Após Augusto Pinochet violentamente tomar o poder, discute-se como essa ruptura foi boa (e ruim) aos planos da Ditadura Militar Brasileira
Daniel Azevedo Muñoz
Neste 11 de setembro, o mundo vai recordar mais uma vez o atentado às Torres Gêmeas de Nova York, ocorrido em 2001. A América Latina, por outro lado, tem mais uma data para recordar, que neste ano faz 50 anos. Em 11 de setembro de 1973, aconteceu no Chile um violento golpe de Estado, organizado pelo general Augusto Pinochet, que assassinou o presidente, bombardeou prédios públicos e outorgou ao país uma agenda de violência atroz.
A ditadura chilena, que foi tardia em relação à brasileira, já em seus primeiros momentos cometeu uma chacina que ainda não tinha sido vista no continente, ao menos no contexto das ditaduras militares do século XX. Contudo, caminhando além do macabro estudo que encanta alguns, de mensurar a violência de um regime pela sua “contagem de mortos”, a brutalidade do governo de Pinochet se deu também através da destruição de todo um modelo político social, em nome de um experimento econômico e social que nunca havia recebido a chancela das urnas.
Este modelo do governo militar chileno foi o precursor do neoliberalismo, que viria a tornar-se natural na década de 1980 e a “lei do mundo” a partir da década de 1990. As outras ditaduras latino-americanas, incluindo a brasileira, tinham modelos que se assemelhavam entre si em alguns aspectos, muito por causa da influência da finada política exterior de John F. Kennedy, a Aliança para o Progresso; mas também tinham suas particularidades, que eram naturais de ocorrer, já que nenhum país partilha exatamente do mesmo histórico. Contudo, esse modelo chileno não nasceu no contexto de um governo democrata nos EUA, com uma política de retórica “progressista”, mesmo que de maneira prática somente anticomunista e liberal. Esse modelo nasceu no governo de Richard Nixon, que tinha algumas diferenças essenciais na sua política exterior, em relação aos democratas.
Na semana anterior, tratamos em um artigo sobre o cenário de antes do Golpe Civil-Militar no Chile, leia aqui.
VIOLÊNCIA E CAOS – DE 11 DE SETEMBRO DE 1973, COM OS EXTERMÍNIOS MAIS VIOLENTOS DO MILITARISMO LATINO-AMERICANO
Diferentemente do caso brasileiro, em que o Golpe ocorreu com poucas balas e mais movimentações políticas, no Chile, o dia 11 de setembro de 1973 foi um mar de atrocidades.
O Golpe no Chile contou com o assassinato de várias figuras de governo de Allende, sendo pouquíssimas as que conseguiram escapar. Pode-se questionar se este seria o mesmo caso do Brasil se Jango decidisse “lutar”, mas a História não se faz de “e se”. Mesmo assim, é difícil imaginar que no Brasil as coisas teriam tomado rumos semelhantes. O Palácio de La Moneda, sede do governo chileno, foi bombardeado pelos militares.
No mesmo dia, montou-se um campo de concentração de presos políticos em um regime quase que de céu aberto, algo que não ocorreu nas outras ditaduras do continente. Trata-se do caso do Estádio Nacional, em Santiago, que foi transformado imediatamente numa prisão após o golpe. Ali, muitos foram barbaramente torturados e assassinados, incluindo notáveis figuras, como o cantor e compositor Victor Jara. Pessoas que foram submetidas a essa violência dizem que se matou e torturou a esmo. Entretanto, no caso dos estrangeiros se fazia uma clara distinção entre latino-americanos, que tinham medo excepcional, porque foram alvos preferíveis, em comparação com os norte-americanos e europeus detidos. Não se respeitavam os direitos de ninguém. Nem diplomatas dos EUA puderam buscar cidadãos de seu país naquele cárcere improvisado.
Neste caos, os estrangeiros que estavam no Chile foram alvos da sanha de Pinochet em “limpar” seu país. Mais uma lembrança: nas ditaduras vizinhas, se comemorava o simples rumor de ter seus “exilados” de volta, para que pudessem prendê-los. Não é necessário ir muito longe para observar um exemplo, basta se lembrar do furor que tomou o governo dos generais brasileiros com o prospecto de Leonel Brizola ser expulso do exílio no Uruguai. Se o antigo líder trabalhista pisasse no Brasil, até os desafetos Ernesto Geisel e Sílvio Frota se tornariam de novo amigos em nome de comemorar seu cárcere.
Estes estrangeiros no Chile precisavam de asilo imediato, além de possibilidades de saída do país. Um destino imaginável era Cuba, mas os diplomatas cubanos estiveram entre os primeiros a escapar de lá, já que imaginavam que nem seu prédio de representação diplomática seria respeitado. Dito e feito, o edifício foi atacado e foi necessário o embaixador sueco intervir para que se pudesse garantir que algo de lei internacional fosse respeitado. O diplomata sueco “resolveu” a questão, mas não saiu ileso. Foi agredido pelos carabineros de Pinochet. Dessa forma, o México havia se tornado um destino possível para os que precisavam escapar, mas o país não estava disposto a oferecer vistos de longa duração para latino-americanos, apenas aos chilenos.
RELAÇÕES BRASIL E CHILE APÓS O FIM DE ALLENDE
Os primeiros países a reconhecerem a Ditadura de Pinochet foram justamente as ditaduras do Brasil e do Uruguai. A ditadura chilena se espelhou em muitas ações que aconteceram alguns anos antes no Brasil, mas se pode argumentar que ela foi mais “efetiva”. Matou mais gente e mais rápido. Jamais prometeu voltar à democracia, evitando assim que a cada ato autocrático fosse constantemente cobrada por isso, como ocorreu com Castelo Branco. O governo de Pinochet mudou o sistema de leis, criminalizou partidos e censurou veículos de imprensa, sempre mais celeremente, do que no Brasil. Até em sua forma de questionar o direito que os EUA tinham de cobrar que os direitos humanos fossem respeitados na América Latina, o Chile foi mais veloz.
Mais um ponto de semelhança é a extensão política das depurações, chegando também à criminalização de setores da direita, mesmo aqueles que apoiaram os próprios golpes. No Brasil, isso se deu com a cassação de figuras como Carlos Lacerda e Adhemar de Barros. No Chile, era um pouco diferente, até porque figuras como o ex-presidente Eduardo Frei (pai) (Partido Demócrata Cristiano – PDC) não foram apoiadores da ruptura. A ditadura de Pinochet foi mais longe: fez o governo de Frei de vilão, o chamou de “cúmplice” das políticas socialistas de Allende e terminou promovendo o assassinato do próprio, por meios mais sutis.
Foi somente quase um mês depois do Golpe de 1973 que a ditadura de Pinochet finalmente aceitou que órgãos internacionais montassem uma “zona segura” para estrangeiros no país. Cerca de 10 mil pessoas foram para esse santuário, a maioria brasileiros, bolivianos e uruguaios. Seus países de origem nada falavam sobre a presença de seus cidadãos no local. Foram os jornais internacionais (especialmente norte-americanos) que recordaram que a ditadura chilena estaria rompendo leis internacionais de direitos humanos, caso enviasse essas pessoas a seus países de origem.
Além do já mencionado México, os destinos destes estrangeiros foram: Suíça, Suécia, Peru e Austrália, em maioria, além de números reduzidos para a Argentina e para o Canadá. Pinochet, vendo que os “indesejáveis” iam partir, não perdeu tempo em pedir que com essa demonstração chilena de “comedimento”, se retirassem as sanções internacionais a seu país, que estavam em vigência desde o governo Allende.
No entanto, era difícil convencer a opinião pública estadunidense a apoiar tais ideias. Já tinham visto com horror o que havia acontecido em lugares como o Brasil, não aceitando mais a legitimidade deste tipo de violência, mesmo que seus governos continuassem com as boas relações com estes países. Eram os anos de Jimmy Carter, um curto momento no qual um discurso de defesa dos direitos humanos ganhou a Casa Branca, para um pouco além da retórica, como foi com Kennedy – embora se questione a eficácia em frear as violências nas ditaduras latino-americanas. Ao fim, era um movimento mais político de fazer frente “moral” à União Soviética (URSS), enquanto se defendiam os interesses comerciais estadunidenses frente à nova competição de países como o Brasil. Na mesma cajadada, se batia em ambos os coelhos.
“NI OLVIDO, NI PERDÓN” – 50 ANOS DEPOIS
Ainda hoje, em um passeio pelo Cementerio General na capital chilena, se percebe duas coisas notáveis: as tumbas de Jara e de outras vítimas da ditadura são uma atração turística; as tumbas de figuras ligadas aos anos de Pinochet levam uma pichação em vermelho, com os escritos ni olvido, ni perdón (nem esquecimento, nem perdão) .
Os funcionários do cemitério já se acostumaram a perguntar para turistas se vieram “para ver Jara”. Sua tumba está muito bem tratada, com “presentes” e recordações de múltiplas nacionalidades, em sua maioria com símbolos ligados à esquerda. Em contraponto, o túmulo sofreu um atentado, no dia 28 de setembro de 2021, quando o cantor completaria 89 anos. A tumba já foi restaurada.
Há duas semanas (e há duas semanas dos 50 anos de sua provável data de morte), em 28 de agosto, a Suprema Corte Chilena condenou sete militares, hoje na reserva, pelo sequestro e assassinato de Jara, em conjunto a crimes semelhantes com outros militantes e perseguidos políticos. Com penas que iam de 8 a 25 anos de reclusão, foram condenados os militares Raúl Jofré, Edwin Dimter, Nelson Haase, Ernesto Bethke, Juan Jara e Hernán Chacón. Condenou-se também o militar Rolando Melo a 8 anos de prisão, por encobrir o ocorrido. Frente tal circunstância, Chacón, com 87 anos, suicidou-se antes de ser preso, segundo informe da própria polícia chilena. Nenhum dos outros militares condenados, até este momento, demonstrou remorso ou tentou justificar seus atos.
Em 13 de fevereiro deste ano, confirmou-se através de estudos de especialistas da McMaster University (Canadá) e da Københavns Universitet (Dinamarca) que o poeta e político chileno Pablo Neruda morreu envenenado, poucos dias depois de Pinochet tomar o Chile de assalto. Finalmente, Neruda se junta aos muitos mortos pelos militares chilenos. Os debates sobre essa possibilidade se estendiam desde 2011. O poeta chileno foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1971, o que não impediu que fosse eliminado como um “indesejável”. Sua família acabou por dar um velório de “cabeça erguida” ao literato, na sua própria casa em Santiago, que havia sido vilipendiada pelos golpistas no furor das violências daquele setembro.
Em 13 de abril de 1975, o jornalista e literato guatemalteco Victor Pereira descreveu em um artigo para o New York Times toda a violência que havia se tornado a lei do Chile, com a ascensão de Pinochet. Com o título “Law and Order in Chile”, numa crítica velada ao slogan de muitos republicanos, Pereira relatou que os chilenos tinham consciência de que eram vítimas desse conjunto de influências nefastas. Seu projeto de revolução democrática não cabia naquela época de paranoias e violências em nome da “influência internacional” de distintos projetos.
Com o espelho que deixamos entre Brasil e Chile, a ideia jamais pode ser a de relativizar as violências brasileiras. O Brasil, naquela época, foi um espelho muito utilizado por Pinochet, para observar o que não fazer e o que fazer. Aquela experiência foi a mais exitosa para os interesses estadunidenses, com a política mais “delicada” de colocar o dedo na balança, do governo da vez. Mas, também foi a experiência que soube se construir à imagem e semelhança de forma mais “refinada”, em relação a seus vizinhos militares. Pinochet foi extremamente útil para “sumir com a Cuba” que estava próxima demais do Brasil, o que agradou os militares daqui. Mas, Pinochet também foi um Castelo Branco eterno, no sentido de alinhamento completo aos EUA.
Isso ocorre porque não havia construção de uma base para aquela ditadura que não passasse justamente pelas empresas estadunidenses, algo que Kennedy e Johnson não lograram fazer no Brasil. A longeva ditadura chilena não serviu para o interesse imperialista brasileiro, tornando-se um problema também ao país nessas questões. O Brasil neste momento passou a conseguir se juntar até com a rival Argentina, desde a época militar, até com Raúl Alfonsín (Radical), o primeiro presidente civil do país depois do fim da ditadura de 1976 a 1986. Isso ocorreu nas questões de protecionismo e defesa econômica, e posteriormente de renegociação de dívidas externas abusivas, que uniram as duas “potências rivais” do continente. Mas, nessa briga, o Chile se manteve um fiel aliado de Nixon, e posteriormente de Ronald Reagan.
Para além da anomalia que foi Carter, Reagan manteve uma de suas políticas, a de “fomentar aberturas” no Brasil e na Argentina. Não tanto no Chile, e percebe-se o motivo. Na Argentina, o plano não deu muito certo, porque se esperava de Alfonsín uma posição mais “submissa”. No Brasil, infelizmente pode-se dizer que o governo de José Sarney foi bastante mais positivo aos EUA do que os governos de Geisel e João Figueiredo. O Brasil, após o final da ditadura, entrou em uma política de caráter mais voltado ao neoliberalismo, de forma praticamente ininterrupta, com uma política externa mais tímida e menos altiva, de 1985 até 2003. A partir daí, os cenários e as políticas são distintos. Não se retornaria ao passado, mas se rompe uma linearidade dos anos anteriores.
Voltando ao Chile: Pinochet ficou quase 17 anos no poder, terminando o seu “reinado” depois que as ditaduras argentina e brasileira já haviam acabado. Quando o Palácio de La Moneda finalmente viu uma mudança, ela veio a partir de um erro do passado do general. Isso ocorreu porque na Constituição que foi outorgada pela ditadura em 1980, acrescentou-se uma espécie de mecanismo para o fim do próprio regime. Em nome de tentar “resgatar” seu poder e manter-se presidente mais quase uma década, Pinochet chamou um plebiscito e jamais ponderou que o perderia. Mas o perdeu, por cerca de 800 mil votos, de um total de 7 milhões. Isso ocorreu em 1988, quando já havia um George Bush (pai) na Casa Branca, eram os últimos dias de Sarney na presidência do Brasil e o início dos anos de Carlos Menem (Justicialista) na Argentina.
O Chile saiu da sua ditadura com menos apoio internacional do que o que se viu nos casos do Brasil e da Argentina. O país encontrou a democracia quase que somente por movimentações internas. Todavia, as heranças pinochetistas seguem vivas, mesmo com os esforços dos governos posteriores, especialmente o de Michelle Bachelet, em curar essa ferida com o fomento à memória nacional.
Até hoje é uma sociedade rachada. O presidente socialista Gabriel Boric não conseguiu reformar aquela Constituição de 1980, e teve que lidar com os riscos de criar uma nova Carga Magna ainda mais conservadora. Este processo segue em andamento e a herança da ditadura militar aparece nele.
Daniel Azevedo Muñoz é professor e jornalista, mestre e doutorando em História Contemporânea pela Universidad Autónoma de Madrid. Integra o grupo de pesquisa em Jornalismo Popular & Alternativo, da Universidade de São Paulo.
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