A decisão de se manifestar e convocar uma Lei contra o Bolsonarismo na Praça Roosevelt foi uma virada lúcida diante da ameaça de Marçal. Foto de Leandro Paiva
A um mês das eleições, a ascensão do candidato neofascista Pablo Marçal desvirtuou as previsões tanto da esquerda como da extrema direita. Agora, a campanha de Guilherme Boulos não pode mais hesitar e precisa acertar a estratégia para vencer as eleições mais importantes do país.
Estamos a trinta dias do primeiro turno das eleições municipais no Brasil. O paradoxo da situação é que a situação econômica melhorou, porque os dados indicam que o PIB deverá confirmar um crescimento de 3% no final do ano, o desemprego está a diminuir, a inflação continua contida, mas a influência da extrema-direita é não diminui. Um paradoxo é uma contradição contra-intuitiva. A geringonça brasileira não funciona muito bem. O índice de aprovação de Lula continua acima de 50%, mas seu índice de desaprovação não caiu. Na maior cidade do país, o fenômeno eleitoral é o surgimento meteórico da candidatura de Pablo Marçal, um neofascista furioso que cresce, vertiginosamente. O perigo surge no horizonte.
Existem várias explicações possíveis. O Governo argumenta que a chave se deve às dificuldades de comunicação. Lula tem usado a imagem de que a “semeadura” já foi feita e basta ter paciência para colher a “colheita”. Outros argumentam que a melhoria da vida não atingiu a vida material de milhões de pobres, porque um PIB maior não é suficiente. Resumo do Filme: A expectativa era que as ações do governo Lula fossem decisivas na luta pela redução da audiência de Bolsonaro. Mas tem sido, pelo menos, insuficiente. O centrão, em suas duas alas, ameaça sair mais forte das eleições de 2024. Mesmo no Nordeste, onde o lulismo é mais poderoso, os candidatos do PT ficam atrás em Fortaleza, Natal, Aracaju e até em Teresina. Porque?
Vitória nas urnas, recuo na ideologia
Existe outra variável que não é mutuamente exclusiva das anteriores. A luta contra o neofascismo também ocorre no terreno ideológico. O bolsonarismo defende privatizar tudo porque o Estado é corrupto. Ele defende que cada um deve aspirar a ser seu próprio patrão, e que enriquecer é possível para quem tem “coragem” e acredita nisso, assumindo a ideia da teologia pentecostal da prosperidade. Ele defende menos impostos e menos regulamentações, mais polícia e menos ajuda familiar.
Marçal é uma ameaça para as mulheres, os negros e as pessoas LGBT. Mas a sua ascensão representa um perigo mortal para os trabalhadores. O seu programa está resumido numa ideia: capitalismo de choque selvagem.
Acreditamos que para haver um rico é necessário que existam cem pobres explorados, mas não denunciamos o capitalismo, mas sim a pobreza extrema. A esquerda já não diz em público que os direitos reprodutivos das mulheres e, portanto, a legalização do aborto, são uma questão de saúde pública, etc. Não vamos recuperar o tempo perdido numa campanha eleitoral de seis semanas. Seria estúpido. O paradoxo é que é Bolsonaro quem corre o risco de ser preso como golpista, mas é a esquerda que permanece na defensiva, ideologicamente. A extrema direita abraçou a defesa do discurso de Margaret Thatcher do capitalismo “popular” : o egoísmo pessoal contra a solidariedade social, a doutrina do neoliberalismo. Lula venceu, mas os valores mais básicos da esquerda são minoria na sociedade.
O que a esquerda deveria fazer diante da divisão da extrema direita
Até há um mês, o cenário previsível para as eleições em São Paulo era um segundo turno entre Guilherme Boulos e Ricardo Nunes. Este não parece mais um resultado tão claro. Estamos perante um novo fenómeno enorme, catastrófico e aterrador. As últimas duas semanas deixaram claro que existe a possibilidade de Marçal destituir Nunes e ir para o segundo turno. É incerto, é verdade. As duas correntes políticas nacionais mais poderosas continuam a ser o lulismo e o bolsonarismo, e a explicação está numa história de 45 anos de luta social. Entretanto, tem havido flutuações no grau de influência e na base eleitoral do PT. Mas o que mudou qualitativamente foi o espaço ocupado pelo PSDB, que estruturava o centro liberal-burguês, mas que foi devorado pela extrema direita em escala nacional.
O bolsonarismo se dividiu e Marçal vem ocupando o espaço de liderança na corrente neofascista.
Bolsonaro deu uma guinada brusca ao decidir apoiar Nunes e impedir Ricardo Salles. O cálculo foi feito por diversos motivos, sendo o mais importante a necessidade de ampliar suas alianças diante do perigo de prisão. Mas foi muito arriscado porque Nunes não inspira confiança na extrema direita. O bolsonarismo se dividiu e Marçal vem ocupando o espaço de liderança na corrente neofascista. A campanha de Nunes já entrou em pânico. A tática de atrair o voto ultrarreacionário sem laços excessivos com Bolsonaro fracassou. As próximas pesquisas nos dirão até onde chegou o crescimento de Marçal, mas devemos nos preparar para o pior. E também pelo impacto da marcha de 7 de Setembro.
A campanha é diferente da de 2022. Por quê? Três variáveis são fundamentais: 1) a avaliação do governo Nunes não é catastrófica, ao contrário da de Bolsonaro durante a pandemia, embora também não seja positiva, mas os campos da direita e da extrema direita estão divididos; 2) as classes médias estão divididas, mas é impossível prever se a parceria de Nunes com Bolsonaro terá sucesso, condição sine qua non para a vitória de Boulos; 3) o apoio a Lula está concentrado nas classes populares e a transferibilidade de Lula já foi espetacularmente demonstrada na eleição de Haddad em 2012, mas a rejeição a Boulos é muito alta. Há outros dois elementos importantes: 1) não há dissidência burguesa apoiando Boulos, ao contrário de Lula em 2022, que teve Alckmin e uma fração minoritária, mas influente, da classe dominante ao seu lado desde o primeiro turno, e é improvável que haja uma mudança no segundo turno; 2) Lula venceu na capital e a rejeição a Bolsonaro continua acima de 60%, o que sugere que Boulos poderá vencer se ocupar esse espaço, mas terá que buscar pelo menos 10% dos votos em uma parte do eleitorado que ele não vota para a esquerda.
Uma derrota em São Paulo teria consequências devastadoras. Uma vitória será um impulso vital para derrotar Bolsonaro em 2026.
Se estas premissas estiverem corretas, deverão apoiar algumas conclusões. A questão tática central é que esta eleição é a mais decisiva de todo o país e é possível lutar para vencer. Não há nada mais importante. A esquerda tem poucas chances em todas as outras capitais, com exceção de Porto Alegre e Teresina, o que não é muito animador. Em Belém, a reeleição de Edmílson Rodrigues, do PSOL, ainda é possível, mas difícil. Uma derrota em São Paulo teria consequências devastadoras. Uma vitória será um impulso vital para derrotar Bolsonaro em 2026. Ninguém sabe como será 2025, com as eleições nos EUA em Novembro e o perigo de uma vitória de Donald Trump. Sem um compromisso militante com o ativismo de esquerda, não será possível vencer.
O fenômeno Marçal
Uma metástase ocorreu em São Paulo. A metástase ocorre quando um tumor se espalha. Não parece que a onda de Marçal possa ser detida. Marçal atrai magneticamente a parte mais radicalizada da extrema direita de Bolsonaro. Engana-se muito quem pensa que há incompatibilidades entre Marçal e Bolsonaro. Existem tensões táticas, mas unidade estratégica. A candidatura de Marçal não é apenas uma “onda” na Internet. É uma avalanche. Está crescendo muito rapidamente e, por enquanto, enganaram-se todos aqueles que apostaram que seu teto seria o núcleo duro do bolsonarismo. Ninguém pode saber qual será o seu teto.
Nos últimos quinze dias, a presença de Marçal contra Boulos no segundo turno tornou-se mais provável a cada votação eleitoral. O efeito contratendente do latifúndio de tempo de Nunes na rádio e na TV aberta parece insuficiente para estancar a hemorragia. Marçal devora o espaço de Bolsonaro e parece capaz de espalhar ainda mais simpatias.
O erro mais grave da esquerda brasileira foi subestimar os neofascistas desde 2018. Enfrentá-los de frente, sem hesitações, não deveria ser apenas um cálculo eleitoral.
Do primeiro debate na TV Bandeirantes, ao último na TV Gazeta, entrevistas na mídia, entrevistas em jornais, até o Roda Viva na TV Cultura, fica claro que Marçal é um quadro. Sua ascensão meteórica não é a magia dos algoritmos de mídia social. A extrema direita é um movimento político dinâmico e muito ativo no Brasil, embora Bolsonaro não tenha construído um partido. Não será ignorando o inimigo que ele será derrotado. O erro mais grave da esquerda brasileira foi subestimar os neofascistas desde 2018. Enfrentá-los de frente, sem hesitações, não deve basear-se apenas em cálculos eleitorais. É um compromisso de classe. São uma ameaça às liberdades democráticas mais básicas. Marçal é uma ameaça para as mulheres, os negros e as pessoas LGBT. Mas a sua ascensão eleitoral é um perigo mortal para os trabalhadores. O seu programa resume-se numa ideia: um choque do capitalismo selvagem. Ou a destruição de todas as pequenas mas valiosas conquistas alcançadas desde o fim da ditadura.
Há uma sólida unidade burguesa para evitar que Boulos chegue ao segundo turno em primeiro lugar, porque seria uma vitória tão espetacular que o colocaria numa posição de imensa vantagem para triunfar no segundo turno. Eles temem o efeito de “transferência”. “Boulosfobia” traduz-se numa “naturalização” de Marçal. Mas Marçal não é “normal”, quaisquer que sejam os critérios de avaliação. O presidente do PRTB, partido herdeiro da candidatura de Collor em 1989, admitiu ter relações com o Primeiro Comando da Capital (PCC). A carreira de Marçal é a de malandro, de vigarista, de vigarista.
Nenhum meio de comunicação foi obrigado a convidá-lo para debates. Se o fizeram foi porque apostavam que seria uma candidatura marginal e estranha, mas útil para facilitar um posicionamento de Ricardo Nunes no centro contra os dois extremos. As acusações contra ele não foram suficientes. O monstro está fora da coleira. Até Bolsonaro, que tinha concordado com Nunes, agora recua e deixa “um pé em cada canoa” indefinido. Isto é insustentável. A prova de fogo virá no dia 7 de setembro, quando Bolsonaro se mobilizará pelo impeachment de Alexandre de Moraes na Avenida Paulista.
O que fazer
Boulos é um candidato com qualidades extraordinárias. Conquistou o direito de representar a esquerda em São Paulo com 25 anos de militância ao lado das massas populares e construindo o MTST como o maior movimento social por moradia do país.
A Frente de Esquerda foi um dos momentos mais inteligentes da esquerda. Uma divisão no primeiro turno seria fatal. Mas se for verdade que é possível vencer, qualquer ilusão de que a vitória está ao nosso alcance seria fatal. Estamos diante de um empate técnico, com Boulos na liderança e crescendo na votação espontânea. Mais da metade dos eleitores de Lula em 2022, quando ele derrotou Bolsonaro, ainda não associa Boulos a Lula. Esta deve ser a primeira tarefa dos dois minutos do tempo eleitoral e da campanha nas redes e nas ruas durante as próximas duas semanas. Metade da população ainda não está concentrada nas eleições.
A decisão de se manifestar e convocar uma Lei contra o Bolsonaroismo na Praça Roosevelt foi uma virada lúcida diante da ameaça de Marçal.
A campanha enfrenta agora o desafio de responder às mudanças das últimas duas semanas. Já não bastava defender propostas, divulgar marcas como o Poupa Tempo para a saúde ou a educação integral e tentar diminuir a rejeição de Boulos. A decisão de se manifestar e convocar um comício anti-Bolsonaro na Praça Roosevelt foi uma reviravolta lúcida face à ameaça de Marçal. Era preciso entusiasmar os militantes numa grande Assembleia Geral e apelar ao compromisso dos grupos de ação.
Nenhum dos candidatos dialoga com o time paulista. Assim como o Brasil, a cidade está politicamente fraturada. Um terceiro simpatiza com a esquerda e outro com a extrema direita. Dois medos medirão a força. A esquerda só conseguirá vencer se o medo da extrema direita for maior que o medo de Boulos.
Nas últimas duas semanas antes do 6 de outubro, daqui a um mês, será inegável a pressão a favor do voto útil, de uma eleição tática para evitar o pior. As pessoas fazem cálculos. Os da esquerda excluem qualquer contestação de Marçal. Aqueles que são apoiadores de Bolsonaro assediam Boulos. Mas há três milhões de pessoas para contestar. Não será possível combater dois adversários simultaneamente, com a mesma intensidade, por tempo indeterminado. A campanha exige sangue frio. Não muito cedo, mas não muito tarde, será necessário jogar. Será inevitável. A “mão” não pode tremer. Teremos que correr riscos. Além disso, embora ambos estejam disputando o apoio de Bolsonaro, Marçal é um neofascista. Como num jogo de bilhar, quando uma bola se move para rebater nas outras, na tática eleitoral não basta fazer uma campanha educativa, defendendo um projeto. É preciso encontrar uma forma de aumentar a rejeição do adversário e atrair os votos daqueles que não têm chance de chegar ao segundo turno.
Datena pode desistir ou não, mas sofrerá o mesmo destino de Russomano , e desinchará. Alguns deles podem vir a apoiar Boulos. Tal como uma parte do eleitorado que não é de esquerda, mas tem mais medo de Marçal do que de Boulos. Tabata voa sozinho – afinal, o PSB não passa de um partido de aluguel, até Skaf de Fiesp foi candidato “socialista” – e quer herdar um espaço entre o eleitorado de Boulos e de Marçal, se a hemorragia de Nunes for imparável. Serão quatro semanas barulhentas. Mas há muito em jogo, porque a possibilidade de vitória do Boulos é real.
VALÉRIO ARCARYHistoriador, militante do PSOL (Resistência) e autor de O Martelo da História. Ensaios sobre a urgência da revolução contemporânea (Sundermann, 2016).
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