quarta-feira, 13 de março de 2024

Deus, um delírio ( gota 6 )

RICHARD DAWKINS

Deus, um delírio
Tradução Fernanda Ravagnani
COMPANHIA DAS LETRAS

3. Argumentos para a existência de Deus

Não deveria haver lugar em nossa instituição para uma cadeira de teologia.
Thomas Jefferson

Argumentos pela existência de Deus vêm sendo codificados há séculos pelos teólogos, e suplementados por outras pessoas, entre elas fornecedores de um "senso comum" equivocado.

AS "PROVAS" DE TOMÁS DE AQUINO

As cinco "provas" declaradas por Tomás de Aquino no século XIII não provam nada, e é fácil — embora eu hesite em dizê-lo, dada sua eminência — mostrar como são vazias. As três primeiras são apenas modos diferentes de dizer a mesma coisa, e podem ser analisadas juntas. Todas envolvem uma regressão infinita — a resposta a uma pergunta suscita uma pergunta anterior, e assim ad infinitum.

1 O Motor que Não é Movido. Nada se move sem um motor anterior. Isso nos leva a uma regressão, da qual a única escapatória é Deus. Alguma coisa teve de fazer a primeira se mover, e a essa alguma coisa chamamos Deus. 

2 A Causa sem Causa. Nada é causado por si só. Todo efeito tem uma causa anterior, e novamente somos forçados à regressão. Ela só é concluída por uma causa primeira, a que chamamos Deus. 

3 O Argumento Cosmológico. Deve ter havido uma época em que não existia nada de físico. Mas, como as coisas físicas existem hoje, tem de ter havido algo de não físico para provocar sua existência, e a esse algo chamamos Deus.

Esses três argumentos baseiam-se na idéia da regressão e invocam Deus para encerrá-la. Eles assumem, sem nenhuma justificativa, que Deus é imune à regressão. Mesmo que nos dermos ao duvidoso luxo de conjurar arbitrariamente uma terminação para a regressão infinita e lhe dermos um nome, não há absolutamente nenhum motivo para dar a essa terminação as propriedades normalmente atribuídas a Deus: onipotência, onisciência, bondade, criatividade de design, sem falar de atributos humanos como atender a preces, perdoar pecados e ler os pensamentos mais íntimos. Por falar nisso, aos especialistas em lógica não escapou que a onisciência e a onipotência são incompatíveis entre si. Se Deus é onisciente, ele já tem de saber que vai intervir para mudar o curso da história usando sua onipotência. Mas isso significa que ele não pode mudar de ideia sobre a intervenção, o que significa que ele não é onipotente. Karen Owens captou esse divertido paradoxo em um verso igualmente cativante: 

Pode Deus onisciente, que 
Sabe o futuro, encontrar 
A onipotência de 
Mudar Sua ideia futura?.*

Para retomar a regressão infinita e a ineficácia de invocar Deus para encerrá-la, seria mais parcimonioso conjurar, digamos, a "singularidade do big bang" ou algum outro conceito físico ainda desconhecido. Chamar isso de Deus é na melhor das hipóteses inútil e, na pior, perniciosamente enganador. A Receita Absurda para fazer Filés Esfarelosos,** de Edward Lear, convida-nos a "tomar algumas tiras de carne e, depois de cortá-las nos menores pedaços possíveis, prosseguir cortando-os ainda menores, oito ou quem sabe nove vezes".*** Algumas regressões chegam, sim, a uma terminação. Os cientistas costumavam ficar imaginan-

* "Can omniscient God, who/ Knows the future, find/ The omnipotence to/ Change His future mind?" (N. T.) 
** Nonsense Recipe for Crumboblious Cutlets (N. T.) 
*** "Procure some strips of beef, and having cut them into the smallest possible pieces, proceed to cut them still smaller, eight ou perhaps nine times." (N. T.)

do o que aconteceria se se pudesse dissecar, digamos, o ouro nas menores partículas possíveis. Por que não se poderia cortar uma dessas partículas pela metade e produzir um farelo ainda menor de ouro? A regressão nesse caso é encerrada de maneira decisiva pelo átomo. A menor partícula possível de ouro é um núcleo que consista de exatamente 79 prótons e um número ligeiramente maior de nêutrons, acompanhado de um enxame de 79 elétrons. Se se "cortar" o ouro além do nível de um único átomo, qualquer coisa que se obtiver já não será mais ouro. O átomo fornece uma terminação natural ao tipo de regressão dos Filés Esfarelosos. Não está de maneira nenhuma claro que Deus seja uma terminação natural para a regressão de Tomás de Aquino. Isso para dizer o menos, como veremos adiante. Avancemos na lista de Tomás de Aquino:

4 O Argumento de Grau. Percebemos que as coisas do mundo diferem entre si. Há graus de, digamos, bondade ou perfeição. Mas só julgamos esses graus se em comparação a um máximo. Os seres humanos podem ser tanto bons quanto ruins, portanto o máximo da bondade não pode estar em nós. Tem de haver, portanto, algum outro máximo para estabelecer o padrão da perfeição, e a esse máximo chamamos Deus.

Isso é um argumento? Também seria possível dizer: as pessoas variam quanto ao fedor, mas só podemos fazer a comparação pela referência a um máximo perfeito de fedor concebível. Tem de haver, portanto, um fedorento inigualável, e a ele chamamos Deus. Ou substitua qualquer dimensão de comparação que quiser, derivando uma conclusão igualmente idiota.

5 O Argumento Teleológico, ou O Argumento do Design. As coisas do mundo, especialmente as coisas vivas, parecem ter sido projetadas. Nada que conhecemos parece ter sido projetado a menos que tenha sido projetado. Tem de haver, portanto, um projetis-ta, e a ele chamamos Deus.* Tomás de Aquino usou a analogia de uma flecha avançando para o alvo, mas um míssil antiaéreo moderno guiado a calor teria se adequado melhor a seus propósitos.

* É impossível não lembrar do silogismo imortal que foi infiltrado numa prova euclidiana por um colega, quando estudávamos geometria juntos: "O triângulo abc parece isósceles. Portanto...".

O argumento do design é o único que ainda é regularmente usado hoje em dia, e ainda soa para muita gente como o argumento determinante do nocaute. O jovem Darwin ficou impressionado com ele quando, estudante de graduação em Cambridge, o leu na Teologia natural de William Paley. Infelizmente para Paley, o Darwin maduro virou a mesa. Provavelmente jamais houve uma derrubada tão devastadora de uma crença popular através de um raciocínio inteligente quanto a destruição do argumento do design perpetrada por Charles Darwin. Foi totalmente inesperado. Graças a Darwin, já não é verdade dizer que as coisas só podem parecer projetadas se tiverem sido projetadas. A evolução pela seleção natural produz um excelente simulacro de design, acumulando níveis incríveis de complexidade e elegância. E entre essas eminências do pseudodesign estão os sistemas nervosos que — entre seus feitos mais modestos — manifestam comportamentos de busca a um alvo que, mesmo num inseto minúsculo, se parecem ainda mais com um míssil sofisticado guiado a calor do que com uma simples flecha indo para o alvo. Retornarei ao argumento do design no capítulo 4.


O ARGUMENTO ONTOLÓGICO E OUTROS ARGUMENTOS A PRIORI

Os argumentos para a existência de Deus encaixam-se em duas categorias principais, os a priori e os a posteriori. Os cinco de Tomás de Aquino são argumentos a posteriori, baseando-se em inspeções do mundo. O mais famoso dos argumentos a priori, aqueles que se baseiam na pura racionalização teórica, é o argumento ontológico, proposto por santo Anselmo de Canterbury em 1078 e reeditado de formas diferentes por vários filósofos desde então. Um aspecto bizarro do argumento de Anselmo é que ele não se dirigia originalmente aos seres humanos, e sim ao próprio Deus, na forma de uma oração (e você que achava que uma entidade capaz de ouvir uma oração não precisaria ser convencida da sua própria existência).

É possível conceber, disse Anselmo, um ser sobre o qual nada de melhor possa ser concebido. Até mesmo um ateu consegue conceber um ser tão superlativo, embora negue sua existência no mundo real. Mas, prossegue o argumento, um ser que não existe no mundo real é, exatamente por esse fato, menos que perfeito. Portanto temos uma contradição e, presto, Deus existe!

Deixe-me traduzir esse argumento infantil para a linguagem apropriada, a linguagem do parquinho:

"Aposto com você que consigo provar que Deus existe." 
"Aposto que não consegue."
"Tudo bem, então. Imagine a coisa mais perfeita, perfeita, perfeita possível."
"Tá bom, e agora?"
"Agora, essa coisa perfeita, perfeita, perfeita é de verdade? Ela existe?"
"Não, está só na minha cabeça."
"Mas se ela fosse de verdade ela seria ainda mais perfeita, porque uma coisa perfeita perfeita de verdade teria que ser melhor que uma coisa imaginária boba. Então provei que Deus existe. Nananananã-ã. Os ateus são uns insensatos."

 Fiz meu sabichão infantil escolher a palavra "insensatos" de propósito. O próprio Anselmo citou o primeiro verso do Salmo 14, "Diz o insensato em seu coração: Deus não existe", e teve a ousadia de usar a palavra "insensato" (no latim insipiens) para seu ateu hipotético:

Assim, até mesmo o insensato está convencido de que existe algo no entendimento, pelo menos, maior que o qual nada pode ser concebido. Pois, quando ouve isso, ele entende. E qualquer coisa que seja entendida existe no entendimento. E seguramente aquilo maior que o qual nada pode ser concebido não pode existir apenas no entendimento. Pois suponha que ele existe apenas no entendimento: então se pode conceber que ele exista na realidade; que é maior.

A simples ideia de que conclusões grandiloquentes possam ser derivadas de tamanhos truques de logomaquia já me é uma ofensa estética, portanto tenho de tomar cuidado para não sair brandindo palavras como "insensato". Bertrand Russell (nada insensato) disse: "É mais fácil sentir a convicção de que [o argumento ontológico] deve ser falacioso que localizar onde exata-mente está a falácia". O próprio Russell, quando jovem, foi brevemente convencido por ele:

Lembro o momento preciso, um dia em 1894, quando eu caminhava pela Trinity Lane e vi num clarão (ou achei ter visto) que o argumento ontológico é válido. Tinha saído para comprar uma lata de fumo; no caminho da volta, de repente a joguei para o alto e exclamei, ao pegá-la: "Uau, o argumento ontológico é real".

Por que, fico pensando, ele não disse alguma coisa como: "Uau, o argumento ontológico parece ser plausível. Mas não é bom demais para ser verdade que uma verdade grandiosa sobre o cosmos venha de um mero jogo de palavras? Melhor eu pôr mãos à obra para solucionar o que talvez seja um paradoxo como o de Zeno". Os gregos tiveram grandes dificuldades para engolir a "prova" de Zeno de que Aquiles jamais alcançaria a tartaruga.* Mas eles tiveram o bom senso de não concluir que portanto Aquiles realmente não conseguiria alcançar a tartaruga. Em vez disso, chamaram aquilo de paradoxo e esperaram que gerações posteriores de matemáticos o explicassem. O próprio Russell, é claro, era tão qualificado como qualquer outra pessoa para saber por que não se devem jogar latas de fumo para cima comemorando o fato de Aquiles ser incapaz de alcançar a tartaruga. Por que ele não usou a mesma cautela com santo Anselmo? Suspeito que ele fosse um ateu exageradamente justo, disposto demais a ser desiludido se a lógica parecesse assim exigir.** Ou talvez a resposta esteja em uma coisa que o próprio Russell escreveu em 1946, muito tempo depois de ter descoberto o argumento ontológico:

* O paradoxo de Zeno é conhecido demais para que seus detalhes sejam propagandeados por uma nota de rodapé. Aquiles corre dez vezes mais rápido que a tartaruga, portanto dá ao animal, digamos, uma vantagem de cem metros. Aquiles corre cem metros, e a tartaruga está agora dez metros à frente. Aquiles corre os dez metros e a tartaruga está agora um metro à frente. Aquiles corre um metro, e a tartaruga ainda está dez centímetros à frente... e assim por diante ad infinitum, de modo que Aquiles jamais alcança a tartaruga.

** Talvez estejamos observando algo semelhante hoje em dia nas trombeteadas tergiversações do filósofo Antony Flew, que anunciou, já idoso, ter sido convertido à crença em algum tipo de divindade (desencadeando um frenesi de repetições em toda a internet). Por outro lado, Russell era um grande filósofo. Russell ganhou o prémio Nobel. Talvez a suposta conversão de Flew seja recompensada com o prémio Templeton. Um primeiro passo nessa direção é sua decisão ignominiosa de aceitar, em 2006, o "prémio Phillip E. Johnson para a Liberdade e a Verdade". O primeiro ganhador do prémio Phillip E. Johnson foi Phillip E. Johnson, advogado a quem se atribui a fundação da "estratégia de disseminação" do design inteligente. Flew será o segundo ganhador. A universidade que entrega o prémio é a biola, o Instituto da Bíblia de Los Angeles. Não dá para não se perguntar se Flew não percebe que está sendo usado. Veja Victor Stenger, "Flew's flawed science", Free Inquiry 25, 2/2005, pp. 17-8; www.secularhuma-nism.org/index.php?section=library8q>age=stenger_25_2.

A pergunta verdadeira é: Existe alguma coisa sobre a qual possamos pensar e que, pelo simples fato de podermos pensar nela, tem sua existência demonstrada fora de nosso pensamento? Todo filósofo gostaria de dizer que sim, porque o trabalho do filósofo é descobrir coisas sobre o mundo pelo pensamento, mais que pela observação. Se a resposta certa é sim, há uma ponte entre o pensamento puro e as coisas. Se não, não.

Minha sensação, pelo contrário, teria sido uma desconfiança automática e profunda para com qualquer linha de raciocínio que chegasse a uma conclusão tão significativa sem utilizar um único dado proveniente do mundo real. Talvez isso só indique que sou mais cientista que filósofo. Os filósofos, no decorrer dos séculos, levaram mesmo o argumento teológico a sério, tanto contra ele como a favor. O filósofo ateu J. L. Mackie oferece uma discussão especialmente clara em The mirade of theism. Minha intenção é de elogio quando digo que quase dá para definir um filósofo como alguém que não aceita o senso comum como resposta.

As refutações mais definitivas do argumento ontológico costumam ser atribuídas aos filósofos David Hume (1711-76) e Immanuel Kant (1724-1804). Kant identificou a carta escondida na manga de Anselmo na frágil pressuposição de que a "existência" é mais "perfeita" que a inexistência. O filósofo americano Norman Malcolm explicou assim: "A doutrina de que a existência é a perfeição é incrivelmente excêntrica. Faz sentido e é verdade dizer que minha futura casa será melhor se tiver calefação do que se não tiver; mas o que poderia significar dizer que ela será uma casa melhor se existir, mais que.se não existir?".46 Outro filósofo, o australiano Douglas Gasking, demonstrou sua tese com a "prova" irônica de que Deus não existe (Gaunilo, contemporâneo de Anselmo, havia sugerido um reductio mais ou menos parecido).

1 A criação do mundo é a realização mais maravilhosa que se pode imaginar. 

2 O mérito de uma realização é o produto de a) sua qualidade intrínseca e b) da capacidade de seu criador. 

3 Quanto maior a incapacidade (ou desvantagem) do criador, mais impressionante é a realização. 

4 A desvantagem mais formidável para um criador seria a inexistência.

5 Portanto, se supusermos que o universo é o produto de um criador existente, podemos conceber um ser maior — quer dizer, aquele que criou todas as coisas sendo inexistente. 

6 Um Deus existente, portanto, não seria um ser maior que o qual não se pode conceber outro ser, porque um criador ainda mais formidável e incrível seria um Deus que não existisse. 

Portanto: 

7 Deus não existe.

É desnecessário dizer que Gasking não provou de verdade que Deus não existe. Com a mesma moeda, Anselmo também não provou que ele existe. A única diferença é que Gasking estava sendo engraçado de propósito. Ele tinha consciência de que a existência ou a inexistência de Deus é uma pergunta grande demais para ser decidida pela "prestidigitação dialética". E não acho que o uso frágil da existência como indicador de perfeição seja o maior problema do argumento. Esqueci os detalhes, mas uma vez causei revolta numa reunião de teólogos e filósofos por ter adaptado o argumento ontológico de forma que ele provasse que os porcos sabem voar. Eles se sentiram impelidos a recorrer à Lógica Modal para provar que eu estava errado.

O argumento ontológico, como todos os argumentos a priori para a existência de Deus, faz-me lembrar o velho que, em Contraponto, de Aldous Huxley, descobriu uma prova matemática da existência de Deus:

Sabe a fórmula m sobre nada é igual ao infinito, sendo m qualquer número positivo? Bem, por que não reduzir a equação a uma forma mais simples, multiplicando os dois lados por nada? Nesse caso teremos m é igual a infinito vezes nada. Quer dizer, um número positivo é o produto de zero e infinito. Isso não demonstra a criação do universo por um poder infinito, a partir do nada? Não demonstra?

Infelizmente, a famosa história de Diderot, o grande enciclopedista do Iluminismo, e Euler, o matemático suíço, é duvidosa. De acordo com a lenda, Catarina, a Grande, promoveu um debate entre os dois, no qual o pio Euler lançou ao ateu Diderot o desafio: "Monsieur, (a + bn )In = x, portanto Deus existe.

Rebata!".

O ponto essencial da lenda é que Diderot não era matemático e, portanto, teve de se retirar, intimidado. Contudo, como B. H. Brown salientou no American Mathematical Monthly, em 1942, Diderot era realmente um bom matemático, e teria sido improvável que sucumbisse ao que pode ser chamado de Argumento para Cegar Usando a Ciência (nesse caso, a matemática). David Mills, em Atheist universe, transcreve uma entrevista de rádio que concedeu a um representante religioso, que invocou a lei da conservação da massa-energia numa tentativa inútil e estranha de cegar usando a ciência: "Como somos todos compostos de matéria e energia, aquele princípio científico não empresta credibilidade à crença na vida eterna?" Mills respondeu com mais paciência e mais educação do que eu teria respondido, porque o que o entrevistador estava dizendo, traduzido, não passava de: "Quando morremos, nenhum dos átomos de nosso corpo (e nenhuma energia) se perde. Portanto, somos imortais".

Nem eu, em minha longa experiência, tinha encontrado um pensamento positivo tão bobo. Já cruzei, no entanto, com muitas das maravilhosas "provas" reunidas em http://www.godlessgeeks.com/LiNKS/GodProof.htm, uma lista engraçadíssima de "Mais de Trezentas Provas da Existência de Deus". Leia uma hilária meia dúzia, começando com a prova n2 36.

36 Argumento da Devastação Incompleta: Um avião caiu matando 143 passageiros e tripulantes. Mas uma criança sobreviveu só com queimaduras de terceiro grau. Portanto, Deus existe. 

37 Argumento dos Mundos Possíveis: Se as coisas tivessem sido diferentes, as coisas seriam diferentes. Isso seria ruim. Portanto, Deus existe.

38 Argumento do Puro Desejo: Creio mesmo em Deus! Creio mesmo em Deus! Creio, creio, creio, creio. Creio mesmo em Deus! Portanto, Deus existe. 

39 Argumento da Descrença: A maioria da população do mundo é de pessoas que não acreditam em Deus. Isso era exata-mente o que Satã queria. Portanto, Deus existe.

40 Argumento da Experiência Após a Morte: A pessoa X morreu ateia. Hoje ela percebe seu erro. Portanto, Deus existe. 41 Argumento da Chantagem Emocional: Deus o ama. Como você pode ser tão insensível e não acreditar nele? Portanto, Deus existe.

O ARGUMENTO DA BELEZA

 Outra personagem do romance de Aldous Huxley mencionado há pouco provou a existência de Deus tocando o Quarteto de cordas nº 15 em lá menor de Beethoven ("heiligerDankgesang") num gramofone. O argumento pode parecer pouco convincente, mas ele realmente representa uma vertente bem popular. Já desisti de contar o número de vezes que recebo o questionamento mais ou menos truculento: "Como então você explica Shakespeare?" (Troque a gosto por Schubert, Michelangelo etc.) O argumento é tão familiar que não preciso documentá-lo mais. Mas a lógica por trás dele nunca é esclarecida, e quanto mais se pensa sobre ele mais vazio se percebe que ele é. É óbvio que os últimos quartetos de Beethoven são sublimes. Assim como os sonetos de Shakespeare. São sublimes se Deus existe e são sublimes se não existe. Eles não provam a existência de Deus; eles provam a existência de Beethoven e Shakespeare. Atribui-se a um grande maestro a seguinte declaração: "Se você tem Mozart para ouvir, para que precisa de Deus?".

Uma vez fui o convidado da semana num programa de rádio britânico chamado Desert Island Discs. Você tem de escolher os oito discos que levaria se fosse para uma ilha deserta. Entre meus escolhidos estava "Mache dich, mein Herze, rein", da Paixão segundo são Mateus, de Bach. O entrevistador não conseguia entender como eu podia escolher música religiosa sem ser religioso. Também dá para perguntar: como você pode gostar de O morro dos ventos uivantes sabendo perfeitamente que Cathy e Heathcliff jamais existiram de verdade?

Mas há mais um ponto que eu deveria ter reforçado, e que precisa ser reforçado sempre que a religião recebe o crédito, digamos, pela Capela Sistina ou pela Anunciação de Rafael. Até mesmo grandes artistas têm de ganhar a vida, e eles aceitam encomendas onde há encomendas. Não tenho nenhum motivo para duvidar que Rafael e Michelangelo tenham sido cristãos — era basicamente a única opção no tempo deles —, mas esse fato é quase incidental. Sua enorme riqueza havia transformado a Igreja no patrono dominante das artes. Se a história tivesse sido diferente, e Michelangelo tivesse sido contratado para pintar o teto de um Museu de Ciência gigante, ele não poderia ter produzido uma coisa no mínimo tão inspiradora quanto a Capela Sistina? Como é triste o fato de que jamais ouviremos a Sinfonia mesozóica, de Beethoven, ou a ópera O universo em expansão, de Mozart. E que pena sermos privados do Oratório da evolução-, de Haydn — mas isso não nos impede de apreciar sua Criação. Para abordar o argumento pelo outro lado, e se, como me sugere minha mulher, Shakespeare tivesse sido obrigado a trabalhar em encomendas da Igreja? Certamente teríamos perdido Hamlet, Rei Lear e Mac-beth. E o que teríamos ganhado em troca? Os tecidos de que são feitos os sonhos? Vá sonhando. 

Se existe um argumento lógico que ligue a existência de grandes obras de arte à existência de Deus, ele não é esclarecido por seus proponentes. Simplesmente se assume que ele é evidente por si só, coisa que certamente não é. Talvez ele deva ser encarado como mais uma versão para o argumento do design: o cérebro musical de Schubert é uma maravilha da improbabilidade, mais ainda que o olho dos vertebrados. Ou, para falar de modo mais desdenhoso, talvez seja uma espécie de inveja da genialidade. Como outro ser humano se atreve a fazer música/poesia/arte tão bela e eu não? Deve ter sido Deus quem fez.

O ARGUMENTO DA "EXPERIÊNCIA" PESSOAL 

Um dos meus colegas de faculdade mais maduros e mais inteligentes, que era profundamente religioso, foi acampar nas ilhas escocesas. No meio da noite ele e a namorada foram despertados em sua barraca pela voz do diabo — Satã em pessoa; não havia dúvida possível: a voz era diabólica em todos os sentidos. Meu amigo jamais esqueceria aquela experiência terrível, e ela foi um dos fatores que mais tarde o levaram a ser ordenado. Jovem, fiquei impressionado com sua história, e a contei numa reunião de zoólogos que descansavam no Rose and Crown Inn, em Oxford. Dois deles, por acaso, eram ornitólogos experientes, e caíram na gargalhada. "Pardela-sombria!", gritaram em coro, rindo. Um deles acrescentou que os gritos e cacarejes da espécie garantiram a ela, em várias partes do mundo e em várias línguas, o apelido local de "pássaro do diabo".

Muita gente acredita em Deus porque acredita ter tido uma visão dele — ou de um anjo ou de uma virgem de azul — com seus próprios olhos. Ou que ele fala com eles dentro de sua cabeça. Esse argumento da experiência pessoal é o mais convincente para aqueles que afirmam ter passado por uma. Mas é o menos convincente para todo o resto, e para qualquer pessoa que conheça psicologia.

Você diz que sentiu Deus diretamente? Bem, tem gente que sentiu um elefante cor-de-rosa, mas isso provavelmente não vai impressioná-lo. Peter Sutcliffe, o Estripador de Yorkshire, ouvia distintamente a voz de Jesus dizendolhe para matar mulheres, e foi condenado à prisão perpétua. George W. Bush afirma que Deus disse a ele que invadisse o Iraque (é uma pena que Deus não tenha lhe concedido a revelação de que não havia armas de destruição em massa). Pacientes de sanatórios acham que são Napoleão ou Charlie Chaplin, ou que o mundo inteiro conspira contra eles, ou que podem transmitir seus pensamentos para a cabeça de outras pessoas. Divertimo-nos com elas, mas não levamos a sério suas crenças internamente reveladas, principalmente porque pouca gente tem as mesmas crenças. As experiências religiosas só são diferentes no fato de que as pessoas que alegam tê-las tido são muito numerosas. Sam Harris não estava sendo cínico em excesso quando escreveu, em The end of faith [Fim da fé]:

Temos nomes para as pessoas que têm muitas crenças para as quais não há justificativa racional. Quando suas crenças são extremamente comuns, nós as chamamos de "religiosas"; nos outros casos, elas provavelmente serão chamadas de "loucas", "psicóticas" ou "delirantes" [...] Claramente, a sanidade está nos números. E, mesmo assim, é apenas um acidente da história o fato de ser considerado normal em nossa sociedade acreditar que o Criador do universo é capaz de ouvir nossos pensamentos, enquanto é uma demonstração de doença mental acreditar que ele está se comunicando com você fazendo a chuva bater em código Morse na janela de seu quarto. Assim, se as pessoas religiosas não são generalizadamente loucas, suas principais crenças absolutamente o são.

Retornarei ao assunto das alucinações no capítulo 10. 

O cérebro humano executa um avançadíssimo software de simulação. Nossos olhos não apresentam ao cérebro uma fotografia fiel do que há por aí, ou um filme preciso do que está acontecendo ao longo do tempo. Nosso cérebro constrói um modelo que é constantemente atualizado: atualizado por pulsos codificados que circulam pelo nervo óptico, mas de toda forma construído. As ilusões de óptica são um forte lembrete desse fato.47 Uma importante classe de ilusões, das quais o Cubo de Necker é um exemplo, ocorre porque os dados sensoriais recebidos pelo cérebro são compatíveis com dois modelos alternativos de realidade. A figura para a qual olhamos parece, quase literalmente, virar uma outra coisa.

O programa de simulação do cérebro é especialmente habilitado para construir rostos e vozes. Tenho no peitoril da janela uma máscara de plástico de Einstein. Quando vista de frente, ela parece um rosto sólido, o que não é de surpreender. O surpreendente é que, quando vista de trás — do lado oco —, ela também parece um rosto sólido, e a percepção que temos dela é mesmo muito estranha. Conforme o observador se move em torno dele, o rosto parece segui-lo — e não no sentido frágil e pouco convincente daquela história de que os olhos da Mona Lisa seguem o observador. A máscara oca parece mesmo, mesmo, estar se mexendo. Quem nunca viu a ilusão perde o fôlego, impressionado. O mais estranho é que, se a máscara for colocada sobre uma mesa giratória que rode devagar, ela parece virar na direção correta quando se olha para o lado sólido, mas na direção oposta quando o lado oco aparece. O resultado é que, quando se olha para a transição de um lado para o outro, o lado que está chegando parece "comer" o lado que está indo embora. É uma ilusão incrível, vale a pena se meter em encrencas só para vê-la. Às vezes dá para chegar surpreendentemente perto do rosto oco sem ver que ele é "mesmo" oco. Quando você consegue enxergar, novamente há uma virada rápida, que pode ser reversível.

Por que isso acontece? Não há truque na construção da máscara. Qualquer máscara oca fará a mesma coisa. O truque está todo no cérebro do observador. O programa de simulação interno recebe dados que indicam a presença de um rosto, talvez nada mais que um par de olhos, um nariz e uma boca nos lugares mais ou menos certos. Depois de receber essas indicações básicas, o cérebro faz o resto. O programa de simulação de rostos entra em ação e constrói um modelo plenamente sólido de rosto, apesar de a realidade apresentada aos olhos ser uma máscara oca. A ilusão da rotação para a direção errada acontece porque (é bem difícil, mas se você pensar bastante sobre isso vai confirmá-lo) a rotação reversa é o único modo de interpretar os dados ópticos quando uma máscara oca está rodando, se ela é percebida como uma máscara sólida.48 É como a ilusão de uma imagem rotativa de radar, daquelas que às vezes se vêem em aeroportos. Até que o cérebro mude para o modelo correto de radar, um modelo in-correto é enxergado rodando na direção errada, mas de um jeito estranhamente torto.

Digo tudo isso só para demonstrar o poder formidável do programa de simulação do cérebro. Ele é bem capaz de construir "visões" e "visitas" com enorme poder de veracidade. Simular um fantasma ou um anjo ou a Virgem Maria seria brincadeira de criança para um software tão sofisticado. E a mesma coisa acontece com a audição. Quando ouvimos um som, ele não é fielmente transportado pelo nervo auditivo e entregue ao cérebro como se por um Bang & Olufsen de alta-fidelidade. Assim como na visão, o cérebro constrói um modelo de som, baseado nos dados continuamente atualizados do nervo auditivo. É por isso que ouvimos o trompete como uma única nota, e não como a composição da harmonia de tons puros que lhe dá seu som metalizado. Um clarinete que toque a mesma nota soa "amadeirado", e um oboé soa mais "caniçado", por causa dos equilíbrios diferentes na harmonia. Se você manipular com cuidado um sintetizador de som para mostrar as harmonias independentes uma a uma, o cérebro as ouvirá como uma combinação de tons puros por um breve período, até que seu programa de simulação "capte" a coisa, e a partir de então ouve-se apenas uma única nota de puro trompete, ou oboé, ou o que quer que seja. As vogais e as consoantes do discurso são construídas no cérebro da mesma maneira, assim como, num nível superior, os fonemas e as palavras. Uma vez, quando era criança, ouvi um fantasma: uma voz masculina murmurando, como se recitando ou rezando. Quase conseguia distinguir as palavras, mas não chegava a isso, e elas pareciam ter um timbre sério e solene. Tinham me contado histórias sobre os esconderijos de padres nas casas antigas, e eu estava um pouco assustado. Conforme me aproximei, o som ficou mais alto, e então, de repente, ele "virou" dentro da minha cabeça. Eu já estava perto o suficiente para discernir do que realmente se tratava. O vento, soprando pelo buraco da fechadura, estava criando sons que o programa de simulação do meu cérebro havia usado para construir um modelo de discurso masculino, de tom solene. Se eu fosse uma criança mais impressionável, é possível que tivesse "ouvido" não apenas um discurso ininteligível, mas palavras específicas e até frases. E, se eu fosse ao mesmo tempo impressionável e de formação religiosa, imagino que palavras o vento poderia ter dito. 

Em outra ocasião, quando eu tinha mais ou menos a mesma idade, vi um rosto gigantesco e redondo me encarando, com uma malevolência indescritível, em uma janela de uma casa como qualquer outra de uma cidadezinha litorânea. Trémulo, aproximei-me até estar perto o suficiente para ver o que o rosto era de verdade: apenas um padrão que lembrava vagamente um rosto, criado pela posição das cortinas. O rosto em si, e seu ar malévolo, tinha sido construído em meu cérebro apavorado. No dia 11 de setembro de 2001, pessoas crédulas acreditaram ter visto o rosto de Satã na fumaça que saía das torres gêmeas: uma superstição alimentada por uma fotografia que foi publicada na internet, com grande circulação. 

O cérebro humano é muito bom em construir modelos. Quando estamos dormindo, isso se chama sonhar; quando estamos acordados, chamamos de imaginação, ou, quando é real demais, de alucinação. Como mostrará o capítulo 10, crianças que têm "amigos imaginários" muitas vezes os vêem claramente, exatamente como se eles fossem reais. Se somos crédulos, não reconhecemos a alucinação ou o sonhar acordado e alegamos ter visto ou ouvido um fantasma; ou um anjo; ou Deus; ou — especialmente se formos jovens, mulheres e católicas — a Virgem Maria. Visões e manifestações como essas de certo não compõem bases sólidas para acreditar que fantasmas ou anjos, deuses ou virgens realmente estão ali.

Pelo jeito, as visões em massa, como os registros de que 70 mil peregrinos em Fátima, Portugal, em 1917 viram o sol "desprender-se dos céus e despencar sobre a multidão",49 são bem mais difíceis de minimizar. Não é fácil explicar como 70 mil pessoas podem ter a mesma alucinação. Mas é ainda mais difícil aceitar que aquilo tenha realmente acontecido sem que o resto do mundo, fora de Fátima, tenha visto — e não só tenha visto, mas não tenha achado que se tratava da destruição catastrófica do sistema solar, incluindo forças de aceleração suficientes para lançar todo mundo no espaço. É impossível não lembrar o eficaz teste de David Hume para um milagre: "Nenhum depoimento é suficiente para estabelecer um milagre, a menos que o depoimento seja de tal natureza que sua falsidade seria mais milagrosa que o fato que ele pretende estabelecer".

Pode parecer improvável que 70 mil pessoas possam ter o mesmo delírio simultaneamente, ou que tenham conspirado simultaneamente para uma mentira em massa. Ou que a história esteja errada por registrar que 70 mil pessoas alegaram ter visto o sol dançar. Ou que todas elas tenham visto simultaneamente uma miragem (elas haviam sido convencidas a olhar para o sol, coisa que não pode ter feito muito bem para sua visão). Mas qualquer uma dessas aparentes improbabilidades é bem mais provável que a alternativa: a de que a Terra de repente tenha sido tirada de sua órbita, e o sistema solar destruído, sem que ninguém fora de Fátima tenha percebido. Afinal, Portugal não é tão isolado assim.*

Isso é tudo que precisa ser dito sobre as "experiências" pessoais de deuses e outros fenômenos religiosos. Se você teve uma experiência dessas, pode ser que acredite firmemente que ela foi real. Mas não espere que o resto de nós acredite, especialmente se tivermos uma familiaridade mínima com o cérebro e seus feitos incríveis.

* Embora seja verdade que os meus sogros uma vez ficaram hospedados num hotel de Paris chamado Hôtel de 1'Univers et du Portugal.

O ARGUMENTO DAS ESCRITURAS 

Ainda tem gente que é convencida a acreditar em Deus pelas evidências das Escrituras. Um argumento comum, atribuído, entre outros, a C. S. Lewis (que bem devia ter sabido), afirma que, como Jesus alegava ser o Filho de Deus, ou ele estava certo ou então era louco ou mentiroso: "Louco, Mau ou Deus". Ou "Lunático, Mentiroso ou Senhor".* As evidências históricas de que Jesus tenha reclamado para si qualquer tipo de status divino são mínimas. Mas, mesmo que as evidências fossem sólidas, o trilema em questão seria de uma inadequação ridícula. Uma quarta possibilidade, quase óbvia demais para ser mencionada, é a de que Jesus estivesse honestamente enganado. Muita gente se engana. De qualquer modo, como já disse, não há boas evidências históricas de que ele tenha achado que era divino. 

O fato de as coisas estarem por escrito é persuasivo para pessoas que não estão acostumadas a fazer perguntas como: "Quem escreveu, e quando?"; "Como eles sabiam o que escrever?"; "Será que eles, naquela época, realmente queriam dizer o que nós, em nossa época, entendemos que eles estão dizendo?"; "Eram eles observadores imparciais, ou tinham uma agenda que influenciava seus escritos?". Desde o século xix, teólogos académicos vêm defendendo que os evangelhos não são relatos confiáveis sobre o que aconteceu na história do mundo real. Todos eles foram escritos muito tempo depois da morte de Jesus, e também das epístolas de Paulo, que não mencionam quase nenhum dos supostos fatos da vida de Jesus. Todos eles foram copiados e reco-piados, ao longo de muitas "gerações de telefones sem fio" (veja o capítulo 5), por escribas sujeitos a falhas e que, por sinal, tinham suas próprias agendas religiosas. 

Um bom exemplo da cor acrescentada pelas agendas religiosas é a tocante lenda do nascimento de Jesus, em Belém, seguida do massacre dos inocentes por Herodes. Quando os evangelhos foram escritos, muitos anos depois da morte de Jesus, ninguém sabia onde ele tinha nascido. Mas uma

 * O autor ressalta a "aliteração primária" da expressão em inglês: "Lunatic, Liar or Lord". (N. T.)

profecia do Antigo Testamento (Miquéias 5, 2) tinha levado os judeus à expectativa de que o esperado Messias nasceria em Belém. À luz dessa profecia, o Evangelho de João afirma textualmente que seus seguidores ficaram surpresos com o fato de ele não ter nascido em Belém: "Outros diziam: Ele é o Cristo; outros, porém, perguntavam: Porventura, o Cristo virá da Galiléia? Não diz a Escritura que o Cristo vem da descendência de Davi e da aldeia de Belém, donde era Davi?".

Mateus e Lucas lidaram com o problema de outra forma, concluindo que Jesus devia ter nascido em Belém, no fim das contas. Mas eles chegaram a essa conclusão por caminhos diferentes. Mateus coloca Maria e José em Belém desde sempre, tendo mudado para Nazaré só muito tempo depois do nascimento de Jesus, na volta do Egito, para onde tinham fugido do rei Herodes e do massacre dos inocentes. Lucas, por outro lado, admite que Maria e José moravam em Nazaré antes de Jesus nascer. Como então levá-los a Belém no momento crucial, para cumprir a profecia? Lucas diz que, na época em que Quirino era governador da Síria, César Augusto ordenou a realização de um censo, com fins tributários, e todo mundo tinha que ir "para a sua cidade". José era "da casa e da linhagem de Davi" e portanto tinha de ir para a "cidade de Davi, que é chamada de Belém". Deve ter parecido uma boa solução. Tirando o fato de que, do ponto de vista histórico, ela é completamente absurda, como apontaram A. N. Wilson, em Jesus: O maior homem do mundo, e Robin Lane Fox, em Bíblia: Verdade e ficção (entre outros). Davi, se existiu, viveu quase mil anos antes de Maria e José. Por que diabos os romanos teriam exigido que José voltasse para a cidade onde um ancestral remoto havia vivido um milênio antes? É como se eu fosse obrigado a especificar, digamos, Ashby-de-la-Zouch como minha cidade no formulário do censo, se por acaso eu conseguisse rastrear minha ascendência até o Seigneur de Dakeyne, que chegou junto com Guilherme, o Conquistador, e ali se estabeleceu. 

Além do mais, Lucas confunde as datas mencionando impensadamente eventos que os historiadores são capazes de verificar com independência. Houve mesmo um censo sob o domínio do governador Quirino — um censo localizado, não um que tivesse sido decretado por César Augusto para o Império inteiro —, mas ele aconteceu tarde demais: em 6 d. C., bem depois da morte de Herodes. Lane Fox conclui que "a história de Lucas é historicamente impossível e internamente incoerente", mas solidariza-se com o empenho e o desejo de Lucas de fazer cumprir a profecia de Miquéias. 

Na edição de dezembro de 2004 da Free Inquiry, Tom Flynn, o editor dessa excelente revista, reuniu uma coleção de artigos documentando as contradições e os buracos da adorada história do Natal. O próprio Flynn lista as muitas contradições entre Mateus e Lucas, os dois únicos evangelistas que chegam a falar do nascimento de Jesus.50 Robert Gillooly mostra como todas as características mais essenciais da lenda de Jesus, incluindo a estrela de Belém, a virgindade da mãe, a veneração do bebé por reis, os milagres, a execução, a ressurreição e a ascensão são empréstimos — cada uma delas — de outras religiões que já existiam na região do Mediterrâneo e do Oriente próximo. Flynn sugere que o desejo de Mateus de fazer cumprir as profecias messiânicas (descendência de Davi, nascimento em Belém), pelo bem dos leitores judaicos, entrou em rota de colisão com o desejo de Lucas de adaptar o cristianismo aos gentios, e portanto de utilizar pontos conhecidos e populares das regiões pagãs helênicas (virgindade da mãe, adoração por reis etc.). As contradições resultantes são evidentes, mas sempre minimizadas pelos fiéis. 

Cristãos sofisticados não precisam de Ira Gershwin para convencê-los de que "As coisas que você/ Pode ler na Bíblia/ Não são necessariamente assim".* Mas há muitos cristãos pouco sofisticados por aí que acham, sim, que elas são necessariamente assim — que levam a Bíblia bem a sério, como um registro literal e preciso da história, e portanto como evidência que sustenta suas crenças religiosas. Será que essas pessoas chegam a abrir o livro que acreditam ser a verdade literal? Por que não percebem essas contradições tão evidentes? Um literalista não devia se preocupar com o fato de Mateus rastrear a descendência de José do rei Davi por 28 gerações intermediárias, enquanto Lucas fala em 41 gerações? O pior é que quase não há coincidências nos nomes

 * "The things that you're li'ble/ To read in the Bible/ It airít necessarily só." (N. T.)

das duas listas! De qualquer jeito, se Jesus nasceu mesmo de uma virgem, os ancestrais de José são irrelevantes e não podem ser usados para fazer cumprir, a favor de Jesus, a profecia do Antigo Testamento de que o Messias deveria ser descendente de Davi.

O acadêmico bíblico americano Bart Ehrman, num livro cujo subtítulo é Quem mudou a Bíblia e por quê, revela as imensas incertezas que obscurecem os textos do Novo Testamento.**

Na introdução do livro, o professor Ehrman traça de forma emocionante sua jornada educacional pessoal de crente fundamentalista na Bíblia a cético ponderado, uma jornada impulsionada pela esclarecedora constatação da enorme falibilidade das Escrituras. De modo significativo, conforme ele foi subindo na hierarquia das universidades americanas, desde o fundo do poço, no "Instituto Bíblico Moody", passando pelo Wheaton College (um pouco mais elevado na escala, mas ainda a alma mater de Billy Granam) e o Seminário Teológico em Princeton, a cada passo que dava ia sendo advertido de que teria problemas para manter seu cristianismo fundamentalista diante do perigoso progres-sismo. Isso se comprovou; e nós, seus leitores, somos os maiores beneficiados. Outros livros de uma iconoclastia revigorante são Bíblia: Verdade e ficção, já mencionado, de Robin Lane Fox, e The secular Bible: Why nonbelievers must take religion seriously, de Jacques Berlinerblau.

Os quatro evangelhos que chegaram ao cânone oficial foram escolhidos, mais ou menos de forma arbitrária, dentre uma amostra maior de pelo menos uma dúzia, incluindo os evangelhos de Tomás, Pedro, Nicodemo, Felipe, Bartolomeu e Maria Madalena.51 Era a esses outros evangelhos que Thomas Jefferson se referia na carta ao sobrinho:

* Dei o subtítulo porque é só dele que tenho certeza. O título principal do meu exemplar do livro, publicado pela Continuum de Londres, é Whose word is it? [De quem é a palavra?]. Não consigo achar nada nessa edição que diga se é ou não o mesmo livro que a publicação da Harper San Francisco, que não vi, e cujo título principal é Misquoting Jesus [Citando Jesus incorretamente]. Presumo que os dois sejam o mesmo livro, mas por que os editores fazem esse tipo de coisa? [No Brasil, o livro correspondente ao subtítulo foi traduzido como O que Jesus disse? O que Jesus não disse?—Quem mudou a Bíblia e por quê. (N. T.)

Esqueci de observar, quando falei do Novo Testamento, que deves ler todas as histórias de Cristo, também as daqueles que um conselho de eclesiásticos decidiu por nós serem Pseudo-evangelistas, lê-los tanto quanto os chamados Evangelistas. Porque esses Pseudoevangelistas pretendiam a inspiração, tanto quanto os outros, e tu é que deves julgar as pretensões deles por tuas próprias razões, e não pelas razões daqueles eclesiásticos.  

Os evangelhos que não entraram no cânone foram omitidos por aqueles eclesiásticos provavelmente porque incluíam histórias que eram ainda mais embaraçosamente implausíveis que aquelas dos quatro canônicos. O infantil Evangelho de Tomás, por exemplo, contém várias passagens sobre o menino Jesus abusando de seus poderes mágicos como uma fada travessa, transformando descaradamente seus coleguinhas em bodes, ou transformando a lama em pardais, ou dando uma mão ao pai na carpintaria, estendendo milagrosamente uma peça de madeira.* Alguém dirá que ninguém acredita mesmo em histórias de milagres brutos como as do Evangelho de Tomás. Mas não há nem mais nem menos motivos para acreditar nos quatro evangelhos canônicos. Todos têm o status de lenda, tão duvidosos em termos factuais quanto as histórias do rei Artur e seus Cavaleiros da Távola Redonda. 

A maior parte do que há em comum nos quatro evangelhos canônicos vem da mesma fonte, seja o Evangelho de Marcos ou uma obra perdida da qual Marcos é o primeiro descendente remanescente. Ninguém sabe quem foram os

 * A. N. Wilson, em sua biografia de Jesus, chega a lançar dúvidas sobre a história de que José era carpinteiro. A palavra tekton, do grego, realmente significa carpinteiro, mas ela foi traduzida do aramaico naggar, que podia significar artesão ou homem culto. Esse é um entre os vários erros de tradução constitutivos que habitam a Bíblia, sendo o mais famoso deles a tradução errada do hebraico para moça (altnah), em Isaías, transformada na palavra grega para virgem (par-thenos). Um equívoco fácil de cometer (pense nas palavras em inglês maid [moça, criada] e maiden [donzela, moça solteira, virgem] para ver como isso pode ter acontecido), um deslize de um tradutor, seria loucamente inflacionado para dar origem à absurda lenda de que a mãe de Jesus era uma virgem! O único concorrente ao título de o maior erro de tradução constitutivo de todos os tempos também tem a ver com virgens. Ibn Warraq vem alegando, de modo hilariante, que, na famosa promessa de 72 virgens para cada mártir muçulmano, "virgens" é uma tradução errada de "passas brancas claras como cristal". Puxa vida, se isso tivesse sido mais divulgado, quantas vítimas de missões suicidas poderiam ter sido salvas? (Ibn Warraq, "Virgins? What Virgins?", Free Inquiry 26:1, 2006, pp. 45-6.)

quatro evangelistas, mas eles quase certamente jamais conheceram Jesus pessoalmente. Boa parte do que escreveram não representava de maneira nenhuma uma tentativa honesta de registrar a história, mas uma simples reciclagem do Antigo Testamento, porque os autores dos evangelhos estavam devotadamente convencidos de que a vida de Jesus tinha de cumprir as profecias do Antigo Testamento. É até possível montar uma argumentação histórica séria, embora ela não conte com apoio total, para defender que Jesus nem chegou a existir, como já fez, entre outras pessoas, o professor G. A. Wells, da Universidade de Londres, em vários livros, como Did Jesus exist?

Embora Jesus provavelmente tenha existido, acadêmicos bíblicos respeitados em geral não acreditam que o Novo Testamento (e, obviamente, tampouco o Antigo Testamento) seja um registro confiável do que realmente aconteceu na história, e já não considerarei mais a Bíblia evidência da existência de qualquer tipo de divindade. Nas palavras sagazes de Thomas Jefferson, que escrevia para seu antecessor, John Adams, "Chegará o dia em que a geração mística de Jesus, pelo Ser Supremo como pai, no ventre de uma virgem, será categorizada junto com a fábula da geração de Minerva no cérebro de Júpiter".

O romance O código Da Vinci, de Dan Brown, e o filme feito a partir dele estão suscitando enormes controvérsias em círculos da Igreja. Os cristãos são incentivados a boicotar o filme e fazer piquetes nas salas que o exibem. É realmente uma fabricação do começo ao fim: ficção inventada, faz-de-conta. Nesse aspecto, é exatamente como os evangelhos. A única diferença entre O código Da Vinci e os evangelhos é que os evangelhos são ficção antiga, enquanto O código Da Vinci é ficção moderna.

O ARGUMENTO DOS CIENTISTAS ADMIRADOS E RELIGIOSOS 

A imensa maioria dos homens intelectualmente eminentes não acredita na religião cristã, mas esconde esse fato do público, porque tem medo de perder sua renda. 
Bertrand Russell

 "Newton era religioso. Quem é você para se achar superior a Newton, Galileu, Kepler etc. etc. etc.? Se Deus era bom o suficiente para gente como eles, quem você pensa que é?" Não que isso faça muita diferença num argumento que já é tão ruim, mas alguns apologistas acrescentam até o nome de Darwin, sobre quem os boatos persistentes, mas comprovadamente falsos, de uma conversão no leito de morte sempre voltam a aparecer, como um cheiro ruim,* desde que foram iniciados deliberadamente por uma certa "Lady Hope", que desfiou uma balela tocante sobre corno Darwin, recostado nos travesseiros, à luz noturna, folheou o Novo Testamento e confessou que a evolução estava errada. Neste trecho concentro-me principalmente nos cientistas, porque — por motivos que talvez não sejam muito difíceis de imaginar — aqueles que propagandeiam os nomes de indivíduos admirados que seriam exemplares religiosos com frequência escolhem cientistas.

Newton realmente afirmava ser religioso. Assim como quase todo mundo até — de modo significativo, na minha opinião — o século xix, quando havia menos pressão social e judicial que nos séculos anteriores para se professar a religião, e mais apoio científico para abandoná-la. Houve exceções, é evidente, em ambas as direções. Mesmo antes de Darwin, nem todo mundo era crente, como mostra James Haught em seu 2000 years ofdisbelief: Famous people with the courage to doubt [2000 anos de descrença: Pessoas famosas com coragem de duvidar]. E alguns cientistas renomados continuaram acreditando depois de

* Até eu já fui honrado com profecias de conversão no leito de morte. Elas reaparecem com uma regularidade monótona (veja, por exemplo, Steer 2003), em cada repetição com novas nuvens da ilusão de veracidade e de novidade. Eu devia tomar a precaução de instalar um gravador para proteger minha reputação póstuma. Lalla Ward acrescenta: "Para que leitos de morte? Se você vai se vender, faça isso na hora certa, a tempo de ganhar o prémio Templeton, e depois ponha a culpa na senilidade".

Darwin. Não temos motivos para duvidar da sinceridade cristã de Michael Faraday, mesmo depois da época em que ele deve ter tomado conhecimento da obra de Darwin. Ele era integrante da seita sandemania-na, que acreditava (no pretérito, porque hoje eles estão virtualmente extintos) numa interpretação literal da Bíblia, lavava os pés dos novos membros, num ritual, e fazia sorteios para determinar a vontade de Deus. Faraday tornou-se presbítero em 1860, o ano seguinte à publicação de A origem das espécies, e morreu, sande-maniano, em 1867. A contrapartida teórica do experimentalista Faraday, James Clerk Maxwell, era um cristão igualmente devoto. Assim como outro pilar da física britânica do século XIX, William Thomson, o lorde Kelvin, que tentou demonstrar que a evolução estava descartada por falta de tempo hábil. As datações equivocadas do grande termodinamicista pressupunham que o Sol era uma espécie de incêndio, que consumia um combustível que teria que ter se esgotado em dezenas de milhões de anos, não em bilhões de anos. Obviamente não se podia esperar que Kelvin conhecesse a energia nuclear. O divertido é que, na reunião de 1903 da Associação Britânica, coube a sir George Darwin, segundo filho de Charles, vingar seu pai, que não tinha título de cavaleiro, ao invocar a descoberta do rádio pelos Curie, pondo em dúvida a estimativa prévia de lorde Kelvin, que ainda estava vivo.

Fica cada vez mais difícil encontrar grandes cientistas que professem sua religião ao longo do século XX, mas eles não são especialmente raros. Desconfio que a maioria dos mais recentes é religiosa apenas no sentido einsteiniano, o que, como argumentei no capítulo l, é um uso equivocado da palavra. Mesmo assim, existem alguns espécimes genuínos de bons cientistas que são sinceramente religiosos, no sentido pleno e tradicional. Entre os cientistas britânicos contemporâneos, os mesmos três nomes aparecem com a familiaridade agradável do nome dos sócios de uma firma dickensiana de advocacia: Peacocke, Stannard e Pol-kinghorne. Os três ou ganharam o prémio Templeton ou fazem parte do conselho consultor da Templeton. Depois de discussões amistosas com todos eles, tanto em público como na esfera privada, continuo perplexo, não tanto por sua crença em uma espécie de legislador cósmico, mas por sua crença nos detalhes da religião cristã: a ressurreição, o perdão dos pecados e tudo o mais. 

Há alguns exemplos correspondentes nos Estados Unidos, como por exemplo Francis Collins, diretor administrativo do braço americano do Projeto Genoma Humano oficial.* Mas, assim como na Grã-Bretanha, eles se destacam por sua raridade e são objeto de uma perplexidade divertida por parte de seus pares da comunidade acadêmica. Em 1996, nos jardins de sua antiga faculdade, em Cambridge, o Clare College, entrevistei meu amigo Jim Watson, gênio fundador do Projeto Genoma Humano, para um documentário da BBC que estava fazendo sobre Gregor Men-del, génio fundador da própria genética. Mendel, evidentemente, era religioso, um monge agostiniano; mas aquilo foi no século xix, quando se tornar um monge foi o meio mais fácil para o jovem Mendel explorar seus estudos científicos. Para ele, era o aqui em dia. Ele respondeu: "Virtualmente nenhum. Às vezes os encontro, e fico meio sem jeito [risos] porque, sabe, não consigo acreditar em ninguém que aceite a verdade pela revelação".

Francis Crick, co-fundador junto com Watson de toda a revolução da genética molecular, abriu mão de sua associação ao Churchill College, de Cambridge, por causa da decisão da faculdade de construir uma capela (a pedido de um benfeitor). Na entrevista com Watson em Clare College, eu lhe disse, de propósito, que, diferentemente dele e de Crick, algumas pessoas não vêem conflito entre a ciência e a religião, porque alegam que a ciência trata de como as coisas funcionam, e a religião trata de para que as coisas servem. Watson replicou: "Bom, não acho que existamos para nada. Somos só produtos da evolução. Você poderá dizer: 'Credo, sua vida deve ser bem sem graça, se você não acha que existe um propósito'. Mas estou esperando ansiosamente um gostoso almoço". E realmente tivemos um gostoso almoço.

O empenho dos apologistas para encontrar cientistas modernos destacados que sejam religiosos tem um certo ar de desespero, produzindo o som inconfundível de raspar o fundo da panela. A única página da internet que consegui achar com uma suposta lista de "Cristãos Vencedores de Prêmios

* Não confundir com o projeto genoma humano extra-oficial, liderado por aquele "bucaneiro" brilhante (e não religioso) da ciência, Craig Venter.

Nobel Científicos" apresentou seis nomes, do total de várias centenas de Nobel científicos. Desses seis, quatro na verdade não eram nem vencedores do Nobel; e pelo menos um, que eu saiba, é um descrente que vai à igreja por motivos puramente sociais. Um estudo mais sistemático de Benjamin Beit-Hallahmi "descobriu que entre os laureados pelo prêmio Nobel nas áreas científicas, assim como na literatura, houve um grau notável de irreligiosidade, se comparado com as populações das quais eles são oriundos".52 

Um estudo na importante revista Nature, de Larson e Witham, em 1998, mostrou que dentre os cientistas americanos considerados eminentes o bastante para serem eleitos para a Academia Nacional de Ciências (o equivalente a pertencer à Royal Society na Grã-Bretanha) apenas cerca de 7% acreditam num Deus pessoal.53 Essa enorme preponderância de ateus é quase que o exato oposto do perfil da população americana em geral, da qual mais de 90% são formados por pessoas que acreditam em algum tipo de ser sobrenatural. O número entre cientistas menos eminentes, não eleitos para a Academia Nacional, é intermediário. Assim como na amostra mais destacada, os que acreditam na religião são minoria, mas uma minoria menos drástica, de cerca de 40%. O fato de os cientistas americanos serem menos religiosos que o povo americano em geral é exatamente como eu teria imaginado, assim como o de os cientistas mais destacados serem os menos religiosos. O que é notável é a oposição completa entre a religiosidade do povo americano em geral e o ateísmo da elite intelectual.54

 Chega a ser divertido o fato de o principal site criacionista, Answers in Génesis, citar o estudo de Larson e Witham não como evidência de que pode haver alguma coisa errada com a religião, mas como uma arma em sua batalha interna contra os apologistas rivais que defendem que a evolução é compatível com a religião. Sob o título "Academia Nacional de Ciências é ateia até o fundo da alma",55 o Answers in Génesis cita, satisfeito, o parágrafo que conclui a carta ao editor escrita por Larson e Witham à Nature:

Quando compilávamos nossas conclusões, a ANC [Academia Nacional de Ciências] divulgou um livrete incentivando o ensino da evolução nas escolas públicas, uma fonte de atrito permanente entre a comunidade científica e alguns cristãos conservadores nos Estados Unidos.

O livreto garante aos leitores: "A existência ou a inexistência de Deus é uma questão sobre a qual a ciência é neutra". O presidente da ANC, Bruce Alberts, disse: "Há muitos integrantes importantíssimos desta academia que são pessoas muito religiosas, pessoas que acreditam na evolução, muitas delas biólogos". Nossa pesquisa sugere uma realidade diferente.

Alberts, ao que parece, adotou o MNI pelos motivos que discuti em "A escola Neville Chamberlain de evolucionistas" (veja o capítulo 2). O Answers in Genesis tem uma agenda bem diferente. 

O equivalente à Academia Nacional de Ciências americana na Grã Bretanha (e do Commonwealth, incluindo Canadá, Austrália, Nova Zelândia, índia, Paquistão, a África anglófona etc.) é a Royal Society. Quando este livro foi impresso, meus colegas R. Elisabeth Cornwell e Michael Stirrat escreviam o relato de sua pesquisa comparável àquela, mas mais profunda, sobre as opiniões religiosas dos integrantes da Royal Society. As conclusões dos autores serão publicadas mais tarde em sua totalidade, mas eles gentilmente me permitiram citar os resultados preliminares aqui. Utilizaram uma técnica-padrão para medir opiniões, a escala Likert, de sete pontos. Todos os 1074 integrantes da Royal Society que possuem endereço eletrônico (a grande maioria) foram consultados, e cerca de 23% responderam (um bom número para esse tipo de estudo). Foram oferecidas a eles várias afirmações, como. por exemplo: "Acredito em um Deus pessoal, que tem interesse pelas pessoas, que ouve preces e as atende, que está preocupado com o pecado e com transgressões e que faz juízos". Para cada afirmação como essa, eles foram convidados a escolher um número de 1 (forte discordância) a 7 (forte concordância). É meio difícil comparar os resultados diretamente com os do estudo de Larson e Witham, porque estes ofereceram aos acadêmicos uma escala de apenas três pontos, e não de sete, mas a tendência geral é a mesma. A imensa maioria dos integrantes da Royal Society, assim como a imensa maioria dos acadêmicos dos EUA, é de ateus. Apenas 3,3% dos membros da Royal Society concordaram fortemente com a declaração de que existe um deus pessoal (isto é, escolheram 7 na escala), enquanto 78,8% discordaram fortemente (isto é, escolheram 1 na escala). Se definirmos como "crentes" os que escolheram 6 ou 7, e se definirmos como "descrentes" os que escolheram 1 ou 2, houve um número maciço de descrentes, 213, contra parcos doze crentes. Assim como Larson e Witham, e como também foi observado por Beit-Hallahmi e Argyle, Cornwell e Stirrat encontraram uma tendência pequena, mas significativa, de os cientistas da área da biologia serem ainda mais ateus que os cientistas da área da física. Para os detalhes, e para o restante de suas interessantíssimas conclusões, por favor confira o trabalho deles quando ele for publicado.56

Deixando para lá os cientistas de elite da Academia Nacional e da Royal Society, há alguma evidência de que, na população em geral, é mais provável encontrar ateus entre os mais instruídos e mais inteligentes? Várias pesquisas já foram publicadas a respeito da relação estatística entre religiosidade e nível de instrução, ou religiosidade e QI. Michael Shermer, em How we believe: The searchfor God in an age ofscience [Como acreditamos: a busca por Deus na era da ciência], descreve uma grande sondagem com americanos escolhidos aleatoriamente, realizada por ele e seu colega Frank Sulloway. Entre os muitos resultados interessantes estava a descoberta de que a religiosidade realmente mantém uma correlação negativa com o nível de instrução (as pessoas mais instruídas têm uma tendência menor a ser religiosas). A religiosidade também mantém correlação negativa com o interesse na ciência e (de forma contundente) com o liberalismo político. Nada disso é de surpreender, nem o fato de que há uma correlação positiva entre a religiosidade da pessoa e a dos pais. Sociólogos que estudaram crianças britânicas observaram que apenas uma entre cada doze rompe com as crenças religiosas dos pais.

Como era de esperar, pesquisadores diferentes mensuram as coisas de formas diferentes, por isso é difícil comparar estudos diferentes. A metanálise é uma técnica em que um pesquisador analisa todos os trabalhos publicados sobre determinado tópico e compara o número de estudos que concluíram uma coisa com o número dos que concluíram outra coisa. A respeito de religião e QI, a única metanálise que conheço foi publicada por Paul Bell na Mensa Magazine em 2002 (a Mensa é a sociedade de indivíduos de QI elevado, e sua revista, nada surpreendentemente, inclui artigos sobre aquilo que os reúne).57 Bell concluiu: "Dos 43 estudos realizados desde 1927 sobre a relação entre crença religiosa e a inteligência e/ou o nível de instrução da pessoa, todos, com exceção de quatro, observaram uma conexão inversa. Isto é, quanto maior a inteligência ou o nível de instrução da pessoa, menor é a probabilidade de ela ser religiosa ou ter qualquer tipo de 'crença'".

Uma metanálise é sempre fadada a ser menos específica que qualquer um dos estudos que contribuíram para ela. Seria bom haver mais estudos nessa linha, e mais estudos com integrantes de grupos de elite, de outras academias nacionais e com vencedores de prêmios e medalhas importantes como o Nobel, o Crafoord, o Field, o Kyoto, o Cosmos e outros. Espero que as edições futuras deste livro incluam esse tipo de dado. Uma conclusão razoável, a partir dos estudos existentes, é que os apologistas religiosos seriam mais sábios se ficassem mais calados do que normalmente são sobre as pessoas que querem usar como exemplos, pelo menos no que diz respeito aos cientistas.

A APOSTA DE PASCAL 

O grande matemático francês Blaise Pascal achava que, por mais improvável que fosse a existência de Deus, há uma assimetria ainda maior na punição por errar no palpite. É melhor acreditar em Deus, porque se você estiver certo poderá ganhar o júbilo eterno, e se estiver errado não vai fazer a menor diferença. Por outro lado, se você não acreditar em Deus e estiver errado, será amaldiçoado para todo o sempre, e se estiver certo não vai fazer diferença. Pensando assim, a decisão é óbvia. Acredite em Deus. 

Há, porém, alguma coisa claramente esquisita no argumento. Acreditar não é uma coisa que se possa decidir, como se fosse uma questão política. Não é pelo menos uma coisa que eu consiga decidir por vontade própria. Posso decidir ir à igreja e posso decidir recitar a novena, e posso decidir jurar sobre uma pilha de Bíblias que acredito em cada palavra escrita nelas. Mas nada disso pode realmente me fazer acreditar se eu não acreditar. A aposta de Pascal só poderia servir de argumento para uma crença fingida em Deus. E é melhor que o Deus em que você alega acreditar não seja do tipo onisciente, senão ele vai saber da enganação. A ideia absurda de que acreditar é uma coisa que se pode decidir fazer é deliciosamente ridicularizada por Douglas Adams em Dirk Gentlys Holistic Detective Agency, em que somos apresentados ao Monge Elétrico, um dispositivo muito prático que se compra para "acreditar por você". O modelo de luxe é anunciado como "capaz de acreditar em coisas que ninguém de Salt Lake City acreditaria".

Mas por que, então, estamos tão dispostos a aceitar a idéia de que o que é imprescindível fazer, se se quiser agradar a Deus, é acreditar nele? O que há de tão especial em acreditar? Não é igualmente provável que Deus recompense a bondade, ou a generosidade, ou a humildade? Ou a sinceridade? E se Deus for um cientista que considera a busca honesta pela verdade a virtude suprema? Aliás, o projetista do universo não teria de ser um cientista? Perguntaram a Bertrand Russell o que ele diria se morresse e se visse confrontado por Deus, exigindo saber por que Russell não acreditava nele. "Não havia provas suficientes, Deus, não havia provas suficientes", foi a resposta (eu quase diria imortal) de Russell. Deus não respeitaria Russell por seu ceticismo corajoso (sem contar pelo pacifismo corajoso que o colocou na prisão durante a Primeira Guerra Mundial), bem mais do que respeitaria Pascal por sua aposta cautelosa e covarde? E, embora não tenhamos como saber de que lado Deus ficaria, não precisamos saber para refutar a aposta de Pascal. Estamos falando de uma aposta, lembre-se, e Pascal não estava defendendo que a dele tivesse qualquer coisa além de uma probabilidade muito remota. Você apostaria que Deus valorizaria mais uma crença fingida e desonesta (ou mesmo uma crença honesta) que o ceticismo honesto?

Suponha que o deus que o confrontar quando você morrer seja Baal, e suponha que Baal seja tão invejoso quanto disseram que era seu velho rival Javé. Não seria melhor que Pascal não tivesse apostado em deus nenhum, em vez de apostar no deus errado? O próprio número de deuses e deusas em potencial em que se poderia apostar não corrompe toda a lógica de Pascal? Pascal estava provavelmente brincando quando promoveu sua aposta, assim como estou brincando para descartá-la. Mas já encontrei gente, por exemplo na sessão de perguntas depois de uma palestra, que apresentou seriamente a aposta de Pascal como um argumento a favor da crença em Deus, por isso tive motivos para dar a ela um breve espaço aqui.

Será possível, por fim, argumentar em busca de uma espécie de antiaposta de Pascal? Imagine que assumamos que realmente haja uma pequena chance de Deus existir. Mesmo assim, seria possível dizer que você terá uma vida melhor, mais plena, se apostar na sua inexistência, e não na sua existência, para não desperdiçar seu tempo precioso adorando-o, sacrificando-se em nome dele, lutando e morrendo por ele etc. Não responderei à pergunta aqui, mas os leitores poderão mante-la em mente quando chegarmos aos capítulos posteriores, sobre as conseqüências malévolas que podem se originar da crença e da observância religiosa.
 
ARGUMENTOS BAYESIANOS 

Acho que a tentativa mais estranha de tese sobre a existência de Deus que já vi é o argumento bayesiano, apresentado recentemente por Stephen Unwin em The probability of God. Hesitei em incluir esse argumento, que é mais fraco e menos incensado pela antiguidade que os outros. O livro de Unwin, no entanto, recebeu uma atenção jornalística considerável quando foi publicado, em 2003, e proporciona a oportunidade de juntar algumas linhas explanatórias. Tenho alguma solidariedade pelos objetivos dele porque, como argumentei no capítulo 2, acredito que a existência de Deus, como hipótese científica, seja, pelo menos em princípio, investigável. Além disso, a tentativa quixotesca de Unwin de dar um valor numérico à probabilidade é bem divertida.

O subtítulo do livro, A simple calculation ihatproves the ulti-mate truth [ Um cálculo simples que comprova a verdade definitiva], tem toda a cara de ter sido um acréscimo posterior da editora, porque não há, no texto de Unwin, convicção tão pretensiosa. É melhor encarar o livro como um manual, uma espécie de Teorema de Bayes para leigos, usando a existência de Deus como um estudo de caso semi-irônico. Unwin podia muito bem ter usado um assassinato hipotético como caso-prova para demonstrar o Teorema de Bayes. O detetive organiza as evidências. As impressões digitais no revólver apontam para dona Violeta. Quantifi que essa suspeita jogando sobre ela uma probabilidade numérica. O professor Black, porém, teve um motivo para acusá-a. Reduza a suspeita sobre dona Violeta com um valor numérico correspondente. As evidências médico-legais sugerem uma probabilidade de 70% de o revólver ter sido disparado com precisão a longa distância, o que dá motivos para pensar num culpado com treinamento militar. Quantifique nossa suspeita mais elevada sobre o coronel Mostarda. O sr. Marinho* tem o motivo mais plausível para o assassinato.** Aumente nossa avaliação numérica da probabilidade dele. Mas o longo fio de cabelo loiro no blazer da vítima só pode pertencer à srta. Rosa... e assim por diante. Uma mistura de probabilidades decididas com uma dose maior ou menor de subjetividade bagunça a cabeça do detetive, atraindo-o para várias direções. A idéia é que o Teorema de Bayes o ajude a chegar a uma conclusão. Trata-se de um mecanismo matemático para combinar muitas estimativas de probabilidades e chegar a um veredicto final, que possui sua própria estimativa de probabilidade. Mas é óbvio que essa estimativa final não pode ser melhor que os números originais que foram fatorados. Esses números normalmente são resultado de um juízo subjetivo, com todas as dúvidas inevitáveis. O princípio GIGO (Garbage In, Gar-bage Out — Entra Lixo, Sai Lixo) é aplicável aqui — e, no caso do exemplo de Deus usado por Unwin, aplicável é um termo leve demais.

Unwin é um consultor de risco apaixonado pela inferência bayesiana e que muita contra métodos estatísticos rivais. Ele ilustra o Teorema de Bayes não usando um assassinato, mas a maior prova de todas, a existência de Deus. A idéia é começar com uma incerteza total, que ele quantifica determinando para a existência e para a inexistência de Deus uma probabilidade inicial de 50% cada. Em seguida ele lista seis fatos que podem influenciar a questão, dá um valor numérico a cada um deles, fatora os seis números dentro do mecanismo do Teorema de Bayes e vê que número aparece. O problema é que (repetindo) os seis pesos não são quantidades mensuradas, mas simplesmente os juízos particulares de Stephen Unwin, transformados em números só para se encaixar no exercício. Os seis fatos são:

* No original: reverendo Green. Na versão brasileira do jogo Detetive o personagem transformou-se em sr. Marinho. (N. T.) 

** Reverendo Green é o nome do personagem nas versões do Cluedo vendidas na Grã-Bretanha (onde o jogo surgiu), na Austrália, na Nova Zelândia, na Índia e em todas as outras áreas de língua inglesa, com a exceção dos Estados Unidos, onde ele de repente vira sr. Green. Como assim?

 1 Temos um senso de bondade. 

2 As pessoas fazem maldades (Hitler, Stálin, Saddam Hussein). 

3 A natureza faz maldades (terremotos, tsunamis, furacões). 

4 Pode haver milagres de pequena dimensão (perdi minhas chaves e as reencontrei). 

5 Pode haver milagres de grandes dimensões (Jesus pode ter ressuscitado de entre os mortos). 

6 As pessoas têm experiências religiosas.

Se é que isso vale alguma coisa (não vale, na minha opinião), no final da corrida maluca bayesiana, na qual Deus larga bem na frente, depois fica muito para trás, e depois consegue voltar à marca dos 50%, de onde partiu, ele por fim acaba, na estimativa de Unwin, com uma probabilidade de 67% de existir. Unwin decide então que seu veredicto bayesiano de 67% não é alto o suficiente e toma a bizarra decisão de aumentá-lo para 95% com uma injeção emergencial de "fé". Parece piada, mas é assim mesmo que ele procede. Eu gostaria de justificar como ele faz isso, mas não há nada a dizer. Já encontrei esse tipo de absurdo em outros lugares, quando desafiei cientistas religiosos, mas inteligentes, a justificar sua crença, levando em conta que eles admitiam que não há evidências: "Admito que não há evidência. Há um motivo para que isso seja chamado de fé" (essa última frase é dita com uma convicção quase truculenta, sem sinal de nenhum tom de justificativa ou defesa).

De maneira surpreendente, a lista das seis afirmações de Unwin não inclui o argumento do design, nem alguma das cinco "provas" de Tomás de Aquino, nem algum dos vários argumentos ontológicos. Ele não quer nem saber deles: eles não contribuem nem um pouquinho para sua estimativa numérica da probabilidade da existência de Deus. Ele os discute e, como bom estatístico, descarta-os, classificando-os como vazios. Acho que ele deve levar o crédito por isso, embora seu motivo para descartar o argumento do design seja diferente do meu. Mas os argumentos que ele admite em seu portal bayesiano são, parecem, tão fracos quanto. Sem contar que os valores de probabilidade que eu determinaria para eles seriam diferentes, e, aliás, quem é que está interessado em juízos subjetivos? Ele acha que o fato de termos um senso de certo e errado pesa bastante a favor de Deus, enquanto eu não acho que isso devesse afetar a expectativa inicial. Os capítulos 6 e 7 mostrarão que não dá para defender a tese de que o fato de possuirmos um senso de certo e errado tenha alguma ligação clara com a existência de uma divindade supernatural. Como no caso de nossa capacidade de apreciar um quarteto de Beethoven, nosso senso de bondade (embora não necessariamente a persuasão para segui-lo) seria como é existindo ou não existindo Deus.

Por outro lado, Unwin acha que a existência do mal, especialmente catástrofes naturais como terremotos e tsunamis, pesa muito contra a probabilidade de que Deus exista. Aqui, o juízo de Unwin é oposto ao meu, mas está em linha com muitos teólogos desconfortáveis. A "teodicéia" (a justificativa da providência divina diante da existência do mal) tira o sono dos teólogos. O respeitado Dicionário Oxford de filosofia diz que o problema do mal é a "mais poderosa objeção ao teísmo tradicional". Mas esse é um argumento que só vai contra a existência de um Deus bom. A bondade não faz parte da definição da Hipótese de que Deus Existe, ela não passa de um acessório desejável. 

As pessoas com tendências teológicas são sabidamente e com frequência cronicamente incapazes de distinguir a verdade daquilo que gostariam que fosse verdade. Mas, para um crédulo em algum tipo de inteligência sobrenatural que seja mais sofisticado, é ridiculamente fácil superar o problema do mal. Basta postular um deus malvado — como aquele que recheia cada página do Antigo Testamento. Ou, se não gostar dessa hipótese, invente um outro deus malvado, dê a ele o nome de Satã e ponha na batalha cósmica dele contra o deus bom a culpa por todo o mal que há no mundo. Ou — uma solução mais sofisticada — postule um deus com tarefas mais grandiosas a fazer que se preocupar com o sofrimento humano. Ou um deus que não seja indiferente ao sofrimento, mas que o considere o preço justo a pagar pelo livre-arbítrio num cosmos ordenado. Podem-se encontrar teólogos comprando todas essas racionalizações.


Por essas razões, se eu fosse refazer o exercício bayesiano de Unwin, nem o problema do mal nem considerações morais em geral me afastariam muito, nem para um lado nem para o outro, da hipótese nula (os 50% de Unwin). Mas não quero discutir sobre isso porque, de qualquer maneira, não posso ficar inflamado demais com opiniões pessoais, seja as de Unwin, seja as minhas. 

Há um argumento muito mais poderoso, que não depende de juízos subjetivos, que é o argumento da improbabilidade. Ele realmente nos afasta drasticamente do agnosticismo dos 50%, para bem mais perto do extremo do teísmo, na visão de muitos teístas, e para bem mais perto do extremo do ateísmo, na minha opinião. Já o mencionei várias vezes. O argumento gira em torno da conhecida pergunta: "Quem criou Deus?", que a maioria das pessoas pensantes descobre por si só. Um Deus projetista não pode ser usado para explicar a complexidade organizada porque qualquer Deus capaz de projetar qualquer coisa teria que ser complexo o suficiente para exigir o mesmo tipo de explicação para si mesmo. A existência de Deus nos coloca diante de uma regressão infinita da qual ele não consegue nos ajudar a fugir. Esse argumento, como mostrarei no próximo capítulo, demonstra que a existência de Deus, embora não seja tecnicamente descartável, é muito, mas muito improvável mesmo.
 



 

 

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