IMAGEM: WILTON JUNIOR/ESTADÃO CONTEÚDO
Durante o governo Bolsonaro, a ruptura institucional foi lenta, progressiva, sem golpe de força. Após a derrota eleitoral, ela veio como uma última jogada desesperada. Um movimento fraco e até com aspectos delirantes de uma “realidade paralela”; mas o potencial de escalada desse fanatismo não pode ser subestimado.
Por Marcos Barreira
Poucos ainda duvidam que o movimento de 8 de janeiro foi uma tentativa de golpe. Tratou-se não de uma simples manifestação, como insistem setores minoritários na imprensa, mas da última e desesperada jogada para desestabilizar o novo governo, que dá seus primeiros passos. Os acontecimentos em Brasília também expõem o caráter golpista do conjunto das manifestações pró-Bolsonaro ao longo dos últimos quatro anos. Cada uma delas representava uma jogada, ora ofensiva, ora de defesa, de uma estratégia que culminaria no golpe.
O governo Bolsonaro pode ser dividido em duas fases: a primeira vai da eleição até o ato de 7 de setembro de 2021, com o governo na ofensiva populista contra o “sistema” e a “política”; a segunda é a da conciliação provisória com o establishment político, que resulta dos desgastes acumulados pela radicalização no auge da pandemia. Isso corresponde a uma mudança de natureza do movimento bolsonarista. No aspecto ideológico, ele começa como uma revolta populista superficial e se transforma em um fenômeno quase sectário; quanto à composição social, ele perde apoio relevante das camadas médias dos grandes centros e passa a se concentrar em camadas populares de base evangélica.
Nessas duas fases do governo e do movimento liderados por Bolsonaro há um elemento unificador: a escalada golpista. Já em 2019, em 25 de maio, ocorre o primeiro ato do bolsonarismo “puro” contra o “sistema”, isto é, os dois poderes rivais, Legislativo e Judiciário. No final do primeiro ano de governo, Bolsonaro rompe com o seu próprio partido e lança a construção da Aliança pelo Brasil, que jamais se concretizou. Em abril de 2020, Bolsonaro participa de uma manifestação pró-intervenção militar em frente ao QG do Exército no DF. O discurso populista de Bolsonaro aponta claramente para a ruptura: “Nós não queremos negociar nada; o que queremos é uma ação pelo Brasil. O que tinha de velho ficou para trás. E temos um novo Brasil pela frente. Acabou a época da patifaria. Agora é o povo no poder”. A escalada continua dois meses depois, com o movimento extremista dos “300 de Brasília”, que permanece acampado na Praça dos Três Poderes, em uma mobilização contra o STF. Ao mesmo tempo, crescia a participação de militares da ativa em diversas áreas do governo. Bolsonaro começou a pressionar os comandantes militares para criar um alinhamento das Forças Armadas com a escalada golpista. Isso provocou uma tensão que resultaria na inédita renúncia dos comandantes das três Forças, na véspera do 31 de março (a data simbólica em que a extrema-direita militar comemora o golpe de 1964). Dois meses depois, com a popularidade em queda na “classe média” devido à gestão desastrosa durante a pandemia, Bolsonaro participa de um ato com o general Pazuello, também da ativa, que executava fielmente a sua orientação no Ministério da Saúde. Esse ato já era uma reação à criação da CPI da covid-19, mas também consistia em uma tentativa de criar uma crise militar. O ponto culminante da escalada ocorreu, finalmente, no feriado nacional de 7 de setembro de 2021, com um ataque direto de Bolsonaro ao STF e ao ministro Alexandre de Moraes, que autorizou os inquéritos sobre as manifestações contra o Congresso e o Supremo.
As manifestações de 7 de setembro mostraram que Bolsonaro contava com uma base sólida de apoiadores. Os grupos fanáticos “intervencionistas”, antes minoritários, transformaram-se em pequenas multidões. Mesmo assim, foram insuficientes para sustentar uma ruptura. Bolsonaro pretendia que os atos fossem uma demonstração de força incontestável, mas isso não ocorreu. O movimento falhou também em obter a adesão das Polícias Militares e da cúpula das Forças Armadas. Em vez de inflamar o país, as manifestações colocaram na ordem do dia o impeachment de Bolsonaro. A posição dos principais grupos de mídia mostrava o ponto de inflexão: a pauta desde então parecia dominada pelo avanço das investigações contra aliados do presidente. A primeira reação de Bolsonaro ao revés do dia 7 foi um gesto apaziguador em sua “Declaração à Nação”, no dia 9 daquele mês. Em novembro de 2021, Bolsonaro se filia a um novo partido, o PL, e concede amplos poderes informais (sobretudo o controle de parte do orçamento) às lideranças do Congresso, para continuar a governar. Essa guinada, que transforma a “antipolítica” reacionária de Bolsonaro em uma capitulação ao sistema de partidos tradicionais, fez com que ele se concentrasse no questionamento do processo eleitoral. O movimento de oposição também foi esvaziado pela estratégia da esquerda, liderada pelo PT, que apostou tudo na vitória eleitoral de Lula. Rapidamente, perderam força as denúncias da escalada golpista e da responsabilidade direta do governo pelo número elevado de mortes, além de crimes comuns, conforme apontou a CPI da covid-19. Esse duplo movimento assegurou a continuidade do governo e ajudou a normalizar o bolsonarismo.
O fim do último ano do governo foi marcado por mais um ato, novamente no 7 de setembro, mais vazio que o anterior. Parcialmente recuperado em sua popularidade, após a normalização do governo e as novas alianças, Bolsonaro se concentrou nas denúncias falsas que desacreditavam as urnas eletrônicas e na formação de uma sólida base de apoio parlamentar. Ele também negociou com os candidatos aos governos estaduais o aparelhamento das Polícias Militares. Derrotado, não reconheceu a eleição de Lula e se isolou. O clã Bolsonaro, sempre ativo nas redes sociais, ficou calado. Nas redes bolsonaristas havia rumores de que “algo” estava sendo preparado. Esse foi o estímulo para o movimento golpista iniciado em novembro, com acampamentos em frente aos quartéis, bloqueios de estradas e tentativas de invasão de prédios públicos no DF. Investigações da Polícia Federal apontam agora que, nos últimos dias do governo, o então presidente, recluso, tramava com seu Ministro da Justiça uma intervenção no tribunal eleitoral para impugnar o resultado da eleição presidencial. Mais uma vez, a situação produziu atrito entre o presidente e Alto Comando do Exército. Terminado o ano, a transição ocorreu com aparente normalidade, mas sem a desmobilização dos golpistas que continuavam a pedir uma intervenção militar.
Esse final do governo desmente duas teses que tentavam compreender o golpismo de Bolsonaro: que o ex-presidente era uma espécie de marionete de um projeto militar e que a sublevação “antipolítica” podia ser levada a cabo “a partir de baixo”, sem as elites econômica e militar. A primeira tese reproduz um padrão típico de teoria da conspiração, para a qual todos os lances desse jogo já foram antecipados por um aparato de inteligência oculto que tutela secretamente a sociedade; a segunda tese parte de elementos mais concretos, mas exagera a autonomia do bolsonarismo e não acentua a sua dependência em relação ao “fator militar”.
Os acontecimentos do dia 8 de janeiro revelam uma estratégia de mobilização contínua e de aparelhamento das polícias. Mostram também que Bolsonaro cooptou, instrumentalizou e polarizou o setor militar, mas não o suficiente para a ruptura que ele desejava. Bolsonaro nunca teve um programa de governo, ocupando-se apenas do desmantelamento da esfera política, incluindo a desregulação do uso das armas de fogo, que desafia abertamente o monopólio estatal da violência.1 O golpe, a “guerra civil”, a defesa armada da liberdade eram suas ideias fixas – e suas únicas ideias. Por isso, foi contido pelos setores militares menos ideológicos, i.e., menos extremistas, que enxergavam o risco da ideologização das tropas, da quebra de hierarquia e do agravamento da instabilidade social.
Durante o governo Bolsonaro, a ruptura institucional foi lenta, progressiva, sem golpe de força. Após a derrota eleitoral, ela veio como uma última jogada desesperada. Um movimento fraco e até com aspectos delirantes de uma “realidade paralela”; mas o potencial de escalada desse fanatismo não pode ser subestimado. Ele foi pensado como uma centelha que desencadearia manifestações idênticas e bloqueios em todo o país. A ideia era criar uma crise institucional e, a partir dela, impor o recurso final à força militar na forma da “Garantia da Lei e da Ordem”. Um movimento assim teria condições de emparedar Lula, impondo os militares como um fator de poder imediato, limitando as ações contra os crimes do governo anterior e, no limite, poderia até mesmo colocar em xeque o novo governo ainda em formação. O excesso de violência e de fanatismo, no entanto, permitiram uma resposta imediata e fizeram com que o ato fosse revertido em favor de Lula e das demais instâncias de poder. Criou-se, assim, uma frente ampla contra o bolsonarismo, com extensa base social e institucional, como já havia ocorrido em 2021. Os vínculos evidentes de Bolsonaro com o movimento do dia 8 de janeiro também o colocam na mira da justiça – incluindo a eleitoral, que deve torná-lo inelegível. Isso não apenas joga o populismo de extrema-direita na defensiva, mas tende a fazer com que se acentue a fragmentação desse campo agora na oposição. A margem de ação para o novo governo também é limitada: cadeias de comando rompidas, posição minoritária no Congresso e dependência muito direta de medidas de emergência que concentram poder no Judiciário. O enfraquecimento do bolsonarismo e uma possível prisão de Bolsonaro, que já é debatida nas “esferas do poder”, não significa um retorno ao rumo da democratização.
Publicado em Jungle World (Berlim), nº 2023/02 em 15 de janeiro de 2023.1 Sobre isso ver, Marcos Barreira, “Brasil em tempos de declínio social: comentários a pós-política no governo Bolsonaro“, Margem Esquerda, n. 35, Boitempo, 2020.
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Marcos Barreira é professor de geografia e doutor em psicologia social pela UERJ. É pesquisador e membro do conselho diretor da Agência de Notícias das Favelas (ANF). Pela Boitempo, colaborou com o livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social, organizado por Pedro Rocha de Oliveira e Felipe Brito (Boitempo, 2013); é coautor, com Maurilio Lima Botelho, do artigo “’Capitalismo asiático’ e crise global”, na Margem Esquerda #37 e autor dos artigos “O Brasil em tempos de declínio social”, na Margem Esquerda #35 e “Dinâmica de escalada e fragmentação global: a luta pela Ucrânia”, na Margem Esquerda #39.
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