quarta-feira, 3 de julho de 2024

O alvo do ataque de Milei não é Lula, mas sim a integração regional

Fontes: CLAE – Rebelião


O vínculo entre o presidente argentino Javier Milei e o presidente brasileiro Luis Inácio Lula da Silva está rompido. Nunca marcaram reunião, nem se falaram ao telefone, e as primeiras definições do presidente brasileiro sobre o libertário argentino expuseram uma crise diplomática latente e um pedido de desculpas por ter dito “muita bobagem”.

Dada a iminência da Cúpula do Mercosul, que acontecerá no dia 8 de julho em Assunção, Milei finalmente decidiu não mostrar o rosto, não comparecer à reunião. Um dos motivos de sua ausência, segundo argumentou, foi o conflito que teve com Lula, a quem chamou de corrupto e comunista “O que eu disse a ele? Corrupto? Ele não foi preso por corrupção? E o que eu disse a ele? Comunista? Ele não é comunista? Desde quando você tem que se desculpar por dizer a verdade? Ou estamos tão cansados ​​do politicamente correto que nada pode ser dito à esquerda, mesmo que seja verdade”, disse Milei em entrevista ao La Nación+.

Embora a aspereza das relações presidenciais tenha sempre uma causa de origem, traz consigo suas consequências, entre elas um novo golpe nas possibilidades de redirecionamento da integração regional na próxima reunião do Mercado Comum do Sul (Mercosul). Analistas argentinos concordam que Milei está determinado a prejudicar o relacionamento com o Brasil, talvez seguindo diretrizes dos Estados Unidos.

A resposta de Milei é semelhante às que deu em ocasiões anteriores quando se deparou com pedidos de desculpas de outros governos e governantes por ele atacados, como o do espanhol Pedro Sánchez, do mexicano Andrés López Obrador ou do colombiano Gustavo Petro.

Poucos dias depois da visita de William Burns, chefe da agência de inteligência norte-americana CIA, o extrema-direita Milei embarcou num ataque grotesco aos líderes progressistas da região, numa tentativa óbvia de atacar os processos de integração regional. As relações diplomáticas do governo argentino deram uma guinada contundente desde a chegada de Milei à presidência, principalmente no que diz respeito ao relacionamento com líderes de países como Brasil, Venezuela, México e Colômbia.

Os presidentes do México, Andrés Manuel López Obrador, e da Colômbia, Gustavo Petro, responderam aos ataques do seu homólogo argentino, que ganhou o apelido de “desintegrador”.

Andrés Manuel López Obrador lembrou que Milei “ousou acusar o seu compatriota Francisco de ser um ‘comunista’ e ‘representante do Maligno na terra’, quando ele é o Papa mais cristão e defensor dos pobres que já conheci ou tive "notícias".

Milei não se cansa de mencionar Moisés (mesmo não sendo um liberal, mas um ditador que distribuía terras estrangeiras manualmente, nunca sob regime de propriedade privada), mas não menciona Jesus porque é demasiado comunista para o seu gosto, como diz o uruguaio-americano Jorge Majfud em “A ditadura de nossas orgulhosas democracias”.

Desintegrar, o slogan

Lula fez uma recomendação singular a Milei: nenhum presidente “criará discórdia entre Brasil e Argentina” porque “o povo brasileiro e o povo argentino são mais importantes que os presidentes”. Portanto, acrescentou, “se o presidente da Argentina quiser governar a Argentina, tudo bem. Mas não tente dominar o mundo." A resposta da presidência argentina foi negar um contraponto entre os dois líderes e insistir que Milei “não tem nada do que se arrepender”.

Milei se recusou a pedir desculpas ao seu homólogo brasileiro e dobrou: “Eu o chamei de corrupto e comunista, não é?” Disse que Lula “tem o mesmo mecanismo de Petro e Sánchez” e acusou-o de “se envolver ativamente em nossa campanha eleitoral”. “O que eu disse sobre Lula é verdade”, insistiu.

Milei desmonta uma construção que ajudou a industrializar o país, transformou a América do Sul numa zona de paz e colaborou na reivindicação argentina pela Questão das Malvinas. Para além da sua decisão política de viver em recessão, esta destruição da cooperação e integração regional é mais uma ferramenta de Milei para lutar com os seus vizinhos, mas sobretudo com o Brasil.

Em meados de abril, os chanceleres Diana Mondino e Mauro Viera se reuniram em Brasília. Conversaram sobre todos os assuntos da agenda das relações bilaterais e concordaram em dar um impulso ao Mercosul, tendo em vista o relacionamento entre os Presidentes. Aí ficou acordado relançar as relações bilaterais no comércio, apostar numa maior integração fronteiriça, ampliar os acordos do Mercosul com outros blocos e países. Ficou pendente o debate sobre a ampliação do acordo de livre comércio com a União Europeia e com a EFTA (Noruega, Liechtenstein, Islândia e Suíça) e a superação das diferenças ideológicas entre os presidentes.

Os chanceleres abordaram questões relacionadas à “infraestrutura fronteiriça, cooperação energética e de defesa, hidrovia Paraguai-Paraná e integração”. Ali foi mencionada a possibilidade de avançar com obras de infraestrutura desde Vaca Muerta até a fronteira com o Brasil para exportar gás no futuro. E foi destacada a ideia de reforçar a segurança nas fronteiras.

Em comunicado do Itamaraty, foi detalhado que Mondino e Vieira discutiram “as relações argentino-brasileiras marcadas pela intensidade de investimentos e fluxos comerciais; emissão e recepção de grande número de turistas e estudantes; e cooperação em setores estratégicos como defesa, segurança, energia convencional e nuclear, e ciência, tecnologia e inovação.

O presidente progressista do Brasil e o presidente anarcocapitalista argentino ainda não conversaram, embora este último governe há quase sete meses. O início da “extrema frieza” remonta à época da campanha eleitoral argentina, quando Milei fez uma crítica ofensiva a Lula: chamou-o de “corrupto e comunista” e ameaçou romper relações, um gesto altamente antidiplomático.

E usou como fator para justificar as suas opiniões a “prisão prolongada” entre Abril de 2018 e Novembro de 2019 sofrida pelo chefe de Estado. “Não falei com o presidente da Argentina porque acho que [antes] ele tem que pedir desculpas ao Brasil e a mim, ele falou muita besteira, só quero que ele peça desculpas”, explicou Lula durante entrevista.

“A Argentina é um país muito importante para o Brasil e o Brasil é para a Argentina. Não é um presidente da República que vai criar discórdia entre as duas nações: o povo argentino e o povo brasileiro são mais importantes que os seus presidentes”, acrescentou. A opinião de Milei sobre o assunto não é conhecida.

Embora ambos tenham participado na reunião do G-7 na Itália, mal trocaram uma saudação protocolar. Agora, as expectativas estão voltadas para os próximos dias 7 e 8 de julho, quando terão seu primeiro encontro formal, salvo surpresa, na cúpula que os países do bloco Mercosul realizarão em Assunção, no Paraguai.

Lula respondeu que não conversou com o presidente argentino sobre esse assunto porque ainda aguardava o pedido de retratação devido aos insultos recebidos há pouco tempo em entrevista a Jaime Bayly em novembro de 2023, onde anunciou que, como presidente, ele não estabeleceria relações comerciais com o Brasil.

Mas Milei não pretende pedir desculpas, como Lula pede. “Está dentro da vontade dele e nós respeitamos, mas o presidente não cometeu nada de que deva se arrepender, pelo menos por enquanto”, disse Mauel Adorni, porta-voz do presidente libertário argentino.

Milei decidiu isolar a Argentina do resto do mundo e desprezar os países vizinhos, começando pelo Brasil. É original: não há outro caso no planeta, diz Martín Granovski. Milei gostava de ir ao Facha-Fest do Vox como uma criança, mas brigou com o primeiro-ministro da Espanha, o segundo país por origem de investimentos na Argentina depois dos Estados Unidos.

Ele manteve-se ideologicamente com um alinhamento proclamado com os Estados Unidos e Israel e flertou com a NATO para trazer as Forças Armadas para a Ucrânia. Como se tudo isso não bastasse, Milei também desprezou a China, um dos dois principais parceiros comerciais. Ele disse que não negociaria estado a estado com Xi Jinping, uma decisão que não poderá tomar.

E embora os chanceleres do governo anterior tivessem negociado a entrada da Argentina no Brics, que ocorreria em 1º de janeiro, o libertário notificou Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul que não se juntaria ao grupo. O seu resultado parece ser isolar a Argentina de um sistema de alianças que, antes da incorporação de outras nações, na sua formação original já representava 42 por cento da população mundial e explicava 16 por cento das exportações e 15 por cento das importações planetárias.

Mesmo que Milei não goste dele, Lula é um político experiente e muito profissional. E ele não se preocupa apenas com as nuances, nos fatos e no discurso, mas também busca se expressar com precisão. A verdade é que Lula nunca foi comunista e, se o tivesse sido, essa palavra não costuma ser usada pelos presidentes como insulto 35 anos depois da queda do Muro de Berlim.

E a verdade é que a Justiça brasileira desmantelou o caso inventado por suposta corrupção contra Lula e o libertou, o que lhe permitiu ser candidato e vencer as eleições de 2022 contra um amigo de Milei chamado Jair Bolsonaro.

Milei está desargentinizando a política externa, está tirando a identidade mercosurista, sul-americana, pacifista e resgatadora do direito internacional dos direitos humanos, desconsiderando o prestígio conquistado com a política estatal de memória, verdade e justiça.

Coloca em risco a obtenção de divisas ao se dissociar do Brasil, principal destino das exportações de produtos manufaturados, e da China. Negligencia mercados potenciais como a Colômbia, a América Central e a África, onde a Argentina pode chegar com tecnologia agrícola e camiões. E parece procurar arquivar qualquer indício de realismo, palavra que na política internacional está associada à defesa de interesses específicos para além das simpatias ideológicas despertadas por outros governos ou presidentes, acrescenta Granovksi.

As ações do presidente argentino o posicionaram, sim, como referência para a extrema direita global. Sem nenhum poder, porque ele não vem dos Estados Unidos como Donald Trump ou do Brasil como Bolsonaro, mas de um país empobrecido, mas brilhante como um rockstar da direita alternativa.

Além de apoiar o genocídio aberto do governo fundamentalista de Benjamin Netanyahu contra a Palestina ocupada, em Gaza e na Cisjordânia, Milei acaba de se envolver mais com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e com o seu homólogo ucraniano, Volodymir Zelensky, através do qual prometeu ajuda militar, envio de armas e equipamentos, bem como ajuda humanitária, sem maiores especificações.

A expressão bastante dura de Lula sobre Milei foi feita ao ser questionado sobre a recepção que o governo argentino deu aos terroristas de Bolsonaro condenados pelo assalto à Câmara dos Deputados e ao Palácio do Planalto em 8 de janeiro de 2023 em uma trama golpista.

Na semana passada, a ministra das Relações Exteriores da Argentina, Diana Mondino, entregou ao Itamaraty uma lista de 60 fugitivos brasileiros que fugiram para a Argentina, em resposta a uma consulta anterior sobre o paradeiro de 143 apoiadores de Bolsonaro procurados pela polícia brasileira por violarem medidas de precaução. Lula destacou que o assunto é tratado “da forma mais diplomática possível” e que, “se os caras não querem vir [para o Brasil], que fiquem presos lá, na Argentina”.

Milei continuou a tensionar ainda mais as relações ao reafirmar tudo o que havia dito sobre Gustavo Petro e Pedro Sánchez, o que na época fez com que a Colômbia retirasse seu embaixador, embora mais tarde através de Mondino uma tensa normalidade tenha retornado. Entretanto, o governo espanhol retirou o seu representante diplomático da Argentina e Milei continua a atolar as relações.

Lula pede a extradição dos condenados por atentado à democracia; mas não é uma questão simples, já que a legislação argentina e do Mercosul é “restritiva” quando se trata de casos políticos.

A saída dos dois líderes não é novidade: em dezembro passado, Milei estendeu de última hora o convite ao chefe do Executivo brasileiro para o dia de sua posse. Dias antes ele havia convidado o ultradireitista Jair Bolsonaro, que não estava no poder há um ano.

Isso causa surpresa, pois a menos que se trate de alguém que não lê jornais, não se informa na TV ou no rádio, ou não tem assessores para mantê-lo informado, como político Milei teve que conhecer o acirrado conflito entre Lula e seu antecessor, observa Perfil. Além do mais, deveria ter informações sobre a tentativa de golpe de Estado que Lula sofreu em 8 de janeiro de 2023, com invasões aos prédios do poder em Brasília, Capital Federal, por forças bolsonaristas, acrescenta.

Esses dias marcaram 201 anos de relações diplomáticas entre Brasil e Argentina. O clima rarefeito atual é o oposto do de um ano atrás, quando o então presidente argentino Alberto Fernández (Peronista) viajou pela quinta vez para se encontrar com Lula.

As relações diplomáticas de Milei parecem complicadas nos últimos dias. Primeiro vieram as críticas do presidente libertário ao diretor para o Hemisfério Ocidental do Fundo Monetário Internacional (FMI), Rodrigo Valdés, a quem acusou de estar ligado ao Fórum de São Paulo e de ter feito “vista grossa” ao aumento no passivo acumulado no Banco Central durante a gestão de Alberto Fernández.

Lula tem consciência de que a relação com a Argentina é vital, mas quer manter uma certa distância de um líder que o insulta e que partilha a aliança global de extrema-direita com Donald Trump, Jair Bolsonaro e o partido espanhol Vox.

*Jornalista e comunicador uruguaio. Mestrado em Integração. Criador e fundador da Telesur. Preside a Fundação para a Integração Latino-Americana (FILA) e dirige o Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE).



 

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