Fontes: Opera Mundi (Brasil) [Imagem: Graffiti de Karl Marx rotulado na seção do antigo Muro de Berlim conhecida como East Side Gallery. Créditos: Pixabay, retirado da Fundação Perseu Abramo]
Por Frei Betto
«Se a esquerda brasileira não tirar Paulo Freire das prateleiras, reabrir equipes e escolas de educação popular, formar militantes para trabalharem ao lado das classes populares, assumir a ética como princípio inegociável e mudar o projeto de poder pelo projeto do Brasil, sofrerá em 2026 a sua pior derrota desde o fim da ditadura em 1985", conclui o autor.
Como se dizia muito corretamente à luz das categorias marxistas, a correlação de forças mudou. Após a Segunda Grande Guerra, o avanço da União Soviética e o triunfo da Revolução Chinesa (1949), estabeleceu-se no mundo um equilíbrio pendular que ficou conhecido como Guerra Fria.
Os países capitalistas metropolitanos, especialmente os da Europa Ocidental, adoptaram políticas social-democratas que beneficiaram a classe trabalhadora. O objectivo do Estado de bem-estar social era evitar ser arrastado para a agenda comunista. A elite entregou os anéis para não perder os dedos.
Antonio Candido disse que a maior conquista do socialismo não ocorreu nos países que o adotaram, mas na Europa Ocidental, que, temendo-o, concedeu direitos aos trabalhadores. Depois da queda do Muro de Berlim (1989), os direitos também entraram em colapso.
Dado que Hitler e Mussolini encarnavam o que era considerado certo, assumir-se como tal era considerado politicamente incorreto. No Brasil, após a redemocratização (1985), na polarização partidária, o PT representava a esquerda e o PSDB a direita, mesmo quando as iniciais do partido eram as de social-democracia.
Com a dissolução da União Soviética (sem que fosse disparado um tiro) e a derrubada do Muro de Berlim, a direita decidiu “sair do armário”. Hoje a polarização ideológica não é aquela entre esquerda e direita, mas entre direita e extrema direita, como exemplificado por Kamala e Trump. No Brasil (como na Espanha, na Argentina e em outros países), diante do avanço da extrema direita, boa parte da direita tenta se disfarçar de “centro”. É o caso do PDT, do MDB e outros, que não defendem uma sociedade pós-capitalista.
A eleição de Trump é a cereja que faltava no bolo da ascensão da direita no mundo. Sem dúvida, anabolizará a extrema direita no Brasil. A diferença entre a direita e a extrema direita é que a primeira respeita, mesmo em parte, as regras da democracia burguesa; a segunda os ignora e adota medidas autocráticas. O tema foi tratado exaustivamente por autores como Roger Eatwell, Matthew Goodwin e Cas Mudde.
Como estão os partidos progressistas como o PT, o PSOL, o PCdB, a UP e outros? Do jeito que as coisas estão (a eleição de Trump e o resultado das eleições municipais no Brasil) dificilmente alcançarão um número significativo de votos nas eleições de 2026.
O próximo Congresso, a ser eleito em 2026, será tão ou mais conservador que o atual. Como esse resultado é garantido? Com o orçamento secreto, agora apelidado de emendas parlamentares. Nenhum chefe municipal ou estadual correrá o risco de perder esse doce na próxima legislatura federal. Quem vai querer abrir mão de uma cornucópia de onde fluem anualmente bilhões de reais que embolsam os 81 senadores e 513 deputados federais?
Que alternativas têm os partidos de esquerda e progressistas? Um dos desafios é lidar política e profissionalmente com as redes digitais. Você não pode depender de iniciativas pessoais ou de grupo. Se um partido quiser difundir mensagens (análises da situação, dados do governo progressista, desmentidos de notícias falsas ou ' fake news ' da direita, etc.) tem que ter profissionais especializados em meios digitais e politicamente identificados com as propostas da esquerda. Não se deve repetir o erro de certas campanhas eleitorais de candidatos de esquerda cujos especialistas em marketing são de direita... Devemos ter equipas que troquem a cada oito horas para funcionar 24 horas por dia, de domingo a domingo. E o conteúdo veiculado deve ter linguagem popular e forte impacto visual.
O que levou Lula à presidência da república três vezes? Não foi a experiência de especialistas em marketing ou de alianças partidárias, mas sim o trabalho de base da educação política, que acumulou uma grande quantidade de capital eleitoral à sua volta. Foi um trabalho desenvolvido em todo o Brasil a partir da década de 1970 pelas comunidades de base das Igrejas Cristãs, pelos movimentos populares, pelo sindicalismo combativo, pela militância remanescente da luta contra a ditadura. Um trabalho realizado com a pedagogia de Paulo Freire.
Por que as classes populares dos EUA votaram em Trump? Por que existem “pobres à direita”? Por que é que no Brasil só a direita consegue organizar manifestações com um número significativo de participantes?
Tomemos o exemplo de Dona María. Ela trabalha como empregada doméstica e se sente excluída, oprimida, condenada à invisibilidade. Ele desejava, naturalmente, sair daquele círculo infernal. Ela sonhava, como todo ser humano, em ser reconhecida e respeitada socialmente. Não bastava ter nome, documentos de identidade e emprego para garantir apenas a sua sobrevivência e a dos seus dois filhos. Queria “algo mais” que lhe proporcionasse uma identidade social, fossem bens materiais (moradia, escola para os filhos, maior renda, saúde) ou bens simbólicos (cultura, qualificação profissional, aprimoramento de suas habilidades artísticas).
María sentiu-se humilhada pelo árduo trabalho diário. Abandonada pelo marido, ela buscou conciliar o trabalho de empregada doméstica com o cuidado dos filhos. Além de trabalhar muito, passava várias horas por dia no transporte público e sabia que era socialmente invisível. Seu filho adolescente queria que pelo menos alguns tênis de grife fossem reconhecidos socialmente. Os sonhos de consumo poderiam torná-lo vulnerável aos tentáculos do crime.
Tudo mudou no dia em que María entrou numa comunidade religiosa que a trata como uma “irmã”, se interessa pela sua vida e a ajuda a superar as dificuldades. Para consolidar esse reconhecimento, ele abraçou a ideologia da comunidade. O pastor ou padre convenceu-a de que a sua sociedade – capitalista – oferece oportunidades a todos, basta abandonar os vícios. Portanto, ele parou de gastar seu salário cada vez menor em jogos de azar e cigarros. Agora ele considera as famílias ricas em cujas casas trabalha abençoadas por Deus graças à prosperidade alcançada. Embora continuem a considerá-la uma “ninguém”, María aprendeu na Igreja que Deus a ama como a uma filha e isso alimenta a sua autoestima.
Mesmo que o governo dê a María uma casa própria graças ao programa Minha Casa Minha Vida e uma renda adicional através do Bolsa Família , e embora seus filhos tenham escola e um emprego, María não dará o salto epistêmico da direita ideologia à da esquerda.
Todos os meios de comunicação que rodeiam María (a cultura que ela respira, as famílias que a contratam, a televisão, a rádio, as redes digitais no seu telemóvel) inocularam-na com a naturalização do sistema capitalista. Como aponta o sociólogo norte-americano Seymour Martin Lipset em sua obra Political Man , María admira pessoas ricas e poderosas, e vota em políticos que prometem combater a politicagem e a corrupção e lidar com criminosos e traficantes de drogas com mão de ferro.
Maria só dará o salto epistêmico se participar de outra comunidade, que a convença de que Deus não criou o mundo para que a humanidade se dividisse em pobres e ricos, nem para que exista uma sociedade onde poucos embolsam muito e muitos clamam por um prato de comida. Ou se você aderir a um movimento popular que, além de se organizar para adquirir a casa própria ou um espaço no campo onde possa produzir, lhe ofereça uma educação política que lhe permita compreender as causas das desigualdades sociais, da criminalidade, da dependência de drogas .
Na cabeça de María, homens como Trump ou Bolsonaro merecem a sua admiração, porque são duros com o crime e é por isso que os 'chorões' os acusam injustamente de todo tipo de mentiras. María não sonha em ter a vida das senhoras para quem trabalha. Ele sonha em andar pelas ruas sem medo de ter a carteira ou o celular roubados, de ver os filhos empregados, de ter esgoto e ruas asfaltadas em seu bairro.
Ele nunca imaginou que se houvesse menos pessoas ricas na sociedade, também haveria menos pessoas pobres. Ele nunca teve a oportunidade de receber educação política. Portanto, votem com confiança na direita, como a maioria dos eleitores americanos votaram em Trump, convencidos de que ele fará a roda da história girar na direção oposta e o sonho (norte)americano se tornará uma realidade para todos.
Se a esquerda brasileira não tirar Paulo Freire das prateleiras, reabrir equipes e escolas de educação popular, formar militantes para trabalharem ao lado das classes populares, assumir a ética como princípio inegociável e mudar o projeto de poder pelo projeto de Em 2026, O Brasil sofrerá sua pior derrota desde o fim da ditadura em 1985.
Frei Betto es autor, entre otros muchos libros, de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco). Livraria virtual: freibetto.orgTradução: Cubadebate.Fonte (da tradução): https://www.cubadebate.cu/opinion/2024/11/12/la-victoria-de-trump-y-el-futuro-de-la-izquierda/
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