática, a dos refugiados, a habitacional, a da dívida, as crises de desigualdade, a crise dos ricos ficando mais ricos e os pobres mais pobres. Tentávamos isolar cada uma para resolvê-las.
Então começamos a perceber que as crises principais – do capital, do clima e do imperialismo – estavam entrelaçadas. Por isso, tivemos que enfrentar todas elas ao mesmo tempo, mas de maneiras distintas.
Agora, podemos ver que não enfrentamos múltiplas crises distintas. O próprio sistema está em crise. O sistema global não está em uma crise que pode ser resolvida. O sistema é a crise e deve ser superado, substituído, transformado. Conforme diz o slogan, precisamos de mudanças sistêmicas, não de mudanças climáticas.
É por isso que, nesta semana, a Internacional Progressista se encontra sob o título não tão animador de “Conferência no Fim do Mundo” [“Summit at the End of the World”].
Porque o fim do mundo já está aqui – ele só é mal distribuído. A imagem do apocalipse – bombas e ataques aéreos, vazamentos de petróleo e incêndios florestais, doenças e epidemias – já é a realidade para pessoas por todo o planeta.
A periferia é o futuro, não o passado. Nos disseram que os países desenvolvidos oferecem àqueles em desenvolvimento uma imagem de seu futuro. Mas a periferia está na vanguarda da história – onde a crise do capital ataca com mais força, as consequências do colapso climático chegam mais rápido e o grito de resistência soa mais alto.
E essa resistência é poderosa e inspiradora. Existe, apesar de tudo, muito para nos dar esperança.
Desde a última conferência da Internacional Progressista, o mundo assistiu à maior greve da história. Agricultores e trabalhadores aliados na Índia resistiram a dois projetos neoliberais que o governo de Narenda Modi queria aprovar no seu parlamento. Os agricultores defenderam seus interesses, os seus meios de vida e as necessidades dos mais pobres. E eles venceram.
Ou, então, considere a Amazon, a quinta empresa com maiores lucros durante a pandemia. Sua ganância e exploração têm sido corajosamente enfrentados pelos trabalhadores, pelas comunidades e pelos ativistas em todos os continentes do mundo. Eles se uniram para “fazer a amazon pagar” [Make Amazon Pay].
Na América Latina, em país após país, as pessoas estão se mobilizando em defesa de líderes políticos progressistas que dizem chega à dominação pelo capital, à destruição de suas comunidades e ao abuso do meio ambiente.
Mas resistir não é o suficiente. Precisamos construir.
E é isso que eu vejo em comunidades por todo o mundo: pessoas se unindo diante da adversidade e percebendo que, se trabalharem juntas, suas conquistas são maiores. O socialismo já está presente em nossas comunidades. Cultivá-lo até que se torne uma alternativa poderosa é a nossa tarefa, nossa causa.
E é isso que estamos fazendo nesta semana. Esta conferência é um local de construção. Por que estamos fazendo um balanço deste mundo agonizante? Para construir o novo, aquele que o substituirá – transbordando de vida, unido pelo amor, e movido pela soberania popular.
Como fazemos isso? É algo tão urgente. Não há mais tempo a perder.
Em primeiro lugar, nos unimos. Forças progressistas precisam se unir para além das fronteiras e das dificuldades para mobilizar-se e organizar-se no confronto às crises do capital, do clima e do imperialismo.
Isso significa que a tarefa com a qual cada um de nós se confronta é dupla. Nós fortalecemos os trabalhadores urbanos e rurais em suas lutas contra a exploração, pessoas e comunidades em suas lutas por dignidade, e forças progressistas que trabalham para mobilizar o poder estatal. E nós reunimos todas elas em alianças populares poderosas com a capacidade de reconstruir o mundo.
Conforme os sistemas entram em colapso, enfrentaremos os defensores da reação, assim como a elite que deseja manter as coisas como estão. Já sentimos o gosto de seu veneno com Trump, Bolsonaro, Modi, Erdogan, Putin e Duterte.
Para derrotar estes monstros de nosso tempo e os novos que virão, construímos o poder popular para unir as lutas contra o fim do mundo com a batalha no fim do mês. Nossos movimentos devem levar a uma vida melhor para as pessoas comuns, garantindo sua sobrevivência, moradia, saúde, seu direito a ter mais tempo para passar com os amigos e com aqueles que amam, o poder sobre suas próprias vidas, e um meio ambiente limpo, seguro e sustentável.
Se fizermos isso, cultivaremos a esperança e não o desespero. E daremos vida a um novo mundo a partir das cinzas deste.
Portanto, eu quero que vocês se comprometam hoje: dupliquem seus esforços nas lutas em que estão envolvidos. Juntem-se àquela campanha a que têm considerado juntar-se. Demonstrem aquela solidariedade real. Enfrentem os bullies. Construam sindicatos. Façam parte de movimentos. E ajudem a uni-los, como estamos fazendo hoje na Internacional Progressista.
Cabe a nós construir um novo mundo. Faça-o para si mesmo, para a sua família, para sua comunidade. Faça-o pela humanidade. Se não o fizermos, a vida irá piorar muito para a maioria das pessoas no intervalo de uma geração. Mas se o fizermos, a vida será muito melhor.
Quero que vocês sejam capazes de olhar para trás, daqui a uma geração, e dizer, sim, eu construí os sindicatos, as organizações comunitárias, os movimentos sociais, as campanhas, os partidos, a Internacional que inverteu a maré.
Quero que vocês sejam capazes de dizer, sim, somos a maior geração, que, junta, produziu e distribuiu a comida, as moradias e os cuidados de saúde para que ninguém enfrentasse a pobreza, que preservou e compartilhou a sabedoria dos povos deste planeta, espalhou o amor entre as pessoas e as comunidades, construiu sistemas energéticos para descarbonizar nosso planeta, destruiu máquinas de guerra e defendeu os refugiados, que controlou o poder dos bilionários e garantiu uma nova ordem econômica internacional.
Será fácil? É claro que não. Iremos enfrentar uma resistência enorme. É claro que iremos. Haverá altos e haverá baixos. Mas todos os dias podemos nos levantar e saber que faremos nossa pequena parte. É tudo o que podemos fazer. Dia após dia. Semana após semana. Mês após mês. Ano após ano. Construindo nossas campanhas, construindo nossos movimentos, construindo nosso poder, e tomando o futuro em nossas mãos.
É assim que grandes vitórias foram conquistadas no passado – todas as lutas que se uniram – pelo voto, pela independência, pelos direitos civis, pela terra, pela saúde, pelos empregos – que tornaram nosso mundo mais civilizado. Podemos encontrar grande força e orgulho nesta história. E podemos e iremos nos apoiar nos ombros dos jovens de todo o mundo e reivindicaremos seus futuros e suas oportunidades.
Mesmo diante de enorme resistência e opressão e de um sistema em colapso, reconstruiremos um mundo adequado para a próxima geração. Como escreveu uma vez o grande e maravilhoso poeta chileno Pablo Neruda, “podes cortar todas as flores, mas não podes impedir a primavera de aparecer”. E a primavera, meus amigos, está chegando.
*Jeremy Corbyn é membro do parlamento inglês. Foi líder do Partido Trabalhista e líder da Oposição na Câmara dos Comuns do Reino Unido de 2015 a 2020.Tradução: Daniel Pavan.Publicado originalmente no site da revista Jacobin.
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