As economias “obesas” multiplicam a pobreza. Foto: PNUD (Foto: PNUD)
As economias “obesas” multiplicam a pobreza
Por Sergio Ferrari, de Berna, Suíça - A crença generalizada de que o crescimento econômico resolverá o problema da pobreza no mundo é equivocada e perigosa. Olivier De Schutter, especialista independente das Nações Unidas, confronta as pseudoverdades da teoria econômica hegemônica e se distancia da retórica pró-sistema do crescimento que predomina em certas organizações internacionais.
Para o jurista belga que desde 2020 atua como Relator Especial das Nações Unidas (assessor externo independente) sobre Extrema Pobreza e Direitos Humanos das Nações Unidas, tal concepção empurra a civilização à beira do colapso climático e cria uma pequena elite de fortuna quase incalculável. Como contrapartida, 670 milhões de pessoas (8,4% da população mundial) vivem abaixo da linha internacional de pobreza, fixada em US$ 2,15 por dia. Em seu relatório-argumento-proposta Erradicar a pobreza além do crescimento, divulgado na primeira semana de julho, De Schutter argumenta que "os governos devem acabar com a perigosa fixação no crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) como forma de erradicar a pobreza, uma vez que é errado e leva o mundo a um caminho perigoso" (https://undocs.org/Home/Mobile?FinalSymbol=A%2FHRC%2F56%2F61&Language=E&DeviceType=Desktop&LangRequested=Fals).
Relatório desmistificador
Com base em mais de 130 contribuições de governos, de instituições de direitos humanos e de organizações da sociedade civil, o relatório do especialista, preparado para o Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, na Suíça, observa que muitas nações continuam agindo como se o crescimento infinito fosse possível. E adverte que "parecem acreditar que a atividade econômica pode expandir-se indefinidamente, como se a Terra fosse fornecer recursos ilimitados eternamente e absorver os resíduos resultantes da nossa ambição aparentemente interminável". Citando estudos de cientistas do clima, ele lembra que já em 2019, devido ao tipo de sistema de produção hegemônico mundial, 75% da superfície continental da Terra havia sofrido alterações consideráveis, 66% da superfície oceânica estava experimentando efeitos cumulativos crescentes, mais de 85% das áreas úmidas haviam sido perdidas. Além disso, um milhão de espécies enfrentarão a extinção em questão de décadas.
A importância dada ao aumento do PIB, de acordo com o relatório de De Schutter, acarreta consequências muito graves. Por exemplo, contribui para ofuscar a importância do trabalho doméstico e a necessidade imperiosa de valorizá-lo adequadamente. Os números falam por si: as 16,4 bilhões de horas gastas diariamente, sem remuneração, em cuidados pessoais diretos de crianças pequenas ou parentes idosos e em atividades indiretas de cuidado (como cozinhar, limpar ou coletar água ou lenha) equivalem aproximadamente a uma situação hipotética com 2 bilhões de pessoas trabalhando oito horas por dia sem qualquer compensação monetária. Em termos de salário mínimo por hora, cerca de 9% do PIB global. E se levarmos em conta que mais de três quartos desse trabalho doméstico não remunerado (76,4%) é realizado por mulheres, não precisamos fazer muito esforço para visualizar o impacto dramático da pobreza, precisamente, sobre as mulheres e a família.
Por outro lado, agrava o preocupante panorama de criminalização das pessoas em situação de rua e de pobres e evidencia a realidade cotidiana de homens, mulheres e crianças que vivem na rua e que são multados e penalizados de diferentes formas por atividades tão básicas como dormir, lavar-se, cozinhar, comer, mendigar e trabalhar na rua. Práticas repressivas que não só não resolvem o problema, mas também violam diretamente os direitos humanos históricos.
"Durante décadas, seguimos a mesma receita banal", explica De Schutter. "Primeiro para fazer crescer a economia e depois usar a riqueza para combater a pobreza", uma abordagem que "tem servido um prato intragável" de crise climática e centenas de milhões de seres humanos condenados à marginalização, o que o levou a questionar os pressupostos dessa filosofia. Entendido dessa forma, como panaceia e como prioridade, argumenta esse renomado professor de direito internacional, o crescimento desvia a atenção do que realmente importa: a erradicação da pobreza e a conquista do bem-estar de todas as pessoas, não apenas de uma minoria afortunada. Em sua opinião, as economias dos países ricos cresceram muito mais do que o necessário para que as pessoas prosperassem, a ponto de "se tornarem obesas". No entanto, conclui que, mesmo nesses países, o crescimento não conseguiu reduzir a pobreza e as desigualdades ou criar empregos.
A concepção econômica dominante por trás dessa fórmula de crescimento, segundo De Schutter, baseia-se na pilhagem dos recursos do Sul Global, "um modelo de dominação pós-colonial mantido pelo jugo da dívida externa". Nos países pobres, onde ainda são necessários investimentos significativos para construir escolas, hospitais, infraestrutura de transporte ou eletricidade, o crescimento poderia ser útil. Na prática, no entanto, muitas vezes tem sido vorazmente extrativista, motivado pela exploração de mão de obra barata e pelo uso insustentável dos recursos naturais. Para que o crescimento econômico contribua para o reconhecimento e para a afirmação dos direitos humanos, sua orientação deve mudar para "reorientar-se para a satisfação das necessidades e ser distribuído entre mais pessoas, em vez de simplesmente enriquecer os ricos e incentivar a dominação dos grandes atores econômicos". Nem mesmo "em países de baixa renda, onde o crescimento ainda é necessário e deve ser apoiado", continua De Schutter, "o desenvolvimento deve ser equiparado a um aumento do PIB, mas a um maior bem-estar social e ecológico". A denúncia não demora a chegar: "a fé cega no crescimento econômico é uma camisa de força para a nossa imaginação, enquanto a luta contra a pobreza sofreu muito como resultado disso".
Sim, existe uma alternativa: erradicar a pobreza com Direitos Humanos
As 20 páginas do relatório tiveram um impacto significativo no ambiente diplomático devido ao seu conteúdo, tão desafiador quanto alternativo a muitos outros relatórios de organizações financeiras e econômicas internacionais, repletos de sofismas. Prova disso são suas três recomendações fundamentais para destravar a complexa tensão entre o que o sistema hegemônico dominante busca, por um lado, e as propostas de solidariedade para reduzir a pobreza, por outro.
Em primeiro lugar, para promover o que De Schutter chama de Pacto para o Futuro, uma proposta "focada na realização dos direitos humanos, e não no aumento dos níveis agregados de produção e consumo". Trata-se de uma reformulação urgente da luta contra a pobreza, defendendo uma mudança para uma economia que direcione os recursos para os serviços públicos e a proteção social. Em segundo lugar, reestruturar e perdoar dívidas e financiar serviços públicos universais por meio de impostos progressivos sobre as heranças, as riquezas e o carbono. Por fim, buscar maior cooperação internacional contra a evasão fiscal, mecanismo sistêmico que multiplica a miséria em vastas regiões do globo.
Na proposta, o estímulo à economia social e solidária adquire uma importância essencial; a democratização do trabalho; novas formas de partilha do emprego e a luta frontal contra o consumismo. "A luta contra as desigualdades", argumenta, "se sobrepõe à luta contra o consumismo, entendido como o estímulo ao consumo por meio do marketing e da inovação permanente". Nessa perspectiva, é imperativo fornecer serviços básicos universais e aumentar a renda, garantindo o direito a um salário mínimo vital e a uma remuneração justa, fortalecendo a proteção social. Segundo De Schutter, "os governos devem investir na prestação de serviços básicos universais, garantindo que todas as pessoas tenham acesso a serviços que garantam o gozo dos direitos humanos: moradia adequada, assistência médico-sanitária, alimentação nutritiva por meio de cantinas escolares, água e energia, transporte e acesso digital”.
Esse documento, concebido como um pontapé inicial seguido de uma rodada de consultas para delinear um roteiro, seria proposto para discussão na próxima Cúpula do Futuro da ONU, em Nova York, nos dias 22 e 23 de setembro. No entanto, como adverte o Relator Especial, a transição desejada não pode ser alcançada de uma só vez, nem em nível local ou nacional. Em outras palavras, escapar da dependência do crescimento questionado pelo estudo exigirá estratégias plurianuais e a implantação de esforços intencionais em diferentes níveis de governança. A preocupação com o estado do meio ambiente também é central na proposta, pois se trata de "remodelar a economia para produzir bens e serviços ecologicamente sustentáveis e de maior utilidade social, e reduzir significativamente a produção desnecessária e excessiva".
No âmbito trabalhista, a proposta sugere rejeitar o PIB como indicador de progresso, garantir empregos apoiados pelo governo, revalorizar o trabalho doméstico e de cuidado familiar não remunerado, estabelecer salários mínimos e colocar um teto na riqueza gerada por indústrias destrutivas. "Essas são as políticas que podem, realmente, beneficiar o planeta e seus habitantes", argumenta De Schutter.
Existem três contribuições principais desse estudo propositivo que está em oposição direta ao ‘crescimentismo’. Em primeiro lugar, confrontar sem preconceitos ou temores as crenças cotidianas do sistema hegemônico global que condiciona a redução da pobreza a um maior crescimento insustentável. Além disso, compilar caminhos alternativos para avançar nessa luta social em larga escala, a partir de uma possível proposta, voltada para os direitos humanos. E, por último, mas não menos importante, que essas reflexões vêm do próprio coração das Nações Unidas e sejam articuladas por um especialista independente que pertence ao sistema da ONU. Tudo isso constitui um tapa na cara conceitual para aqueles que, beneficiando-se do sistema dominante, consideram irrealizáveis as alternativas globais já imprescindíveis para salvar o homem e o planeta.
Tradução: Rose Lima
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