quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Nenhuma revolução, em lugar nenhum?

Imagem: Diana Smykova

Por FRANK GROHMANN*

Considerações sobre a obra de Robert Kurz, por ocasião do décimo aniversário de seu falecimento

 Sobre o terreno do confronto

“É recomendado que se procure, justamente hoje, a distância teórica, não tanto no silêncio dos muitos anos de desenvolvimento do conceito de obra de arte total, mas como formulação do conflito corpo a corpo no campo do debate.”[i] Dez anos depois, esta afirmação de Robert Kurz não perdeu em nada a sua atualidade. Pelo contrário, afinal, a distância teórica exigida continua sendo necessária. É, porém, justamente por esta razão que ela deixou de ser uma recomendação e passou a designar necessidades: “no campo do debate”, “como formulação do conflito corpo a corpo”.

Eu não conheci Robert Kurz pessoalmente. Se hoje estou aqui, diante de vocês, é apenas porque comecei a lê-lo – tardiamente, já me foi dito diversas vezes. Não posso, portanto, falar do homem Robert Kurz. Posso, todavia, falar da impressão que a leitura de seus escritos deixa em mim. Imagino que isso não seria de seu desagrado, mas não tenho certeza, justamente pelo motivo supracitado.

Há quase um ano, em um encontro de críticos do valor, afirmei que meu interesse pela crítica do valor-dissociação, cofundada por Robert Kurz, partia do agravamento dos fenômenos de crise que acompanham a destruição dos fundamentos da vida, assim como da perplexidade associada ao estado de apatia, à impressão de paralisia e à atitude de ignorância que caracterizam essas condições.

Conceber a modernidade produtora de mercadorias, que domina nosso cotidiano enquanto uma sociedade fetiche – e, pela primeira vez, “totalitária”[ii] –, como propôs Kurz, representa, para mim, o primeiro passo em direção a uma resposta para a questão acerca da origem desta destruição e desta apatia, desta paralisia e desta ignorância, uma resposta que vai além de uma abordagem explicativa psicologizante que nos ameaça por todos os lados (inclusive na psicanálise).

O pivô desta primeira etapa é a utilização marxiana da metáfora do fetiche[iii] para explicar o modo de produção capitalista, – e, portanto, a socialização mercantil, “na qual os homens confiaram o controle das suas relações mais próprias, inclusive de sua sobrevivência, a uma instância exterior, ainda que criada por eles mesmos, e que passa a mediar as relações sociais e assim constitui uma relação de dominação”[iv] – que é, neste sentido, uma dominação sem sujeito.

O modo de produção capitalista é “uma extensão da produção por si mesma”, ou seja, “um fim irracional em si mesmo”. Marx designa este “verdadeiro cerne da paradoxal relação social capitalista”, o sujeito, através da “metáfora paradoxal” do sujeito autômato, que não deve ser compreendido como “um ser individual escondido algures lá fora”, mas como “o feitiço social sob o qual os seres humanos submetem as suas próprias ações ao automatismo do dinheiro capitalizado”.[v]

É a partir disso que entendo a noção de crise (tal como elaborada pela crítica do valor-dissociação) que acompanha a hipótese fundamental – proposta por Robert Kurz – segundo a qual o mundo em que vivemos é o mundo da crise de um “totalitarismo da socialização pelo valor”.[vi] Logo, justamente porque a condição social da psicanálise é a modernidade produtora de mercadorias, nem o divã nem a poltrona estão de fora de minha atividade prática de psicanalista, tampouco aquilo que se passa entre os dois.

Que a resposta necessária diante de tais condições não surge de imediato, isso as palavras-chave sugerem por si próprias. Afinal, como sair de sua própria sociedade fetiche, libertar-se de uma dominação sem sujeito, desmentir o valor do sujeito autômato? Como dizer não, como recusar a socialização negativa? Mas, ao mesmo tempo, nada explica que não tenhamos sempre seguido a proposta do célebre desenho animado francês do início dos anos 1970, L’an 01: “Paramos tudo. Refletimos. E não é triste”.[vii]

Por que a crítica destas condições não é uma obviedade? Ou, dito de outra forma, por que o impulso em direção a uma teoria crítica desta crise sempre acaba com os burros n’água? Como se justifica a “paralisia atual da crítica radical”[viii]?

Há trinta anos, Robert Kurz chamou a atenção para o fato de que “a crítica radical deve se engajar contra a força de gravitação das condições existentes, aparentemente esmagadoras”, como ponto de partida para a elaboração de uma resposta a estas questões[ix]. Diferentemente da lei física da gravidade, essa não é uma lei natural, mas imediatamente, isto é, essencialmente associada ao “existente aparentemente todo-poderoso” – na qualidade de fato humano. Mas a gravidade, neste sentido, também não é algo que podemos perceber diretamente – a não ser que pisemos na Lua ou, como alguns desejam, em Marte.[x] Enquanto nossos dois pés estiverem fincados neste chão, temos de confrontar o adversário invisível e imediatamente imperceptível do “existente aparentemente todo-poderoso”, do qual fazemos parte. Portanto, é uma coisa que nos cola na pele, por assim dizer, mas que não podemos remover porque adere em como que por dentro. Em outras palavras: algo que não nos é externo.

Como lutar contra algo que nos obriga e colocar em questão a distinção comumente aceita entre interior e exterior? A psicanálise também tem, por excelência, algo a dizer sobre isso – Robert Kurz, que seja dito en passant, pressentiu isso logo cedo e procurou lhe fazer justiça.[xi]

Temos assim nosso ponto de partida: a ruptura ontológica com a história das relações fetichistas não tem uma base[xii] – e a necessidade ontológica é insaciável[xiii]. Esta ruptura e esta necessidade são, portanto, sempre-já entrelaçadas, e por isso devem ser mediadas uma pela outra – de uma maneira transversal em relação aos pontos de referência habituais – à contracorrente, por assim dizer. Esta mediação necessária não se faz entre as limitações externas e sua interiorização subjetiva, ou entre o sujeito e o objeto, mas se faz perceber como um problema de mediação entre o conteúdo e a forma.[xiv]

Crise e crítica

Há dez anos e meio, Robert Kurz escrevia uma carta aberta aos interessados pela revista Exit! – Crise e crítica da sociedade mercantil[xv], fundada após a ruptura da Krisis. Dei à minha fala de hoje o mesmo título daquela carta, incluindo, porém, um ponto de interrogação. O que eu gostaria de apresentar, na ocasião do décimo aniversário da morte de Robert Kurz, neste 18 de julho de 2022, pode ser tido como o desdobramento deste ponto de interrogação: como compreender estas palavras “nenhuma revolução, em lugar nenhum”?

Robert Kurz dirigiu-se a seus leitores na virada do ano de 2011/12 para convidá-los a apoiar a revista em seu “nado à contracorrente”. Ele não o fez, porém, sem opor-se antes de tudo e de maneira crítica à “súbita inflação do conceito de revolução”, perceptível naquela época, sob a influência da dita primavera árabe, dos tumultos violentos de jovens de classes desfavorecidas e sem esperança no Reino Unido, das manifestações de massa contra a política do governo Netanyahu em Israel, da rebelião dos estudantes no Chile contra a orientação neoconservadora do sistema educacional, e dos protestos do movimento Occupy nos Estados Unidos contra as desigualdades crescentes e contra o poder dos bancos.

A oposição de Robert Kurz é inequívoca: em lugar nenhum podemos falar de revolução. Mas, por todo lado, as graves distorções sociais dizem respeito às estruturas globais do capitalismo mundial – indicações que não são, entretanto, exatamente ou suficientemente compreendidas e vistas enquanto tais[xvi]. A interpretação de Robert Kurz? “Aquele que não quiser entender e combater a totalidade capitalista já perdeu sua guerra”. E sua conclusão? “Sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário!”.

Junto a Marx, destaca “a importância da reflexão teórica”: “Marx sublinhou com razão que uma transformação verdadeiramente revolucionária apenas progride na medida em que os seus começos e fases de transição são criticados sem dó nem piedade, para os superar e para repelir as suas meias-verdades, falácias e aberrações”.[xvii] O que é decisivo, aqui, é que esta reflexão teórica deve justamente ser algo mais do que um simples exercício de estilo racionalista de tipo acadêmico, mas precisa consistir em um exame de suas próprias condições históricas.

Dois anos antes, Robert Kurz já havia tomado conta da condicionalidade posta em evidência entre a necessária ruptura ontológica (sem fundo) e a necessidade ontológica que se opõe à ruptura com as condições existentes. Esta ruptura teria como condição o reconhecimento da crise, assim como a insuficiência da crítica e as respectivas formações de compromisso são a consequência desta necessidade. Trata-se de possibilitar a transformação desta situação: a “crítica categorial sem resseguro ontológico e [a] crise categorial como limite interno estritamente objetivo da produção de mais-valia são mutuamente interdependentes”.

Isso significa dizer que ou a crise e a crítica tocam seu núcleo categorial comum, ou desaparecem ao mesmo tempo e cada qual a seu lado; neste último caso, “uma crítica truncada, que não vai aos fundamentos” – portanto imanente – não quer saber da crise e sustenta “o postulado de que a produção de mais-valia deve ser capaz de se regenerar eternamente”[xviii]. Um ano após o começo da dita crise financeira de 2008, Robert Kurz aponta aqui, mais uma vez, o nível categorial da crise posta em evidência pela crítica do valor-dissociação, a saber, aquela de um limite interno absoluto da valorização que conduz inevitavelmente ao colapso da civilização capitalista; entretanto, ele designa igualmente, no mesmo gesto, um “um recuar com medo perante as consequências da crise categorial, que atordoa qualquer capacidade de reflexão”.[xix]

A partir disso, compreendemos por que a carta já mencionada, escrita dois anos depois, afirma que a “a renovação teórica em atraso só pode visar negativamente o falso todo de modo essencialista e anti-relativista”.[xx]

Naquele mesmo ano, Robert Kurz apresentou uma visão geral do contexto histórico interno do desenvolvimento capitalista, sublinhando mais uma vez que este desenvolvimento não obedece a nada a não ser uma dinâmica de crise. A questão de saber por que o capitalismo sobrevive a cada crise é, portanto, mal posta. É preferível dizer que ele vive da crise. Ou, mais precisamente, e em resposta, que o capitalismo é a crise.

E quanto a este capitalismo de crise? Embora nos lembre, num piscar de olhos, que, “infelizmente, Marx não nos deixou uma cômoda teoria da crise, em formato de livro de bolso”, Robert Kurz encontra, mesmo assim, o começo de uma resposta a esta questão no pensamento do fundador da crítica da economia política – justamente neste contexto de uma leitura crítica e aprofundada de Marx com Marx e para além de Marx,[xxi] o que inclui o terceiro volume de O capital, publicado onze anos depois de sua morte, no qual é formulada sua teoria da queda tendencial da taxa de lucro[xxii]. Robert Kurz conclui sua leitura afirmando que “a longo prazo, o problema não é a insuficiência periódica da realização da mais-valia no mercado, mas sim, fundamentalmente, a própria falta de sua produção”.[xxiii]

Em outras palavras, “o fundamento ou pressuposto da teoria da crise de Marx está na argumentação que apresenta o desaparecimento do próprio ‘trabalho’”. Deste ponto de vista, a crise “não é senão a perda de substância objetiva do capital, através do seu próprio mecanismo interno”. O trabalho, de acordo com Kurz, “escapa-se, como a areia por um buraco no saco, ou como a água por uma fenda no tanque”.

Em maiores detalhes, passa-se o seguinte: “O capital esvazia-se e enfraquece, a sua vida alimentada pelo trabalho paralisa. Se seca um dos estados de agregação do sujeito automático, o trabalho, tem de diminuir o outro, o dinheiro – que fica sem substância, e assim ‘sem validade’ e ele próprio obsoleto. Paralisa a relação, ou forma de circulação social geral da tripla mediação através de trabalho abstrato, receita em dinheiro e consumo de mercadorias. Todo o modo de vida aparentemente natural com base nestas relações fetichistas é arruinado e tornado praticamente impossível. Vem então à luz do dia o absurdo de que todos os meios e capacidades de uma reprodução rica são abundantes, mas as pessoas, paralisadas pela ‘mão invisível’ do capital, não podem acionar as suas próprias possibilidades, porque estas já não correspondem ao fim em si irracional do sujeito automático”.[xxiv]

A partir disso, devemos reconhecer duas coisas: por um lado, que “a crise não se desenvolve de forma linear, mas progressiva”, isto é, “apresentando uma tendência histórica para aumentar”; por outro, e simultaneamente, que estas fases não descrevem uma situação futura, mas o momento atual[xxv] – e isso já há meio século.[xxvi]

Mediação da contradição

Um dos pontos fortes da “crítica do valor”, cofundada por Robert Kurz nos anos 1980, é ser desenvolvida “a partir da imanência capitalista”. É claro, apenas podemos indicá-la aqui. A única forma de compreendê-la é ler os trabalhos de Robert Kurz, tais como ele os concebeu: O colapso da modernização (1991).

A consequência deste desenvolvimento imanente, a saber, que a crítica do valor-dissociação não pode mais “adotar um ponto de vista de uma identidade ontológica e de interesse positivo”, foi criticada diversas vezes e por diversos lados. É, de todo modo, um erro ver nesta atitude uma fraqueza da crítica. De fato, pode-se notar, aqui, pelo contrário, a sua verdadeira força – que, em contrapartida, a confronta com um desafio incessante. Pois a “contradição em processo” (Marx) do sistema capitalista da modernidade produtora de mercadorias acompanha o “tratamento [afirmativo] da contradição”[xxvii] no interior do sistema, que se opõe à necessária “mediação da contradição” (Kurz) crítica – por exemplo naquilo em que este “tratamento da contradição” produz as formas de “contra-prática” imanente que, no entanto, “apesar de sua oposição exterior e relação à administração dos humanos e da crise, são parte integrante da própria reprodução capitalista e se referem [unicamente e exclusivamente] às formas sociais dadas”[xxviii]. É exatamente aqui que constatamos uma grande proximidade com a abordagem psicanalítica, que não trata o sintoma como uma “manifestação isolada” e separada – contrariamente a diversas outras abordagens terapêuticas.

Mais uma vez: o ponto de partida é o reconhecimento da contradição: “capital é autocontradição em processo pois, por um lado, tem como único objetivo a incessante acumulação de valor, ou ‘riqueza abstrata’ (Marx), mas, por outro, a concorrência obriga, através do desenvolvimento das forças produtivas, a tornar supérflua a força de trabalho, que é a única fonte deste valor, e a substituí-la por dispositivos técnico-científicos. No entanto, o desenvolvimento das forças produtivas não é o eterno retorno do mesmo, mas sim um processo histórico irreversível”.[xxix]

Esta contradição, entretanto, é sempre confrontada de maneira imanente e afirmativa – por exemplo em se tratando de que “o interesse do ser-aí capitalista, saindo do tratamento da contradição imanente, vincula-se às categorias fetichistas ontologizadas socialmente sobrejacentes, submetendo-as a uma interpretação, ou interpretação real, que vai até aos conteúdos assassinos do machismo, do racismo e do anti-semitismo”[xxx]. Deve-se, no entanto, precisamente romper com este tratamento – que preserva o processo capitalista – e abrir o caminho para a mediação da contradição, no mesmo sentido de sua superação.

Uma ideia fundamental da crítica do valor-dissociação é a de que a “contradição em processo” e o “tratamento da contradição” que dela decorre minam todas as categorias do sistema moderno de produção de mercadorias. A “mediação” desta contradição deve, portanto, lidar com todas as categorias de uma só vez.

O seguinte sobrevoo das categorias capitalistas elementares mostra que faz sentido, neste contexto, falar da totalidade da socialização negativa do valor[xxxi]: (1) A noção abstrata de “trabalho”, (2) o “valor” econômico, (3) a apresentação social dos produtos enquanto “mercadorias”, (4) a forma geral do dinheiro, (5) a passagem pelos “mercados”, (6) a união destes mercados em “economias nacionais”, (7) os “mercados de trabalho” como condições de uma economia mercantil, financeira e uma economia de mercado em grande escala, (8) o Estado enquanto “comunidade abstrata”, (9) o “direito” geral e abstrato regulando todas as relações pessoais e sociais como forma de subjetividade social, (10) a forma do Estado puro e acabado que é a “democracia”, (11) o mascaramento irracional, cultural e simbólico da coerência econômica nacional na “nação”.

É, finalmente, o conceito marxiano de valor que dá forma a esta relação categorial, e foi assim desde o começo. Robert Kurz não apenas colocou em evidência que a “forma social” [Formzusammenhang] destas categorias fundamentais da socialização capitalista moderna, de um lado, “se constitui através de processos históricos cegos”, mas, de outro, também foram “impostas aos seres humanos pelos respectivos protagonistas e detentores do poder (eles próprios sem consciência do todo) num processo de pedagogização, habituação e interiorização ao longo de séculos, resultando daí o facto de essas categorias cedo terem surgido como constantes antropológicas inultrapassáveis, zombando de toda a crítica”.[xxxii]. Robert Kurz, assim e sobretudo, deduziu que, desta maneira, a “primeira dificuldade de uma crítica categorial do capitalismo” não poderia ser outra coisa senão “retirar essas categorias do seu estatuto de obviedade tácita, tornando-as explícitas e só assim criticáveis”.[xxxiii]

Crítica do trabalho

Embora o que acaba de ser dito signifique que não se trata, no espírito da crítica radical, de dissociar uma categoria de sua relação formal com as outras para criticá-la individualmente, a “crítica do valor-dissociação” foi, desde o começo, sobretudo uma “crítica do trabalho”.[xxxiv]

A maior testemunha disso é a frase de Robert Kurz, escrita cinco anos após a publicação do manifesto de 1999 e publicada ainda na revista Krisis – “trabalhadores de todo o mundo, basta!”. Esta frase resume os dezoito pontos deste “Manifesto contra o trabalho”: “trabalho concreto e trabalho abstrato são uma única coisa; eles se unem na abstração ‘trabalho’ enquanto abstração real”.[xxxv]

A categoria de trabalho abstrato[xxxvi] não significa, de fato, “nada de suprahistórico”[xxxvii], mas se apresenta, apesar disso, como uma “loucura metafísica”[xxxviii]: ela diz respeito a “uma questão de consciência”[xxxix], porém representa, ao mesmo tempo, não apenas uma “inversão do concreto e do abstrato”[xl], mas também “a relação do geral e do particular [tomada] em sentido inverso”[xli]; e, assim, o trabalho abstrato é testemunha de um “sistema fantasmagórico” que ele mesmo engendrou – e no interior do qual está “no mundo, mas não é do mundo”[xlii].

Assim como o valor, enquanto abstração real, impõe sua forma à relação entre as categorias e a mercadoria tem seu caráter conferido pela relação fetichista, o trabalho fornece ao capital a sua substância unheimlich (de uma estranheza inquietante). O trabalho abstrato, portanto, constitui “o modo seguindo o qual o princípio social não-material e essencial confisca de forma terrível o mundo material”[xliii]. A socialização que disso resulta deve ser qualificada como negativa – pois para ela os homens estão realmente no mundo, mas, ao mesmo tempo, eles não são do mundo.

À contracorrente, contra a gravidade

A partir disso, compreendemos que não existe, verdadeiramente, “nenhuma revolução” no horizonte, em “lugar nenhum”!

Se for verdade, como um dia formulou Robert Kurz, que quanto mais o mundo se torna econômico, mais ele é afetado pelas crises; e quanto mais ele está em crise, mais a consciência se torna econômica, embora “de uma forma totalmente ateórica e acrítica”[xliv] – quais caminhos essa situação abre para uma mudança das condições ou das relações sociais?

“Nenhuma revolução, em lugar nenhum” também pode ser entendido de outra maneira, no sentido da introdução de Robert Kurz a seu último livro, A revolução teórica inacabada. Trata-se da revolução iniciada por Karl Marx. Ela é tida como inacabada porque, para ser levada adiante, é preciso uma leitura nova, uma outra leitura da obra de Marx. E foi ao desenvolvimento desta nova e outra leitura que Robert Kurz dedicou a sua vida.

No espírito desta leitura, trata-se sempre de “restituir”, à contracorrente e contra a força da gravidade, “uma cultura teórica da crítica da economia política”[xlv]. Neste mesmo espírito, hoje, dez anos após a sua morte, a obra de Robert Kurz está longe de se completar.

Eu comecei com uma citação. Gostaria, então, de terminar com uma citação. Mais precisamente, com três frases dos momentos iniciais, isto é, de um trabalho de 1987 ao qual nos referimos sempre como um texto fundador da crítica do valor-dissociação. Trinta e cinco anos depois, estas palavras não envelheceram nem um segundo. Pelo contrário, continuam frescas e a testemunhar o fogo que ardia em Robert Kurz: “A tarefa historicamente atual é o preparo teórico e a prática de uma revolução que liquidará com o valor e, portanto, com o dinheiro. Todo o resto não passa de sucataria teórica e ideológica. A verdadeira bomba, enquanto núcleo da obra de Marx, sua herança explosiva para o futuro, ainda deve ser acesa”[xlvi].


*Frank Grohmann é psicanalista em Berlim.

Texto da apresentação no café Plume em Berlim, em ocasião do décimo aniversário da morte de Robert Kurz.

Tradução: Daniel Pavan.

Publicado originalmente no blog Grundrisse: Psychanalyse et capitalisme.


Notas

[i] Trecho do prefácio de KURZ, R. Dinheiro sem valor. Lisboa: Antígona, 2014. p.11.

[ii] KURZ, Robert. Raison sanglante. Essais pour une critique émancipatrice de la modernité capitaliste et des Lumières bourgeoises, Crise & Critique, Alibi, 2021, p. 83

[iii] Claus-Peter Ortlieb fala do “caráter fetiche da mercadoria, introduzido metaforicamente por Marx”; ORTLIEB, C-P. (2019). “Westliche Werte? Aufklärung und Fetish”, Zur Kritik des modernen Fetischismus, Scmetterling Verlag, Stuttgart, 2019, p.211; dez anos antes, Ortlieb já falava da “utilização metafórica do conceito de fetiche” por Marx para a “socialização mercantil” – ver Ortlieb, C.-P. (2002), “Die Aufklärung und ihre Kehrseite”, Zur Kritik des modernen Fetischismus, a.a.O., p. 236.

[iv] ORTLIEB, C.-P. (2002), “Die Aufkläerung und ihre Jerhseite”, op. cit., ibid.

[v] KURZ, Robert. Ler Marx. Trad: Boaventura Antunes

[vi] KURZ, Robert (2004), Raison sanglante, op. Cit., p. 131.

[vii] “On arrête tout. On réfléchit. Et c’est pas triste.” Gebé, L’an 01 (1971), L’association, Paris, 2014.

[viii] KURZ, Robert. L’état n’est pas le sauveur supreme. Thèses pour une theorie critique de l’État, Crise & Critique, Alibi, 2022, p. 24.

[ix] KURZ, R. Raison sanglante, op.cit., p. 135. No que diz respeito à acusação corrente de desmesura desta luta – diante da gravidade ideológica –, “o problema se encontra assim invertido: a crítica radical é acusada daquilo se deveria responsabilizar a relação social real. Em vez da relação real subjacente, é a crítica da ideologia que aparece como ‘totalitária’”. KURZ, R. La substance du capital, L’échappée, Paris, p. 29.

[x] De uma maneira ou de outra, apenas percebemos uma diferença entra as duas condições da força de gravidade na Terra. Esta diferença é de aproximadamente um sexto na Lua e um terço em Marte.

[xi] Algumas indicações: Robert Kurz já falava, em 1992, de uma “dimensão psicanalítica da crítica da forma mercadoria” (KURZ, R. “Geschlechtfetischismus Anmerkungen zur Logik von Weiblichkeit und Männlichkeit”, Krisis, 12, 1992; um ano depois, ele disse que “o conceito chave para compreender este ‘terceiro’ que representa o elemento realmente constitutivo é o inconsciente” (KURZ, R. “Domination sans sujet”, Raison sanglante, op. Cit. P. 278); na aurora do novo milênio, encontramos sua observação de que a “psicanálise prematuramente declarada morta” (mas também “a crítica feminista da linguagem”) contém “possibilidades não exploradas”, não apenas por descobrir “a história reprimida e a falsa objetivação das restrições capitalistas”, mas, ao mesmo tempo, por tornar visível “o processo de ‘interiorização’ psíquica destas restrições”. (KURZ, R. “Die kulturelle Richtung des 21. Jahrhunderts. Symbolische Orientierung und neue Gesellschaftskritik”); e, ainda na virada do ano 2014/15, Claus-Peter Ortlieb escreveu: “A maioria das questões relativas à natureza do … feitiço fetichista e à maneira de rompê-lo continua em aberto. Para elucida-las, poderia ser interessante tornar as categorias psicanalíticas frutíferas para a teoria do valor-dissociação” (ORTLIEB, C.-P. “Krisenwirren”, Zur Kritik des modernen Fetischismus. Die Grenzen bürgerlichen Denkens, Schmetterling Verlag, Stuttgart, 2019, p.343).

[xii] KURZ, R. Raison sanglante, op.cit., p.184.

[xiii] Ibid., p. 191

[xiv] “Neste fetichismo de uma socialização de coisas mortas em vez de homens vivos, que constitui a essência do sujeito autômato, estabelece-se uma relação da forma e do conteúdo substancial que é, por sua vez, real e fantasmagórica”. KURZ, R. “Marx 2000”, Weg und Ziel, 2/99.

[xv] “Neste fetichismo de uma socialização de coisas mortas mais do que dos próprios homens vivos, que constitui a essência do sujeito autômato, estabelece-se uma relação substancial da forma e do conteúdo que é, ao mesmo tempo, real e fantasmagórica”. KURZ, R. (2000), “Marx 200), Weg und Ziel, 2/99

[xvi] E, portanto: por todos os lados, seja lima repressão brutal, seja uma instrumentação suavizada da revolta.

[xvii] KURZ, R. »Keine Revolution, nirgends«, op. cit., p. 156.

[xviii] KURZ, R. (2009), »Weltkrise und Ignoranz«, EXIT!, 6, 2009. Cité ici d’après la réimpression dans Weltkrise und Ignoranz. Kapitalismus im Niedergang, Edition Tiamat, Berlin, 2013, p. 205.

[xix] Ibid., p. 209.

[xx] KURZ, R. (2012), »Keine Revolution, nirgends«, op. cit., p. 161.

[xxi] E que, como diz cada um, conduz ao reconhecimento de um Marx “duploi”, um Marx “exotórico” e um Marx “esotérico”.

[xxii] “Para cada capital monetário investido, a parte do capital físico aumenta constantemente, desde que o número de trabalhadores mobilizáveis por esta variação diminua regularmente. (…) Como apenas a força de trabalho produz valor novo, o lucro médio na escala da sociedade deve diminuir pelo capital monetário adiantado, por mais que a parte relativa da mais valia na produção de valor de uma força de trabalho aumente. Para o resultado social, o que conta é a relação de grandeza entre duas tendências opostas”. KURZ, R. (2012), »Die Klimax des Kapitalismus. Kurzer Abriss der historischen Krisendynamik«, Weltkrise und Ignoranz. Kapitalismus im Niedergang, op. cit., p. 233

[xxiii] Ibid., p. 232. “O capitalismo chega a seu clímax quando a expansão interna é alcançada e superada pelo desenvolvimento das forças produtivas. Então, a queda relativa da taxa de lucro se transforma em uma queda absoluta da massa social de mais-valor e, portanto, de lucro. Assim, a esperada valorização eterna do valor se transforma em sua desvalorização histórica”. Ibid., p. 235.

[xxiv] KURZ, Robert. Ler Marx. Trad: Boaventura Antunes

[xxv] “É certo que vai ser preciso examinar mais detalhadamente como a terceira revolução industrial da microelectrónica levou realmente ao limite interno absoluto do capital. Mas é justamente esse exame que é recusado pelo corpo científico académico, tal como pelo patético resto da esquerda política.” KURZ, Robert. Ler Marx. Trad: Boaventura Antunes

[xxvi] “A crise é menos analisada do que recalcada e negada. O paradoxo continua no facto de a teoria económica se desmoronar tanto mais rapidamente quanto a crise das categorias económicas se manifesta mais claramente.” Ibid, ver também Grohmann, F. (2020), »Die Vermittlung des Widerspruchs und die doppelte Aufgabe der Psychoanalytiker«, Junktim — Forschen und Heilen in der Psychoanalyse, #3, Umwelt, Krise, Unbewusstes, Turia & Kant, Wien, Berlin, 2020.

[xxvii] Ver em detalhes: KURZ, R. “Cinzenta é a árvore dourada da vida e verde é a teoria”, disponível em: < https://www.marxists.org/portugues/kurz/2007/mes/arvore.htm>

[xxviii] “Pode-se concluir que o tratamento da contradição no nível da “práxis prática” em suas múltiplas esferas e mediações nunca é originário, directo e, por assim dizer, reflexivamente inocente, mas em vez disso sempre prenhe de ideologia e embebido de “teoria”, ainda que a consciência quotidiana não se dê conta disso. Na interpretação (real) permanente e “sofrida” do capitalismo, “práxis teórica” e “práxis prática” são igualmente práxis ideológica e unidas precisamente por isso. Esta “práxis ideológica” representa a verdadeira relação mediadora da unidade negativa entre teoria e práxis; constitui um componente fulcral da reprodução capitalista, uma vez que entra no agir material e social constituído fetichistamente da valorização do valor e da dissociação.” Ibid.

[xxix] “Conforme Marx mostra nos Grundrisse, caminhamos em direção a uma situação na qual os produtos serão, realmente, bens de uso corrente, mas não podem representar, enquanto mercadorias, uma quantidade suficiente de força de trabalho humano. Eles se tornam-se invendáveis porque não representam mais nenhum valor abstrato. Não se trata de uma depuração, mas de uma ‘barreira interna’ (Marx) do capital”. Kurz, R. (2012), »Die Klimax des Kapitalismus«, op. cit., p. 232.

[xxx] KURZ, R. “Cinzenta é a árvore dourada da vida e verde é a teoria”, disponível em: < https://www.marxists.org/portugues/kurz/2007/mes/arvore.htm>

[xxxi] KURZ, Robert. Ler Marx. Trad: Boaventura Antunes

[xxxii] “As ciências económicas, e com elas todas as outras ciências sociais plenamente desenvolvidas (que hoje estão definitivamente degradadas a simples ciências auxiliares, para não dizer polícias teóricas auxiliares das ciências económicas), não têm as categorias capitalistas de trabalho, valor, mercadoria, dinheiro, mercado, Estado, política, etc. como objecto, mas sim como pressuposto cego do seu raciocínio “científico”. A forma de sujeito da troca de mercadorias, a transformação de força de trabalho em dinheiro e de capital-dinheiro em mais-valia (lucro) não é questionada no seu “quê” e “porquê”, mas apenas no seu “como” funcional, tal como os cientistas só analisam o “como” das chamadas leis naturais.” Ibid.

[xxxiii] Ibid.

[xxxiv] KURZ, R. “Cinzenta é a árvore dourada da vida e verde é a teoria”, disponível em: < https://www.marxists.org/portugues/kurz/2007/mes/arvore.htm>

[xxxv] KURZ, R. (2004), La substance du capital, Crise & Critique, Albi, 2019, p. 118.

[xxxvi] “Só o moderno sistema de produção de mercadorias, com a sua finalidade autotélica de transformação permanente de energia humana em dinheiro, veio criar esse domínio particular, «apartado» de todas as outras relações sociais e abstraído de qualquer conteúdo, que leva o nome de esfera do trabalho – a esfera da actividade não autónoma, incondicional, não relacional, robotizante, separada do restante contexto social e obedecendo a uma abstracta racionalidade finalista de «economia empresarial», independente das necessidades. (…) A acumulação de «trabalho morto» enquanto capital, representada sob a forma de dinheiro, é o único «sentido» que o sistema de produção de mercadorias conhece.” Grupo Krisis, “Manifesto contra o trabalho”. Disponível em: < https://www.krisis.org/1999/manifesto-contra-o-trabalho/>

[xxxvii] “Em sua forma histórica específica, [o trabalho abstrato] não é outra coisa a não ser o dispêndio abstrato da força de trabalho humano e o consumo das matérias primas da natureza na economia empresarial. (…) O trabalho, nesta estranha abstração, também pode ser definido por seu caráter estranho de fim em si mesmo”. Kurz, R. (1991), L’effondrement de la modernisation. De l’écroulement du socialisme de caserne à la crise du marché mondial, Crise & Critique, Albi, 2021, p. 32.

[xxxviii] “«Trabalho morto»? Uma loucura metafísica! Sim, mas uma metafísica que se tornou realidade palpável, uma loucura «objectivada» que domina esta sociedade com mão de ferro. No eterno comprar e vender, os homens não se relacionam como seres sociais conscientes, limitam-se a executar como autómatos sociais a finalidade autotélica que lhes é prescrita.” Grupo Krisis, “Manifesto contra o trabalho”. Disponível em: < https://www.krisis.org/1999/manifesto-contra-o-trabalho/>

[xxxix] No que diz respeito à “loucura metafísica”, não se trata “nem de um problema material, nem de um problema técnico ou organizacional, mas apenas de uma questão de consciência. Para poder sobreviver enquanto civilização, a humanidade deve se libertar da lavagem cerebral do liberalismo e de seu sistema benthaniano, isto é, de certa maneira regurgitar os limites e as imposições interiorizadas da máquina cega do dinheiro, para poder se confrontar, sem preconceitos, com a relação entre os recursos disponíveis e sua utilização social racional. Isso significaria não mais desejar agrupar as formas, categorias e critérios sociais dominantes em uma combinação diferente, mas aboli-los pura e simplesmente.” Kurz, R. (1999), Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft, Eichborn, Frankfurt am Main, 1999, p. 783.

[xl] “A inversão dos meios e dos fins corresponde, portanto, a uma inversão do concreto e do abstrato; o concreto não é mais do que a expressão do abstrato, em vez de o contrário. O dito “trabalho concreto” e o espectro correspondente dos “valores de uso” não são, assim, o lado “bom” do sistema, orientado às necessidades, mas são, eles mesmos, a manifestação concreta de uma abstração real. Isso porque a atividade de produção concreta aparece socialmente apenas como “portadora” desta abstração. Ela não existe em si mesma, mas está submetida ao ditado da “valorização do valor”. O “trabalho concreto” também produz, portanto, resultados irracionais e destruidores do lado do valor de uso; e, sem tomar consciência disso, todos os participantes continuam atrelados à limitação estrutural do sistema”. Kurz, R. (1999), « Marx 2000 », Weg und Ziel, 2/99.

[xli] “Eu estaria tentado a dizer que essas definições marxianas refletem o paradoxo real da relação capital e sua socialização centrada no valor, pois no acontecimento o capital reduz efetivamente (‘realmente’) em abstração o concreto, a infinita diversidade do mundo, e inverte completamente a relação entre o universal e o particular. Em lugar go universal emanando do particular, o particular se vem rebaixado ao nível de uma manifestação do universal totalitário. Com relação ao concreto, ele não representa mais a diversidade estruturada do particular, mas é a ‘expressão’ do universal abstrato-real, da ‘substância’ universal.” KURZ, R. (2004), La substance du capital, op. cit., p 50-51.

[xlii] “Este sistema fantasmático do ‘trabalho abstrato’ como forma de movimento da ‘riqueza abstrata’ está no mundo, mas não é do mundo. Ele não é um deus, mas a vítima desperta em uma vida própria sintética, verdadeiramente fantasmática”. Kurz, R. (2012), Geld ohne Wert. Grundrisse zu einer Transformation der Kritik der politischen Ökonomie, Horlemann, Berlin, 2012, p. 404.

[xliii] Kurz, R. (2004), La substance du capital, op. cit., p. 44

[xliv] KURZ, Robert. Ler Marx. Trad: Boaventura Antunes

[xlv] Ibid

[xlvi] KURZ, R. (1987), »Abstrakte Arbeit und Sozialismus. Zur Marxschen Werttheorie und ihrer Geschichte«, Marxistische Kritik, 4, Dezember 1987.

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