Fontes: O foguete para a lua [Imagem: Antonio Berni, O mundo prometido a Juanito Laguna]
Inflação argentina exige intervenção pública para reparar salários e estabilizar preços
Desigualdade e pobreza, conceitos fundamentais da economia, são objeto de intenso debate na sociedade. Ao lado de preços e salários, são as categorias que vão muito além do âmbito acadêmico para ocupar lugares centrais na discussão política e social, de interesse popular porque constituem fatores cotidianos e imediatos das condições de vida.
Nas diferenças quanto aos determinantes e soluções para a desigualdade e a pobreza, também quanto à historicidade ou não, sua naturalização ou não e as políticas para reduzi-las, que supõem os graus de intervenção do Estado, há uma forte disputa entre as correntes de pensamento na economia e nas ciências sociais em geral. É nesse litígio que as pretensões de neutralidade desmoronam as tendências hegemônicas que hoje dominam o campo acadêmico.
Os economistas clássicos expuseram que na sociedade capitalista o processo de produção é organizado em classes sociais:
– Aqueles que não têm meios de produção e recebem salário,
– Aqueles que são possuidores de bens naturalmente limitados – o mais importante é a terra – e cobram uma renda quando a entregam para uso na atividade econômica,
– Os donos do capital, que se transformam entre sua forma dinheiro e suas formas de instalações e máquinas e insumos do processo produtivo, pagando –além disso– salários e aluguéis, porque organizam e dirigem o processo produtivo.
Os clássicos chamam essas três posições diferentes que são assumidas na produção pelas diferentes condições dos proprietários e das maiorias populares não proprietárias como classes sociais. David Ricardo (cujo pensamento teve enorme impacto nas relações entre a metrópole industrial britânica e os pampas agrícolas do Rio da Prata) toma a distribuição de renda entre essas três classes como objeto central de estudo ao definir Economia Política. Adam Smith trabalha com a ideia de que os resultados da produção são distribuídos entre três classes sociais: os latifundiários, os capitalistas e os trabalhadores.
Em O Capital , que o autor intitula como Crítica da Economia Política , Karl Marx sustenta a análise em termos das mesmas três classes sociais, mas introduz conceituações fundamentais como:
– Que a condição de não-proprietários dos meios de produção – dos trabalhadores – os constitui em uma relação de subordinação em relação às classes proprietárias. Essa diferença em si é constitutiva da desigualdade.
– A ideia de um salário de subsistência, que sustenta que os trabalhadores não receberão mais do que os bens necessários à sua vida e à reprodução dos mesmos em seus descendentes. Faz isso diferenciando as condições salariais de subsistência física e de subsistência social. Este último conceito confere historicidade aos bens necessários ao cotidiano dos trabalhadores. Esse salário seria aquele que os não proprietários acabariam recebendo, pois os contratos de trabalho firmados com os patrões no mercado de trabalho seriam pactuados em condições de desigualdade, com poder claramente diferenciado e pressionados por uma oferta de trabalho sempre excedente. Marx chama esse excesso de força de trabalho de exército de reserva.
– O autor diz no prólogo da primeira edição da obra que “a sociedade de hoje não é um cristal inalterável, mas um organismo sujeito a mudanças e em constante processo de transformação”.
A transformação da “nova economia”
As correntes marginalistas e neoclássicas constituem a base teórica inalterada, em sua substância básica, daqueles que professam as políticas econômicas que o neoliberalismo sustenta.
A organização em classes sociais da sociedade capitalista desaparece na linguagem neoclássica. Os agentes econômicos aparecem como sujeitos com sua individualidade. A provisão de trabalho, capital e terra é realizada por diferentes agentes. A empresa que lida com o processo de produção os adquire comprando-os de agentes. Essa mudança conceitual produz uma mudança linguística, chamando aquele trabalho, aquele capital e aquela terra como fatores de produção. A diferença entre as classes sociais é velada, pois estas são reificadas em fatores .
A partir de seu desenvolvimento analítico, a teoria neoclássica alinha os preços dos fatores com sua produtividade marginal. Ou seja, com a variação da receita total da empresa que produziria a adição de mais uma unidade de terra, capital ou trabalho. Ele argumenta que esse ajuste é produzido por mecanismos mercantis, típicos do funcionamento do sistema econômico. Que o bem-estar dos agentes virá da melhor organização dos mercados e do respeito para que seus preços permaneçam livres e sem interferências institucionais para que a economia possa se desenvolver. Em termos do discurso teórico, isso é designado como endogeneidade da distribuição de renda, e qualquer violação que tente interferir nela retira a economia do ponto de máximo bem-estar.
Os intelectuais da Mont Pelerin Society argumentavam que as políticas de igualdade substantiva restringiam a liberdade individual e só admitiam aquelas que se limitavam à igualdade perante a lei. A teoria das correntes do mainstream neoliberal justifica, a partir do modelo hoje denominado Microeconomia, a desconsideração de uma política de renda ativa por parte do Estado.
Três outros aspectos que estão na base teórica da nova economia são:
– A tendência ao pleno emprego que resultaria das condições de livre concorrência.
– A autonomia da tecnologia frente ao desenvolvimento econômico. Em termos teóricos, sua exogeneidade. A mudança tecnológica permanente não surge como resultado da competição entre os capitalistas das diferentes firmas para obter melhorias competitivas e determinada apenas pela lógica do lucro, mas sim seria introduzida a partir de áreas de pesquisa.
– As mudanças na tecnologia de produção são determinantes das mudanças nos preços dos fatores, de sua combinação ótima para produzir e, portanto, da distribuição de renda. Este seria um problema afetado pela tecnologia.
A crítica keynesiana
Keynes questiona a tendência natural ao equilíbrio apresentada pelo neoliberalismo. As tendências keynesianas concebem a necessidade de combater as tendências recessivas e o desemprego com aumentos salariais que redistribuem progressivamente a renda. Como o excedente econômico é economizado pelos setores proprietários, a transferência de renda para os trabalhadores que o destinam massivamente ao consumo provocaria um aumento na demanda e, portanto, na produção para satisfazê-la e, consequentemente, no investimento. A lógica da teoria anti-crise se completa com a demanda por gastos autônomos do Estado como força motriz para elevar o nível de atividade e emprego. É a descrição de um círculo virtuoso que resulta da implantação de políticas que requerem intervenção estatal e que incluem a afetação da distribuição de renda. As economias assistencialistas europeias e a implantação de governos populares na periferia implicaram a assunção dessas perspectivas, entre outras.
A luta dos trabalhadores e dos sindicatos
As vertentes ortodoxas sempre resistiram ao poder sindical. Afirmam que o maior risco é a presença de sindicatos únicos e poderosos por ramo produtivo e temem que se tornem "monopólios". Nos textos acadêmicos dessas correntes, a preocupação com o monopólio dos trabalhadores pode ser vista com muito mais insistência do que a dos patrões. O sindicato intervirá externamente na formação e distribuição dos salários, alterando o nível do mercado e elevando o salário acima do seu preço de equilíbrio, ou seja, acima da produtividade marginal do trabalho. Com altos salários, a procura de emprego por parte das empresas diminuiria. O mecanismo inverso deve ser observado em relação ao pensamento keynesiano,
Os intelectuais orgânicos dos grandes empresários da economia veem os salários como um custo, sendo o grau de internacionalização destes e seu posicionamento em elos-chave das cadeias produtivas de bens – cujo consumo é inalienável – o que os leva a essa visão tendenciosa. Por outro lado, as PME e algumas grandes empresas cuja produção se destina fundamentalmente ao mercado interno e numa gama de artigos de diferentes comportamentos de consumo, requerem a solvência da procura para poderem vender o que produzem. Eles sabem que os salários fazem parte de seus custos, mas também do volume de produção e vendas que terão.
As economias assistencialistas do Norte e os governos populares dos países periféricos dependentes implantaram instituições que colocam o Estado como árbitro das negociações salariais. Essa definição implica a conformação da distribuição de renda por mecanismos extramercados. O que significa a possibilidade de determinar essa distribuição como definição política de cidadania.
Na realidade, a inflação, no quadro de um regime que assume este tipo de determinação, é a forma do empregador anular a melhoria social que significou o estabelecimento de convenções colectivas de trabalho. Tanto a visão dos marxistas quanto a dos defensores de outros ramos do pensamento crítico sobre os interesses conflitantes entre patrões e trabalhadores, alguns defendem a necessidade da luta de classes e outros a intervenção do Estado para melhorar a vida popular. Os keynesianos têm a mesma visão em relação à questão social, mas também quanto à necessidade de regulação econômica de curto prazo para evitar a ocorrência de ciclos que prejudiquem o progresso da economia.
Mas fica explícito que, como afirma a nota Independência ou Subordinação , citando Salama e Valier, são os preços que expressam a queda de braço pelos lucros do empresariado. Portanto, a desmercantilização da regulação salarial exige outra lógica onde o Estado tem intervenção na conformação dos preços. Especialmente em um momento em que há uma inflação cuja chave dinâmica é a recomposição da taxa de lucro.
A inflação argentina do presente exige esse nível de intervenção pública que repare todos os salários com uma quantia fixa substantiva. Que também resolva um aumento significativo do salário mínimo vital e móvel. Enquanto isso, os preços devem ser estabilizados e ajustados ao seu nível por ação do governo. É necessário um choque redistributivo progressivo que recupere substancialmente a participação dos salários na composição da renda.
Historicidade
Essa recomposição salarial em relação ao excedente apropriado pelo empresariado está intimamente ligada à redução da pobreza e da desigualdade. O conceito de pobreza é construído nas condições de vida, nas relações sociais, no desenvolvimento das forças produtivas e na ideia de uma sociedade de iguais. A pobreza no mundo de hoje não é a mesma de três séculos atrás. Hoje, aqueles que não têm água encanada, nem acesso à eletricidade, nem aquecimento no inverno, nem os medicamentos de que precisam, são sem dúvida pobres. No entanto, séculos atrás os mais ricos não tinham a possibilidade de resolver muitas dessas questões, porque não existia o desenvolvimento dos meios para isso. A insulina é um bem essencial para os diabéticos desde o momento em que sua existência e disponibilidade se desenvolveram, para os pobres e para os ricos. O progresso médico tornou isso possível. Outros bens como o computador, que não eram essenciais desde o início, com sua aplicação no cotidiano em todos os seus aspectos, também se tornam essenciais para que as famílias deixem de ser pobres. O ser humano é um ser social, cuja condição permanente é viver com dignidade, ou seja, de acordo com as ideias de liberdade e igualdade. Nunca é apenas um produto da natureza que entra em relação com outros seres humanos individuais para formar uma sociedade. O homem não constitui a sociedade, mas a sociedade o constitui. Para que a dignidade humana seja satisfeita no quadro de uma lógica social e não corporal-individual. As necessidades básicas não são apenas necessidades corporais, nem são sempre as mesmas.
Por outro lado, a pobreza não é independente da desigualdade. São conceitos relacionados. Há sociedades muito desiguais onde convivem habitações precárias, ou a falta delas, ou um nível de aluguéis em bairros populares que consomem grande parte da renda dos setores mais vulneráveis e/ou assalariados e, por outro lado, um setor que possui mansões, com casas de fim de semana, ou proprietários de um número considerável de casas desocupadas. Sociedades em que há fortes diferenças nas condições de acesso à saúde ou vestuário decente. Sociedades onde a recreação atinge um setor de seus membros e não outros, o que leva à extinção da noção de semelhante. São tão desiguais que constituem sociedades divididas, a caminho da dessocialização. Um caminho inevitável para a escalada da violência cotidiana é a consequência dessa partição. Dessocialização é desumanização. Não há Humanismo possível em países sem um Projeto que combine a fusão entre a redução das desigualdades e a eliminação da pobreza.
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