quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Explorar o trabalho dos outros

Fontes: The Rocket to the Moon [Imagem: Diego Rivera, Detroit Industry Murals, 1933.]

Por Enrique Arias Gibert
https://rebelion.org/

Não é possível fingir ser capitalista e ser contra o neoliberalismo

A hagiografia do capitalismo apresenta as mutações nos modos de exploração do ser humano e da natureza como resultado inexorável de desenvolvimentos técnicos ou fenômenos naturais como chuva e vento.

Três pressupostos típicos da tradição marxista, mas alheios a Marx, servem de lastro para desmascarar essas posições: 1. A inexorabilidade da evolução da história e do cenógrafo; 2. A crença de que o desenvolvimento das forças produtivas determina os modos de produção; e 3. O fetichismo das formas jurídicas.

O caráter inexorável das transformações é sustentado pela crença em uma teleologia da história, típica da ideologia do socialismo reformista.

Parte da historiografia marxista considerou que uma sociedade sem classes só poderia vir da superação do modo de produção capitalista. Marx, é claro, nunca foi marxista a esse respeito. Sua correspondência sobre as possibilidades de construção do comunismo da comunidade russa é suficiente para provar isso.

Tanto a expressão do materialismo dialético paleo-marxista quanto a propaganda dos fundamentalistas de mercado compartilham uma visão econômica determinista (da história no primeiro caso, de sua conclusão no segundo). As leis econômicas são apresentadas como leis físicas da mesma forma obtusa em que se negava a possibilidade de voar com aparelhos mais pesados ​​que o ar (“Se Deus quisesse que o homem voasse, ele lhe daria asas”).

Se há etapas históricas que necessariamente devem ser percorridas, o movimento é tudo; o objetivo final não é nada, como disse Bernstein. É uma questão de a história seguir seu caminho necessário e que a ação política se reduza à gestão das reformas. Isso resulta em uma sacralização do dado e na atividade dos partidos "socialistas" para garantir o desenvolvimento do capitalismo como um estágio intermediário necessário.

Essa ideologia de “gestão” progressiva cedeu a capacidade de enunciar mudanças às forças de extrema-direita. Assim, o trabalho é um mal desnecessário ou é um bem escasso conforme a necessidade do discurso. Em suma, o trabalho é a esmola que o capital deixa como um presente sentimental (uma fraqueza a ser corrigida) a seres obscuros e sem nome. Tudo desaparece, exceto a luz. A luz da economia racional e as leis do mercado. Fora dela, no escuro, ouvem-se os murmúrios da plebe, com seus costumes, seus ídolos, suas superstições e seus ritos. No rigor das leis do mercado, enuncia-se como bem-aventurado que os despossuídos devam vender ao preço que se oferece tudo o que ainda adere à sua humanidade, não apenas sua força de trabalho, mas até seus órgãos.

Em segundo lugar, contribui para o sucesso ideológico desta apresentação a crença de que o desenvolvimento das forças produtivas é o que determina os modos de produção. Nessa crença, é o moinho de água que criou o feudalismo ou é a tecnologia da informação ou a gestão do trabalho que determina o modo de exploração neoliberal.

Não são as forças produtivas que determinam os modos de produção, mas são os modos de produção que encontram na tecnologia existente os métodos de impor e reforçar seu domínio ou hegemonia sobre os setores subordinados da sociedade em questão. Na própria base do sistema de produção está a opção político-legal: a imposição de um sistema de distribuição dentro de uma sociedade. Essa distribuição determinará a organização social do trabalho e até mesmo o conteúdo material e tecnológico da produção. Os romanos conheceram e desenvolveram modelos de moinhos de água, como apontam os escritores agrários, mas seu desenvolvimento não foi essencial para o modelo de distribuição e produção do império romano. Do mesmo modo, a produção de pequenas séries típicas do modelo pós-fordista não é uma invenção do final do século XX. Foi essencial ao longo desse século para a indústria da moda e a sua extensão a outras indústrias foi uma resposta ao desenvolvimento da luta de classes a partir do final dos anos 60.

Por fim, é necessário esclarecer o que se pode chamar de fetichismo das formas jurídicas que se vincula aos dois primeiros pressupostos. García Linera diz (2021:90): “As definições legais de classes, tão características de manuais e panfletos, são uma verdadeira barreira epistemológica para entender as estratificações sociais não capitalistas. Mais ainda, a própria complexidade adotada pelas classes definidoras do regime do capital é impossível de entender a partir dessas caracterizações legalistas ou técnicas que são atribuídas ao marxismo.”

O modo de produção (e reprodução) capitalista não pode ser entendido a partir do compasso da propriedade dos meios de produção (para a definição de burguês ou empresário) ou dos salários (para a definição de proletário ou trabalhador).

Para enfrentar esses três obstáculos epistemológicos tão embutidos na concepção vulgar do marxismo e dar conta do estado atual da luta de classes, não é necessário fazer acréscimos ou revisões no pensamento de Marx, mas sim recuperar a borda de seus desenvolvimentos conceituais, do revisionismo e dos santos escritos para justificar um regime ou um autor.

O capital não é dinheiro, nem meio de produção, nem mercadoria que resulta do processo de produção. Para que esses elementos se transformem em capital, devem ser elementos dos processos de produção e valorização. Capital é valor que se valoriza, pelo menos potencialmente. O capital é idêntico ao processo de valorização.

O capital é um processo de valorização próprio de um modo de produção, o capitalismo, que requer condições históricas e econômicas que permitam seu desenvolvimento. Essa unidade de dois processos em relação dialética, em que os sujeitos adquirem sucessivamente a função de comprador e vendedor de força de trabalho e mercadoria, em duas partes de um ciclo, o processo de produção e o processo de circulação que também se encontram na unidade dialética de processos de trabalho e valorização que ocorrem juntos. O processo capitalista só pode ser entendido levando em conta esses dois aspectos, essa unidade dos opostos.

Quando se afirma, por exemplo, que o capital é essencial para o trabalho ou que sem capital o trabalhador não pode trabalhar, ele se eterniza como categoria. O capitalismo é um modo de produção, mas só se pode falar de capitalismo levando em conta as diferenças específicas com outros modos de produção.

Identificar o capital com os meios de trabalho ou mesmo com o processo de trabalho oculta as características do capital como processo de valorização. E esse esquecimento, do ponto de vista da esquerda, nos faz esquecer que o dependente nasce como tal como capital variável. Você é um trabalhador como fração do capital, justamente o que torna possível o processo de valorização do capital. Por isso, o trabalhador submetido ao poder de comando do capital nasce com uma consciência alienada. Ele é um trabalhador como capital variável e por isso pode se considerar parte da empresa.

A polaridade da mercadoria vendida entre trabalhador e empregador são as próprias condições de existência do sistema capitalista: a) a liberdade formal do trabalhador que pode vender sua principal mercadoria, a força de trabalho; b) a opressão real do trabalhador que deve vender a força de trabalho para preservar suas condições de subsistência.

Entrado no processo de trabalho e valorização, o trabalhador abandona sua liberdade formal de agir sob a dominação do capital, que determina as condições objetivas do processo de produção. Você entra para trabalhar como meio desses processos que lhe são estranhos. Esta é a definição adequada de dependência. É a subsunção formal do trabalho no capital.

“O processo de trabalho torna-se instrumento do processo de valorização, do processo de autovalorização do capital: da criação de mais-valia. O processo de trabalho está subsumido no capital (é seu próprio processo) e o capitalista se coloca nele como líder, condutor; para ele é ao mesmo tempo, diretamente, um processo de exploração do trabalho dos outros. Isso é o que chamo de subsunção formal do trabalho no capital. É a forma geral de todo processo de produção capitalista, mas é ao mesmo tempo uma forma particular em relação ao modo de produção especificamente capitalista, desenvolvido, pois este inclui o primeiro, mas o primeiro não inclui necessariamente o segundo. (Marx, 1997: 54).

Para que nascesse o capitalismo como sistema ou capitalismo desenvolvido, era necessário que o capitalismo abandonasse sua forma local e se tornasse uma economia mundial, para a qual era necessária a primeira forma geral de apropriação original, como a pilhagem do continente americano pelos europeus. O capitalismo como sistema ergue-se acima do insondável vale do morro Potosí.

Essa injeção de dinheiro é o que permite simultaneamente o surgimento da real subsunção do trabalho ao capital com o desenvolvimento da maquinaria e, fundamentalmente, que o capital era a força motriz das nações.

Deleuze e Guattari (1988:461-462) dão uma ideia adequada da diferença entre subsunção formal e subsunção real do trabalho no capital, embora se refiram à diferença entre escravidão e sujeição do homem moderno no capitalismo, a respeito da qual a classificação é inadequada. Para eles há escravidão (há subsunção formal do trabalho no capital) “quando os homens são partes constituintes de uma máquina sob o controle e direção de uma unidade superior”, e há sujeição (subsunção real do trabalho no capital) quando a unidade superior constitui o humano como um sujeito que se refere a um objeto que se tornou externo.

Tampouco se pode confundir capital ou mercado com o sistema capitalista, que é o sistema do senhorio do capital sobre a sociedade e o Estado. É o sistema da ditadura da burguesia. O valor de troca pressupõe as coisas em que está incorporado, mas não é uma coisa, mas uma relação. O capital pressupõe valor de troca, mas sem poder de comando sobre o trabalho ele não se constitui como tal e o capitalismo não é apenas a existência de capitais ou mercados, mas o poder de comando dos capitais ou do mercado sobre a sociedade.

Não é possível fingir ser capitalista e ser contra o neoliberalismo, pois o neoliberalismo nada mais é do que a realização do capitalismo como sistema. Opor-se ao capitalismo como modo de produção dominante sobre a sociedade e o Estado não implica necessariamente opor-se ao desenvolvimento do capital, ainda que estrangeiro. Socialismo não é sinônimo de nacionalização ou perseguição do capital, inclusive estrangeiro ou multinacional, como aconteceu na União Soviética liderada por Lênin da NEP, admitindo a concorrência de capitalistas e até de capital estrangeiro, sempre subordinado às necessidades do Estado soviético e pessoas.

O estado socialista é a expansão das margens comunitárias e democráticas de participação com vistas à sua futura extinção em uma sociedade sem classes e sem estado. É por isso que Lênin considerava o socialismo naquele estágio como coletivização mais eletrificação. O socialismo não pode ser construído com base no empobrecimento dos trabalhadores em nome das ideias. Esse desvio é idealismo e socialismo utópico. O marxismo é um materialismo. O significado do socialismo é pôr fim à ditadura da burguesia que se manifesta na tomada do poder estatal a partir de alavancas-chave como a imprensa comercial ou os poderes judiciais oligárquicos.

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix (1988), Mil Planaltos. Capitalismo e esquizofrenia , Pré-textos, Valência,

GARCÍA LINERA, Álvaro (2021), O poder plebeu. Ação coletiva e identidades indígenas, operárias e populares na Bolívia , Prometeo Clacso, Buenos Aires.

MARX, Karl (1997), Capital . Livro I Capítulo VI (não publicado), Siglo XXI, México.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

12