O presidente da China, Xi Jinping, com o presidente da Rússia, Vladimir Putin (Kremlin/Divulgação)
A guinada belicista polonesa e alemã, embora visem a contenção da Rússia, constituía-se como o início de uma “corrida armamentista” dentro da União Europeia. No entanto, a situação mudou com a vitória de Donald Tusk e a volta de um governo de direita “moderado” na Polônia
Wagner Sousa
No boletim número 02 do Observatório Internacional do Século XXI, publicado em novembro de 2023, saiu o primeiro artigo tratando do tema título deste texto. Naquela análise, procurei observar a posição da Europa diante da situação geopolítica regional e global e as questões russa e chinesa. O artigo apontou uma maior probabilidade de continuidade da dependência estratégica em relação aos Estados Unidos na arquitetura de segurança da Otan, e uma menor probabilidade de uma ruptura interna entre os europeus ou, menor ainda, de uma concertação regional que estabelecesse um aparato bélico unificado e independente dos norte-americanos.
A razão principal é a incapacidade da União Europeia de substituir totalmente os Estados Unidos para sua própria defesa. Essa incapacidade tem aspectos políticos internos, principalmente. E se manifesta também em termos estratégicos. Politicamente a União Europeia não tem a centralidade decisória de um Estado nacional, é uma associação de estados, que toma decisões predominantemente por consenso, um arranjo institucional intergovernamental. Então, decisões consensuais que envolvem os 27 países, bastante diversos entre si, cada qual com os seus legítimos interesses, são difíceis e, muitas vezes, inviáveis. E, somado a esse aspecto, têm-se a questão estratégica: a Europa está sob o “guarda-chuva nuclear” dos Estados Unidos, são as bases norte-americanas no continente e especialmente a capacidade de dissuasão nuclear a garantia da segurança dos europeus. Embora França e Reino Unido sejam potências atômicas, é o aparato atômico dos Estados Unidos, regional e global, que faz frente à Rússia, detentora do maior arsenal do mundo.
Além dos aspectos de política interna do bloco e da aliança estratégica com Washington, têm-se também os aspectos econômico e tecnológico. Estes, embora tragam desafios, podem contribuir para a recuperação econômica e o desenvolvimento técnico dos países europeus, com repercussões, em ambos os aspectos, em suas economias civis; aqui se faz uma observação a respeito dos efeitos do investimento na indústria bélica, não se está avaliando a pertinência em relação a outras despesas públicas, aos investimentos sociais ou em infraestrutura. A tendência, como vem ocorrendo na maior parte do mundo, é de aumento do investimento militar, que funciona como uma “corrida” entre os países em torno do domínio de tecnologias de ponta e de capacidades militares.
Foram tratados também, no artigo supracitado, os desenvolvimentos havidos após a invasão russa da Ucrânia. A Alemanha anunciou o maior orçamento militar desde o pós-guerra. E a Polônia – com apoio dos Estados Unidos e decisão de gastar 4% do PIB em Defesa, o dobro do “piso” de 2% para os países da Otan – vinha se tornando um “parceiro privilegiado” dos norte-americanos no enfrentamento à Rússia. O agressivo governo de extrema direita anterior da Polônia desenvolveu essa relação pragmática com os Estados Unidos e rechaçava estar tanto na área de influência alemã como russa e tinha relações ruins com ambos. Em relação à Alemanha, pedia reparações referentes à Segunda Guerra Mundial, o que provocou grande irritação em Berlim. Nesse contexto, a guinada belicista polonesa e alemã, embora visem a contenção da Rússia, primordialmente, constituía-se como o início de uma “corrida armamentista” dentro da União Europeia, movimento que poderia trazer riscos no futuro.
No entanto, a situação mudou com a vitória de Donald Tusk e a volta de um governo de direita “moderado” na Polônia. Tusk, que já havia sido primeiro-ministro em governo anterior, é por convicção europeísta, mais próximo dos alemães e da burocracia da União Europeia. Foi presidente do Conselho Europeu, órgão da UE que reúne chefes de Estado e de governo. Tendo em vista esta conjuntura, o analista Andrew Korybko, em texto recente, discorre sobre uma Polônia atual com “dois patrões”, Alemanha e EUA, e a busca de uma forte militarização em busca do que é chamado de “Fortaleza Europa”. Diz ele que: “O governo conservador nacionalista anterior via esta integração [com os Estados Unidos] como o restabelecimento de um status de grande potência perdido há muito tempo. Assim, o país não mais ficaria como peça do ‘balanço de poder’ entre Alemanha e Rússia; atingiria este objetivo com ajuda dos Estados Unidos, em razão da sua política de ‘dividir para reinar’. Neste momento o governo polonês se subordina à Alemanha em todos os aspectos. […] Os Estados Unidos apoiam a ressurgência alemã como superpoder por entender ser a maneira mais efetiva de conter a Rússia na Europa e fortalecer a contenção da China, no outro lado do supercontinente eurasiático”.
Dois aspectos importantes complementam essa discussão acerca das relações entre Alemanha e Polônia: o estabelecimento de um “Schengen Militar” e o que parece ser uma nova onda de “deslocalização” de sua economia industrial. O “acordo de Schengen” é o que estabelece a liberdade de deslocamento dos cidadãos da União Europeia pelos países do bloco, sem necessidade de passaporte. O chamado “Schengen Militar” é o novo acordo que, neste momento, une Alemanha, Polônia e Holanda numa área de livre trânsito de tropas e suprimentos militares e tem o intuito de propiciar rápida reação, em caso de guerra. É o primeiro passo de uma “zona militar alargada” na União Europeia.
Nos anos 2000, com o ingresso dos países do Leste Europeu no bloco, uma “onda de deslocalização” terceirizou partes importantes da indústria alemã para essas nações, de mão de obra educada, treinada e mais barata, Polônia inclusive. Somado a outros fatores, isso tornou a indústria alemã muito competitiva e manteve o modelo econômico fundado nas exportações. Um desses fatores foi, a partir de acordos firmados com a Rússia, a obtenção de gás natural para a sua indústria a preços baixos. Essa vantagem não mais existe depois da eclosão da guerra e das sanções ocidentais à economia russa. A Alemanha vem tendo que importar gás liquefeito trazido em navios, o que encarece muito a produção industrial e lhe tira competitividade. Então, num “rearranjo” dessa conjuntura de guerra, a Alemanha vem permitindo que indústrias transfiram suas plantas em grande medida para a Polônia. Que tem como principal fonte energética o carvão, opção mais barata e muito mais poluente, o que vai na direção contrária dos esforços da União Europeia de redução de emissões de CO2 no bloco. A necessidade estratégica, econômica e política, vai deixando as prioridades ambientais da Alemanha e da Europa em segundo plano.
É o fim de mais de duas décadas de inserção alemã exitosa para a sua economia industrial exportadora no contexto da globalização, abertura de mercados e estabelecimento de fortes relações com Rússia e China. “Êxito” que representou as taxas de desemprego mais baixas em décadas (ao custo, porém, de precarização trabalhista e estagnação salarial) e esgarçamento das relações com os parceiros na União Europeia, que absorveram parte dessas exportações. Foi uma adaptação parcial ao modelo liberal anglo-saxão.
Contudo, neste mundo em que o cálculo geopolítico é ainda mais imperativo e blocos rivais vão se estabelecendo e de uma forma mais complexa do que no período da Guerra Fria, a Alemanha vai se reposicionando, buscando se afirmar como potência militar na Europa e estabelecendo sua “Zona Schengen” com Estados em sua zona de influência, Polônia e Holanda, até o momento. A ver como será essa “Zona Schengen” com outros Estados, no futuro. A saber como será a coordenação com franceses e britânicos, as potências nucleares do continente. E, por fim, o papel dos Estados Unidos, que pode variar a depender de quem vai vencer as próximas eleições presidenciais.
Wagner Sousa é doutor em Economia Política Interacional pelo Instituto de Economia da UFRJ. Atualmente é pós-doutorando em Economia Política Internacional na UFRJ, com pesquisa sobre a Alemanha e suas relações com grandes potências (Estados Unidos, Rússia e China). É também colaborador do Observatório Internacional do Século XXI.
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