terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Amazônia: por que as máfias reagem a Lula

Imagem: ES Brasil

Há sinais de que setores ligados à devastação atuaram intensamente na tentativa de golpe de 8/1. Veja como eles se sentem incomodados com os primeiros planos de ação do governo — e como estes diferem das primeiras gestões petistas
Por Jonathan Watts e Talita Bedinelli, na Sumaúma

Olhar com atenção os planos ambiciosos do novo governo para proteger a floresta amazônica e outros biomas, como o Pantanal e o Cerrado, é essencial para entender o caos coreografado que eclodiu em 8 de janeiro em Brasília. Há múltiplas causas, mas a nova abordagem da crise climática é particularmente simbólica. Uma vez compreendida a importância histórica dessas propostas, fica mais fácil identificar por que há poderosos interessados em manter seus privilégios e que se sentem tão ameaçados a ponto de instigar a invasão violenta e a destruição dos prédios símbolos dos três poderes: o Palácio do Planalto, o Congresso e a Suprema Corte.

Por que os planos de Lula para a Amazônia enfureceram os aliados da destruição?

O novo presidente e sua nova ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, prometeram desmatamento zero, fim das invasões de todos os biomas brasileiros, e maior participação dos povos indígenas nas decisões nacionais. Essas são mudanças em uma escala historicamente épica. Desde a chegada dos primeiros invasores europeus, há 500 anos, a economia do que viria a ser chamado de Brasil foi centrada em destruir a natureza e subjugar os habitantes originários.

Lula deu esse passo em resposta à maior ameaça à segurança nacional e global representada pelo colapso climático. Cientistas alertam que mais desmatamento pode levar a Amazônia a um ponto sem retorno, com implicações catastróficas para a agricultura brasileira, padrões climáticos regionais e a estabilidade climática. Os planos do novo governo devem permitir que o Brasil obtenha fundos internacionais, abra mercados estrangeiros para produtos brasileiros e reivindique uma posição de liderança em assuntos internacionais. Mas, como toda grande mudança, alguns setores da sociedade brasileira se sentem ameaçados.

Entre eles está uma elite privilegiada, majoritariamente branca, que lucrou com o modelo histórico de exploração e sente que isso faz parte de sua identidade. Isso também inclui os envolvidos em grilagem de terras, garimpo ilegal e extração insustentável de madeira cujas atividades são com frequência ilegais, mas muito afinada com a antiga e pioneira atitude de uma nação imbuída do espírito bandeirante. Dos 7 estados da região Norte, onde se concentra a Amazônia brasileira, Bolsonaro venceu em 4 (Amapá, Acre, Roraima e Rondônia), e nos 3 últimos garantiu esmagadores 70% ou mais dos votos. Nos 3 estados do norte que Lula ganhou (Amazonas, Pará e Tocantins), ele não ultrapassou 55% dos votos.

Quão forte é a conexão entre os golpistas e os extrativistas na Amazônia e em outros biomas?

É muito cedo para dizer. Muitos grupos diferentes de todo o país provavelmente estão envolvidos por muitas razões diferentes. Logo após o ataque ao Congresso, o presidente Lula sugeriu que garimpeiros e madeireiros ilegais da Amazônia estavam envolvidos nos atos de terrorismo na Praça dos Três Poderes. É razoável supor que o presidente tenha informações do sistema de inteligência para justificar tal afirmação. Se assim for, não seria o primeiro ato de terrorismo de pessoas ligadas à destruição da floresta tropical. O terrorista que tentou explodir uma bomba no aeroporto de Brasília em dezembro é um empresário paraense, George Washington de Oliveira Sousa, que trabalha no setor de combustíveis e transportes em cidades do arco do desmatamento.

É importante entender o que a Amazônia e outras áreas de biodiversidade, assim como a independência indígena, representam no imaginário dos terroristas de extrema-direita. Proteger a floresta e outros biomas vai contra seus valores, já que enxergam a natureza como uma fonte de mercadorias geradoras de lucro. Resta saber o papel das forças de segurança nos ataques à democracia. É evidente que a Polícia Militar foi no mínimo negligente na resposta ao ataque, podendo mesmo ter sido conivente. Alguns comentaristas especulam que elementos do Exército posteriormente podem tentar uma intervenção — como aconteceu na Bolívia recentemente — sob a alegação de que precisam impedir mais caos. Os próximos dias e a próxima semana provarão quão real é essa ameaça. Mas está claro que os militares tiveram um papel de destaque no governo de Bolsonaro, ele mesmo um ex-capitão do exército que chegou a planejar um ataque terrorista para conseguir melhores salários para ele e os colegas. O ex-presidente, agora, pelo menos temporariamente fora do alcance da justiça brasileira porque está na Flórida, era um apoiador entusiástico da ditadura militar-empresarial do Brasil (1964-85) e dedicou energia considerável para abrir a Amazônia à exploração feita por grupos empresariais simpatizantes.

O que Lula fez pelos povos indígenas e por que isso incomoda algumas pessoas?

O movimento mais progressista do novo governo é a criação de um Ministério dos Povos Indígenas, comandado por Sonia Guajajara, uma das principais líderes dos povos originários no Brasil. Isso dá mais poder e uma plataforma maior aos indígenas do que em qualquer outro momento. O novo ministério abrigará o principal órgão indigenista brasileiro, a Funai, que foi sensível e sensatamente rebatizada para Fundação Nacional dos Povos Indígenas, em vez de Fundação Nacional do Índio. A mudança era um pedido antigo das lideranças indígenas, já que o termo “índio” é considerado pejorativo e genérico, não representativo da diversidade de povos existentes.

A Funai terá sua primeira líder indígena, a respeitada advogada e ex-deputada Joenia Wapichana. Sua presença é uma guinada em relação a seu antecessor, um delegado de polícia branco ligado ao agronegócio. Ao subir a rampa do Planalto acompanhado de Raoni Metuktire, o cacique Raoni, a maior referência indígena no Brasil, Lula deu ao planeta uma imagem eloquente de mudança. Raoni denunciou ao mundo a tragédia do governo Bolsonaro e acabou atacado pelo ex-presidente brasileiro e seus seguidores.

“[Os povos indígenas] não são obstáculos ao desenvolvimento – são guardiões de nossos rios e florestas, e parte fundamental da nossa grandeza enquanto nação”, disse o novo presidente em seu primeiro discurso ao público. Anteriormente, ele havia insinuado ao Congresso que seu governo ampliaria as terras indígenas: “Cada terra demarcada é uma nova área de proteção ambiental. A estes brasileiros e brasileiras devemos respeito e com eles temos uma dívida histórica. Vamos revogar todas as injustiças cometidas contra os povos indígenas.”

Todos esses movimentos representam uma ameaça para aqueles que acreditam que os capitalistas brancos e cristãos têm o direito e o dever de tomar terras de pessoas de cor de pele diferente com valores culturais diferentes e mais focados em seu modo de vida do que em sua renda e expansão de seu território. Bolsonaro se recusou a demarcar qualquer terra indígena e incentivou invasões de garimpeiros em territórios já protegidos.

Isso está ligado à crise climática?

Sim. Muitas das tensões agora em erupção no Brasil e anteriormente nos Estados Unidos estão relacionadas ao estresse climático nos velhos sistemas políticos e econômicos do capitalismo industrial. Bolsonaro e Donald Trump representam o antigo regime, que quer continuar com a velha forma de fazer negócios independentemente do impacto no clima, no meio ambiente, nas outras espécies e nas pessoas. Lula representa aqueles na base que correm maior risco de roubo e contaminação de terras férteis, água limpa e ar puro, junto com cientistas e uma elite internacional educada que percebe que o velho modelo está falido. Lula mencionou a necessidade de “combater as mudanças climáticas” em seus discursos de posse e disse que se envolveria mais com a comunidade internacional.

Dentro do governo, os rótulos também mudaram. O Ministério do Meio Ambiente foi renomeado como Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas. No entanto, não há um novo superministério que coordenará a política climática em todos os departamentos do governo, como chegou a ser discutido. A ministra Marina Silva afirmou, porém, em entrevista ao jornal Valor Econômico, que a questão climática será transversal ao governo e haverá estruturas específicas sobre o tema em ministérios como os da Fazenda e da Justiça. Será necessário observar de perto se essa transversalidade, fundamental no momento em que há pouco tempo para evitar o pior, acontecerá na prática cotidiana do poder.

A principal contribuição do Brasil aos esforços internacionais para estabilizar o clima será deter o desmatamento. Se isso for feito, já representará um grande sucesso. O avanço no reflorestamento seria uma conquista adicional. Mas há preocupações de que Lula também esteja pressionando por uma maior exploração das reservas de petróleo e gás, e há incerteza sobre sua posição em grandes projetos de infraestrutura, como barragens para hidrelétricas e novas estradas, que são uma ameaça à natureza e ao clima. Lula anunciou em seu discurso de posse a volta do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que em governos anteriores do PT foi responsável, por exemplo, pela volta de grandes hidrelétricas na Amazônia, como a desastrosa Belo Monte. Ainda não se sabe como será o PAC para Lula 3.

O agronegócio aceitará que não pode mais expandir fazendas e plantações derrubando florestas?

Esta é a pergunta crucial. Em seu discurso de posse no Congresso, Lula deixou uma linha clara: “O Brasil não precisa desmatar para expandir a fronteira agrícola, mas sim replantar 30 milhões (de hectares de) áreas desmatadas. Não há necessidade de invadir nossos biomas.” Ele estava dizendo ao parlamento, dominado pelo agronegócio predatório, que a floresta estaria fora dos planos de expansão e seria preciso voltar sua atenção para terras subutilizadas ou abandonadas, já desmatadas, se quisessem expandir as áreas de cultivo. Para o bem ou para o mal, essa foi uma sugestão de Katia Abreu, ex-chefe do lobby agropecuário, que se tornou aliada do partido de Lula e chegou a ser ministra da Agricultura de Dilma Rousseff.

Embora pareça promissor, o diabo estará nos detalhes. Como as “terras degradadas” serão classificadas? Como as proteções serão aplicadas? O governo estará disposto a fechar as brechas que até hoje permitiram que grileiros lavassem e legitimassem terras desmatadas ilegalmente? Essa política divide o agronegócio. Algumas grandes corporações podem apoiá-lo porque já possuem terras consideráveis e percebem que a instabilidade climática representa uma ameaça à sua produtividade. Mas aqueles que seguem lucrando com a grilagem de terras sentirão que estão perdendo.

Por que Lula representa uma ameaça para as dezenas de milhares de garimpeiros ilegais que invadiram terras indígenas na Amazônia?

Outro dos primeiros decretos de Lula foi revogar uma medida do governo anterior que incentivava o garimpo ilegal em terras indígenas e em áreas de proteção ambiental. Assessores dizem que nas próximas semanas e meses, as autoridades federais irão ocupar áreas de mineração ilegal, expulsar invasores e destruir equipamentos. A médio prazo, entretanto, a solução exige um trabalho de inteligência policial mais efetivo e transnacional, já que a porteira aberta para a mineração ilegal na Amazônia trouxe junto o crime organizado, que comanda o tráfico de drogas e de armas no país e viu no ouro uma nova chance de negócio. Qualquer esforço para reduzir a mineração vai provocar resistência em lugares como o estado de Roraima, onde a economia local depende dessa atividade.
Qual a importância de Lula dizer em seu discurso de posse que não “tolerará violência contra os ‘pequenos’”?

Esta é outra ameaça para aqueles que usaram a violência para garantir a terra e o poder na Amazônia e em outros biomas. O último relatório anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT), com dados de 2021, mostra que os conflitos no campo se agravaram. Trinta e cinco pessoas foram mortas naquele ano, contra 20 no ano anterior. A impunidade para crimes ambientais e invasões de terras, o maior acesso a armas e as ações e falas do ex-presidente Bolsonaro multiplicaram a tensão na Amazônia.

Não tolerar a violência significa reconstruir e ampliar as estruturas de fiscalização, fortalecer o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e garantir maior segurança aos povos que lutam pela floresta em pé. Eles podem ser pequenos em termos de poder político e econômico, mas Lula está reconhecendo sua estatura moral e a importância de sua luta.

O presidente também está restabelecendo o Estado de direito e a presença do Estado na Amazônia: “Incentivaremos, sim, a prosperidade na terra. Liberdade e oportunidade de criar, plantar e colher continuará sendo nosso objetivo. O que não podemos admitir é que seja uma terra sem lei. Não vamos tolerar a violência contra os pequenos, o desmatamento e a degradação do ambiente, que tanto mal já fizeram ao país”. Esta é uma ameaça muito óbvia para os interesses daqueles que lucraram com a impunidade da era Bolsonaro.

Como a expectativa de multas ambientais aumenta a tensão?

O novo governo está planejando enviar milhares de notificações de penalidades ambientais para aqueles que desmataram ilegalmente nos últimos anos. Um dos decretos assinados pelo presidente ao assumir o cargo restabeleceu a obrigatoriedade do Estado de destinar 50% da receita de multas ambientais ao Fundo Nacional do Meio Ambiente, que poderá aplicar o dinheiro em reflorestamento e outros projetos. Além de reduzir a fiscalização e, com isso, as multas aos infratores, Bolsonaro também perdoou punições dadas aos invasores da floresta, o que passou uma clara mensagem de impunidade e causou uma perda de mais de 18 bilhões de reais aos cofres públicos, segundo relatório da equipe de transição. A coleta desses fundos, sem dúvida, vai enfurecer aqueles que estão se esquivando de suas responsabilidades legais.
Que benefícios Lula pode oferecer para aliviar as tensões?

Novos fundos em benefício da Amazônia e seus povos serão essenciais e precisam chegar rapidamente. Outro decreto do dia da posse de Lula autorizou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) a voltar a arrecadar doações para o Fundo Amazônia em ações de combate ao desmatamento e na promoção do uso sustentável da floresta. O fundo é financiado principalmente pelos governos da Noruega e da Alemanha, que já começaram a liberar recursos que haviam sido bloqueados durante os anos Bolsonaro.

A equipe de transição também pediu ao Congresso mais 536 milhões de reais para o Ministério do Meio Ambiente. São muitas as propostas de “títulos verdes” que canalizariam dezenas de bilhões de dólares de financiamento ao Brasil e financiaria a transição para uma economia menos destrutiva e que deveria ser usada para encontrar alternativas de emprego e renda para quem perde com uma nova política florestal.

O novo presidente deve convencer as pessoas de que há mais a ganhar avançando e enfrentando o desafio do colapso climático do que olhando para trás e fingindo que o problema não existe ou é responsabilidade de outra pessoa, como fez Bolsonaro. Em seu discurso de posse, Lula equilibrou a conservação do ecossistema e os direitos indígenas com crescimento econômico e igualdade social. Encontrar o equilíbrio é um desafio que todos os países enfrentarão nos próximos anos. O apoio internacional será crucial — tanto em termos de encorajamento quanto de dinheiro vivo. Muitas batalhas políticas estão pela frente.



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