
Fontes: Rebelión [Imagem: Lula durante a leitura do discurso de vitória apoiado por representantes das forças que compuseram sua candidatura. Créditos: site do Lula]
Neste artigo, o autor sustenta que uma das principais tarefas de Lula nos próximos meses será a desbolsonização da sociedade brasileira, para a qual seria importante alcançar a "construção de uma ampla aliança entre todas as forças progressistas que impulsionam o transformações necessárias para obter maior justiça social» na forma de um 'compromisso histórico'.
Com a derrota de domingo, podemos pensar no declínio do bolsonarismo? Responder a essa pergunta exige ponderar os diversos desdobramentos dos resultados dessas eleições. Por um lado, o reconhecimento indireto da derrota do ex-capitão permite dar um suspiro de alívio às ameaças golpistas que pairavam sobre o país, agora voltando todas as atenções para o futuro, para o que será o governo do presidente eleito Lula da Silva.
Reforçando essa visão de futuro - não exclusivamente do Brasil - o presidente eleito foi convidado a participar da próxima Conferência das Partes (COP27) que acaba de ser inaugurada no Egito. A importância da presença de Lula confirma as enormes expectativas que existem em relação ao novo governo, não só pela negligência e comprometimento criminoso com que o problema ambiental foi tratado no governo cessante, mas também pela agenda inovadora que está sendo sendo elaborado pelas futuras autoridades como parte das ações de mitigação e combate ao aquecimento global, incluindo a questão da transição energética e a adoção da “energia verde” como parte de uma estratégia de grande relevância para a equipe que assumirá o Ministério do Meio Ambiente.
O futuro presidente também indicou entre seus compromissos de campanha atingir o desmatamento zero, concluir a demarcação das terras indígenas e reprimir as atividades extrativistas, dando a devida prioridade à questão das mudanças climáticas globais. De fato, a questão ambiental está entre as questões centrais que serão abordadas pelo novo governo, que deve enfrentar urgentemente a tragédia da devastação da região amazônica. Só para ter uma ideia comparativa, entre 2004 e 2012, durante as presidências de Lula da Silva e Dilma Rousseff, o corte da floresta amazônica diminuiu 80%. Já nos primeiros 3 anos do governo Bolsonaro, a derrubada indiscriminada das florestas naquele território chegou a 73%.
Passado e futuro do bolsonarismo
Nesse sentido, Bolsonaro se transformou com velocidade inusitada em uma figura do passado. Agora ele parece condenado a encerrar seu governo e apoiar o processo de transição para o novo governo, conforme determina a Constituição Federal. De fato, os principais partidos do chamado centrão já sinalizaram com inusitada prontidão que estão dispostos a apoiar o próximo governo Lula em todos os assuntos de “interesse” nacional.
No entanto, apesar de todas as barbaridades cometidas em seu governo, Bolsonaro continua mantendo enorme apoio entre o eleitorado brasileiro, o que o torna possuidor de inegável capital político. A rigor, Bolsonaro foi derrotado, mas o Bolsonaro ainda tem que ser derrotado. É intrigante saber que 58 milhões de brasileiros votaram em um presidente que teve o pior desempenho desde a redemocratização. Não só sua gestão deixa um legado de quase 700 mil mortes pela má gestão da pandemia de covid-19, como também seu mandato será reconhecido como aquele que causou a maior destruição de ecossistemas e biomas da história brasileira.
Como destacamos em coluna anterior ( Fome e miséria atingem o Brasil em ano eleitoral ), o atual governo também conseguiu reposicionar o Brasil no "Mapa da Fome", calculando que atualmente mais de 33 milhões de pessoas não recebem nutrientes suficientes para levar uma vida digna. Isso é ainda mais escandaloso se pensarmos que o Brasil é a terceira potência mundial na produção de alimentos.
Desemprego, congelamento de salários, inflação, fome, aumento da violência, destruição de políticas sociais são alguns dos componentes de um governo infame que dificultou a vida dos brasileiros. Tudo isso, sem falar nas prisões autoritárias e ameaças às instituições democráticas que são uma prática quase diária desde a posse de Bolsonaro.
Então, temos que, por um lado, Bolsonaro e seu governo já representam uma figura do passado e agora todos os olhos estão voltados para o que o novo governo fará. Mas, por outro lado, também é possível prever que o bolsonarismo pode se tornar uma força política, social e parlamentar significativa no futuro, considerando que muitos de seus acólitos incondicionais foram recentemente eleitos para ambas as Câmaras do Congresso.
O que torna Bolsonaro ainda uma figura com importante adesão entre os brasileiros, quando é um personagem que deve ser esquecido para sempre como presidente de um governo desastroso para a vida da grande maioria dos habitantes. Se na situação atual já se fala no futuro ex-presidente, fechando antecipadamente seu ciclo de governo, o certo é que seu legado pode sobreviver se não for combatido com determinação e perseverança. Infelizmente, existem bases suficientes para sustentar a sobrevivência do bolsonarismo.
A uma parcela conservadora da população brasileira que abraça os princípios de "Deus, Pátria e Família", somam-se os fanáticos pentecostais que se intoxicaram com os discursos delirantes de centenas de pastores que apoiaram o ex-capitão com discursos alucinados e mentirosos. Sabe-se que esse apoio se deve em grande parte às isenções fiscais e fiscais que as igrejas evangélicas têm recebido neste período.
Bolsonaro conseguiu galvanizar o conservadorismo contra qualquer tipo de mudança e também conseguiu dar visibilidade em escala nacional a uma cultura sertaneja restrita ao espaço rural, a uma estética agrícola que consolidava uma identidade que parecia ter sido superada com a processo de modernização vivenciado pela sociedade brasileira desde a redemocratização.
Desprezada pela elite cultural em sintonia com a cultura global e cosmopolita, essa identidade mistura sertaneja e sertaneja Foi inundando o espaço urbano com seu culto ao herói individual e experiente que só triunfa graças ao seu esforço pessoal, independente das conquistas no campo da política ou percebendo o impacto das políticas públicas no cotidiano dos cidadãos. "Sou apenas o que meu esforço pessoal é capaz de alcançar." Pela mesma razão, não há uma visão holística das barreiras e obstáculos estruturais que se colocam na vida das pessoas e nessa leitura a raiva de frustração que chega quase inevitavelmente no decorrer da existência de cada um se volta contra as minorias beneficiadas pelas políticas de os “esquerdistas”, que destinam mais recursos aos pobres, negros, indígenas, minorias LGBTI+, presos, etc.
Dessa forma, o ex-capitão deu voz e expressão aos insatisfeitos com a vida, dotando-os de uma identidade veiculada e disseminada pelas redes, alimentada também por visões mágicas e perturbadas de um pentecostalismo delirante que transformou Bolsonaro em um enviado divino, Messias iluminado destinado a redimir as almas pecadoras e o mal da humanidade. Essa nova gramática identitária conseguiu neutralizar as críticas ao pior trabalho do governo nas últimas décadas, permitindo que Bolsonaro gozasse de resiliência diante de todos os desastres sanitários, econômicos, trabalhistas, sociais, culturais e ambientais produzidos por seu desgoverno.
Desmontar esta configuración identitaria que subvierte las tendencias integradoras y progresistas de la sociedad, se pone como uno de los grandes desafíos de la política democrática del futuro, no solo para el gobierno que se iniciará el próximo año, sino para el conjunto de las fuerzas democráticas do país. Resumindo, no que diz respeito ao seu governo, Bolsonaro é passado, mas o bolsonarismo pode continuar sendo referência para milhões de habitantes do país. Por isso é essencial assumir a tarefa de desmantelá-la e superá-la.
Desafios para desatar os novos tempos
Reconhecendo esse fenômeno, o projeto de reconstrução empreendido por Lula e os referentes que o sustentam terá que se adequar ao que Maquiavel já intuía no início do século XVI, ou seja, analisar as circunstâncias do campo político dentro e fora do Congresso e do Judiciário, para gerar a partir daí as condições para construir um projeto de consolidação do quadro democrático e simultaneamente banir os resquícios do ideário de extrema direita que se instalou no Brasil. Em outras palavras, para debol s onarizar Para o futuro deste país, é fundamental um grande pacto político e social que desmonte as armas deixadas por quatro anos de ataques sistemáticos às instituições democráticas, às políticas públicas e à própria atividade política como atividade fundamental para organizar a nação.
A coligação vencedora já deu os primeiros passos na busca do consenso mínimo para poder governar a partir de 2023. É extremamente urgente obter recursos orçamentários para realizar algumas das promessas mais significativas da campanha: Restabelecimento do Programa Bolsa Família com abono correspondente para mães que têm filhos até 6 anos, aumento do salário mínimo, retomada do programa Farmácia Popular e da merenda escolar. Mas junto com esses objetivos de curto prazo, é fundamental desenvolver e executar um conjunto de ações de longo prazo que visem desmantelar o projeto da extrema direita, reconquistando o espaço do debate democrático saudável em um ambiente de pluralismo, liberdade de expressão e respeito por direitos. adversários.
Nesse sentido, a vitória de Lula resolve o impasse democrático que vive a sociedade brasileira, com um compromisso voltado para recompor a correlação de forças democráticas e constituir uma maioria parlamentar que permita gerar condições para a implementação dos principais eixos do governo. Pela mesma razão, não será um governo com agenda de esquerda, mas sim uma coalizão que busca fortalecer um programa social-democrata de maior inclusão e justiça social, reestruturando o sistema tributário -para um modelo de arrecadação efetivamente progressivo- para obter o necessário para substituir e executar o conjunto de políticas sociais desmanteladas nos últimos quatro anos.
Como bem aponta o cientista político Luis Felipe Miguel em seu recente livro: “Desta forma, a vitória de Lula consagraria a ideia de que a solução para os retrocessos sofridos nos últimos tempos é a recomposição de uma maioria eleitoral e parlamentar mais forte. democrática, com uma hegemonia moderadamente progressista e disposta a produzir o mais amplo consenso possível ” [1].
Ou seja, nesta conjuntura se expressa uma espécie de chantagem pela qual a esquerda é obrigada a abrir mão de seu discurso e de uma agenda de transformações mais profundas para o país. As políticas de inclusão estão na ordem do dia, mas sem alterar significativamente o cenário econômico e político do país. Após o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 e o surgimento e posterior vitória da extrema direita nas eleições de 2018, a tarefa preeminente parece ser recompor o tabuleiro de xadrez com as regras do jogo democrático, com atenção especial às ameaças e desvios autoritários promovidos pelos setores golpistas.
Sem dúvida, um cenário mais propício poderia estimular a construção de um bloco histórico popular necessário para realizar as transformações mais profundas que a sociedade brasileira exige, nos moldes propostos por Antonio Gramsci e posteriormente reelaborados por Enrico Berlinguer em sua concepção de “Compromisso Histórico”. Em poucas palavras, essa noção postula que a formação desse bloco significa a construção de uma ampla aliança entre o conjunto de forças progressistas que promovem as transformações necessárias para obter maior justiça social. Esse pacto seria produzido por meio de um compromisso histórico, em que o tecido da grande maioria do povo se constitui em torno de um programa de luta pelo saneamento e renovação democrática de toda a sociedade e do Estado, onde se faz corresponder a este programa e a esta maioria uma coligação de forças políticas capaz de o levar a cabo. Um pacto desse tipo não parece impossível, embora os dados da realidade nos permitam supor que o Brasil esteja atualmente em uma fase de recomposição das instituições democráticas em consonância com a luta para avançar para uma derrota definitiva dos setores mais retrógrados e reacionários da o país. .
Do ponto de vista estratégico, consideramos, inclusive, que é preciso criar condições para que se fortaleça um direito democrático e dialogante para tomar sustentação e visibilidade das hordas fanáticas da extrema direita que há muito se incubam na sociedade brasileira . , mas que emergiu com grande força do submundo nostálgico da ditadura e dos esgotos da história. Estamos diante de uma sociedade fraturada que precisa ser reconciliada e para isso é necessário fazer as devidas renúncias que em outros momentos podem parecer exageradas.
Este grande pacto nacional terá um forte impacto sobre os setores e grupos que querem manter o status quo a qualquer preço: ruralistas, especialmente pecuaristas, madeireiros ilegais, grileiros , invasores de reservas indígenas, garimpeiros , pentecostais pastores, os especuladores favorecidos pelo governo, os sonegadores de impostos, etc.
Essa extrema direita ideológica e/ou oportunista vai enfrentar ferozmente o governo Lula, tentando gerar caos institucional a todo momento ou tentando paralisar o país com suas práticas sabotadoras e golpistas. Para isso, a coalizão governista terá que contar com as maiorias que deram seu voto e se mobilizaram ativamente para confirmar a vitória nas urnas. Essas maiorias devem permanecer vigilantes e continuar se mobilizando para defender o governo em seus esforços para reconstruir as instituições democráticas e implementar políticas sociais que melhorem a vida dos brasileiros. Isso também dará sustentabilidade ao projeto de desmantelar e derrotar definitivamente o bolsonarismo em todas as áreas,
Observação[1] Luis Felipe Miguel, Democracia na periferia capitalista: impasses no Brasil, Belo Horizonte: Autêntica, 2022, p. 325.Fernando de la Cuadra é doutor em Ciências Sociais, editor do blog Socialismo y Democracia e autor do livro De Dilma a Bolsonaro: itinerário da tragédia sociopolítica brasileira (Editora RIL, 2021).
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