“O êxtase de Santa Teresa”, de Bernini. Foto: Napoleon Vier (WikiCommons).
No início do século XXI, um “cidadão de bem” que a qualquer horário cruzasse a praça da República, no centro de São Paulo, receberia o seguinte convite das meninas apoiadas na Igreja Matriz: “Olá, gatinho, vamos gozar?”. O apelo obsceno mais do que uma quebra do ritual de encontro com o outro – no qual controlamos nosso desejo reforçando a tensão e, portanto, aumentando a capacidade de desejar – pode ser usado como um dos referenciais da nossa atual economia libidinal: uma foda para desestressar. Para nossos insensíveis olhares tudo parece sempre ter estado lá, compondo o quadro cintilante da cidade; cinemas pornôs, clubes do sexo – que com a falácia de proteger as prostitutas regulam a superexploração do trabalho sexual –, casas de swings etc., etc.
“A prostituição sempre existiu!”, dirão uns. “Ela sempre foi um negócio rentável!”, dirão outros. E, tirando o caráter a-histórico da conclusão, essa posição não é de toda errada. Entretanto, se a prostituição “sempre existiu” sua relação com a indústria cultural é recente.
Quem hoje anda pela Times Square – diante de painéis eletrônicos que esbanjam roupas, carros, perfumes e modelos – nem imagina que aqueles prédios eram usados para experiências sexuais que incluíam o assassinato quase diário de prostitutas, trans e travestis. O radical impulso à pornografia se deu nessa avenida de Nova Iorque e, não por acaso, nos idos dos anos 1970, quando a forma de profissionalização do cinema do sexo, sob o influxo da assim chamada “libertação sexual”, ocorria.
Paul Preciado, ao pensar na criação da Playboy em seu livro Pornotopia, busca demonstrar a encarnação de uma nova utopia erótica e popular. Meu caminho, porém, é outro; tento fazer o olhar se voltar para um novo regime que recai em nossa economia libidinal alguns anos depois da invenção da Playboy.
Aliás, o peeping show, realizado na grande avenida novaiorquina, talvez tenha sido a primeira forma de flexibilização do trabalho. Com atuação sexual explícita, garotas nuas performavam cenas de sexo, cuja retribuição era dada na correlação com a parte do corpo exposta. Agora, não se tratava mais de um único cliente e o horário já não era somente o noturno. Um palco era ladeado por várias cabines fechadas, nas quais clientes, respeitáveis (ou não), depositavam dólares e observavam as poses por uma portinhola. A cada crédito se revelava um detalhe, e o ápice era o orgasmo da própria atriz – ou seu fingimento – ao chegar à meta.
Aí está o embrião do strip-tease virtual ou do Onlyfans: a vanguarda de um mercado do gozo escópico –atrelado à indústria pornográfica e à economia libidinal do olhar, depois domesticada pelos aparelhos eletrônicos que demonstram uma alteração profunda na relação entre a lei e a transgressão. Por isso, gosto de afirmar por aí que a flexibilização do trabalho foi antes a flexibilização do trabalho sexual. Para se ter uma ideia, hoje, só nos EUA, a indústria pornográfica movimenta 2,84 bilhões de dólares; e no Brasil pelo menos 22 milhões de pessoas dizem consumir pornografia. Levando em consideração o conservadorismo do país e o medo de se identificar como punheteiro, pode-se estimar que o número de consumidores seja muito maior.
Mas a minha questão não é com a pornografia em escala industrial. Que São Marx das Causas Proletárias me livre do tom conservador! Aqui se trata de outra coisa: a industrialização da pornografia desenha uma mudança radical nas formas de repressão no capitalismo. Sob a insígnia do gozo fácil – uma ideologia no sentido mais obsoleto do termo –, está o outro lado da moeda: para se satisfazer temos antes que enfrentar a dor; sem dor, sem ganho (No pain! No gain!).
Na entrada à era da eficiência e da flexibilização, marcando a racionalidade neoliberal, aquilo que orientava a lei ante o desejo se perde só na aparência, pois o mestre (patrão), que ditava regras claras, é substituído por um eu, que vai impor suas próprias leis – do it yourself (faça você mesmo) – tomando o lugar do patrão.
Não é acidental que tais prognósticos comecem a ser elaborados por Lacan depois de 1968 – o chamado desejo por um mestre. A virada lacaniana, em relação ao que forja o sujeito, permite observar que a posição que organiza a subjetividade não trata apenas de uma imposição direta e coercitiva, mas nela o discurso está inscrito como realidade a animar à ação e orientar formas possíveis do desejo; este, por sua vez, se inscreve na relação de mediação com a alteridade. Se as formas de organização libidinais se alteram é porque algo na relação social também se alterou.
Vemos no final dos anos 1960 uma repressão com sinais trocados: se antes a fruição com o gozo era impedida, no final dessa década a chamada liberação sexual ocorre em consonância com uma outra relação com o desejo. O desejo será sequestrado pela demanda de gozo na emergente sociedade do consumo. Muitos lacanianos hoje, entretanto, se aliaram de maneira atabalhoada à ideia de que houve a morte do pai simbólico, e isso foi fundamental à sociedade narcísica atual. Mas será que o pai morreu de fato?
Me parece, ao contrário, que o pai só inverteu a ordem: se satisfaça, porém, há um longo caminho para essa satisfação. Se a verdade se tornou um momento do falso, como dizia o bom Debord, deveríamos pelo menos observar as mediações da falsidade ideológica da noção de satisfação imposta direta ou indiretamente em todos os meios de comunicação hoje. Se nos detivermos e formos além das brumas ideológicas que sustentam esse discurso, veremos que a noção de satisfação – a busca pelo gozo – vem acompanhada por um tremendo esforço diário de tornar-se o próprio patrão de si, ou melhor, o próprio capataz de si, com chicote na mão – haja vista a explosão do burnout.
Para entender essa mudança paradigmática devemos observar que dois casamentos da modernidade clássica chegaram ao fim: primeiro, a união matrimonial do capital/trabalho; e, segundo, o da união afetiva de Estado-nação. Enquanto, graças à produtividade, o dispêndio da força de trabalho humana na produção se tornou escasso – levando à crise permanente do capitalismo pós-fordista; o Estado se viu obrigado a tornar-se um operador financeiro, criando regras claras para a (des)regulamentação em busca de garantias para investimentos do capital transnacional. Tudo operacionalizado por uma revolução interna da comunicação que, ao permitir a interconexão de mercados globais, organizou uma nova temporalidade, na qual o espaço é reduzido à logística.
A radicalidade dessa transformação, que apresentou o novo espírito do capitalismo – uma modernização sem critérios teleológicos de progresso; mantra que serviu ao capitalismo pesado da era fordista –, causou também uma ruptura na estrutura simbólica. A ideia de futuro, de segurança no trabalho, de formação, de estabilidade etc. danou-se, e no seu lugar assumiram-se novos mandamentos: especialização, flexibilidade, eficácia, satisfação, et caterva. Com a modernização tardia, para lembrar Ulrich Beck, consolidada por uma rede global de comunicação estruturada pelo sonho cibernético; com a possibilidade de uma engenharia organizada pela reestruturação produtiva, que teria fracassado não fosse a revolução das intercomunicações; e com a aceleração social causada pelos fluxos de mercadorias, se organizou uma nova cosmovisão. É nesse ponto que se transforma também a nossa relação com a economia libidinal.
Num livro bem interessante, Bifo argumenta que isso reordenou as formas que condicionam o inconsciente.1 Se antes a repressão marcava seu critério, hoje a liberação – o ter que gozar de qualquer maneira – marca a realidade de nossos afetos. A fortuna do capital é que o gozo se estrutura justamente pelo adiamento, que reordena o desejo, e esse adiamento do gozo (digamos, final) capturado pelo consumo é que acompanha a recomposição do circuito da mercadoria.
Na mega aceleração do fluxo das mercadorias, o tempo do indivíduo é colonizado na sua integralidade. Seja com a conexão do trabalho, seja com o lazer conectado, o engajamento na dominação de si promove uma (de)formação ligada aos pressupostos da ampla privatização do espaço público e publicização da vida privada, reunidas sob o pressuposto tirânico da satisfação. O advento da era da informação, por meio da consolidação de um espaço virtualmente real para manutenção de fluxos acelerados, organizou uma relação com a satisfação mediada por algoritmos e captura da informação do futuro consumidor.
A base desse processo está na alta produtividade; na dispersão de células de produção ao redor do globo; na logística interconectada do processo que organiza a demanda Just in time, e; nos mercados interligados que possibilitam a rede de fluxos de mercadoria.
Todo esse processo eliminou os antigos laços de solidariedade organizados pela relação imediata com o outro e mediada pelo lugar do trabalho, exercido de maneira coletiva. Não temos mais um único lugar de trabalho e sabemos que aqueles lugares que nos restaram não durarão muito. No momento em que a crise do mundo do trabalho se torna radical, paradoxalmente trabalhamos muito mais para manter o mesmo padrão de vida e sofremos mais acreditando na futura satisfação realizada pelo gozo consumidor.
Ao individualismo exacerbado pela concorrência e ao isolamento de um trabalho nômade responde-se com uma permanente busca pela satisfação – o desejo, capturado pela demanda consumista, perde-se na amplidão das escolhas. Por isso, ao se transformar a forma de reprodução social, transforma-se também a forma de se relacionar com o gozo. É nesse ponto que, no capitalismo tardio, parece ocorrer a redução do desejo à demanda, e isso altera de maneira radical as formas de repressão e organização da estrutura libidinal. Se nos Estudos sobre a histeria2 Freud e Josef Breuer demonstravam que a somatização histérica ocorria de maneira geral pela repressão (recalque) do desejo – o desejo voltava travestido de sintoma –, agora o imperativo da satisfação, demonstrado, em primeiro lugar, pela popularização da pornografia, se atrela ao supereu que se desvincula do campo do outro da castração (lei). É evidente que a castração não deixa de se realizar, mas ela é intervertida no seu contrário: castra-se a castração. Casam-se, finalmente, duas posições até então incompatíveis: a conciliação entre a necessidade do capital e a organização da demanda libidinal; uma demanda que tem como critério a satisfação por meio de um tremendo esforço individual, que mais lembra uma sobrevivência.
Atrelado à esfera de consumo mercadológico, o gozar se torna um imperativo e um dever do sujeito. Temos uma virada: se os sofrimentos psíquicos, até meados do século XX, se ligavam de maneira geral à repressão, agora o imperativo do gozo, atrelado à mercadoria, impõe a autorrepressão e o autocontrole na busca de realização da satisfação. Se na época fordista se traçava limites claros e regras estritas para os desempenhos individuais, agora, o mais importante é desejar a regra, internalizá-la e reproduzi-la na forma do gozo mercadológico. Um gozo de fachada, diga-se de passagem, sob o qual muito sofrimento é permitido.
Agora se trata do Outro da castração que, ao invés de impor o recalque como princípio ordenador da economia libidinal – lembremos Freud e a figura do pai autoritário –, ideologicamente impõe a satisfação como meta a ser realizada na exata medida em que contribui para a fé na dor como ponte a ser atravessada. Se o gozo da demanda repõe o ciclo do consumo, isso, talvez, explique em parte como a frustração se torna a perda do desejo de desejar ou a busca acelerada por novas formas de satisfação, levando à depressão e à ansiedade milhares de pessoas. No Brasil os casos são alarmantes, na última pesquisa realizada pela USP, “o Brasil liderava com mais casos de ansiedade (63%) e depressão (59%), seguido, respectivamente, da Irlanda e dos Estados Unidos”.
A sagaz transformação da repressão se explica pela forma como ela atrelou o suplemento do gozo à oferta no mercado. A produção massiva de objetos para o gozo, prometendo a completude, recoloca o processo de circulação das mercadorias e impõe a expansão do consumo. Mas, não nos enganemos, como parte de nossos amigos lacanianos, a lei permanece intacta: atingir a satisfação requer uma escala de trabalho extenuante, um horizonte de expectativas sociais depreciado e a internalização de uma ideologia normativa repousada no No Pain! No gain!
Isso constrói sem dúvida um novo paradigma da repressão, cujo imperativo passa a ser: “você tem que gozar!”. Mas o que muito raramente se faz é concluir essa frase: “você tem que gozar, para isso, porém…” A indústria pornográfica, nesse processo, foi tão somente a porta de entrada para uma nova forma de repressão muito mais sofisticada, na qual quem não goza é um loser. Assim, o pai fordista foi tão somente substituído pelo toyotista e pós-moderno, este muito mais sútil na sua repressão porque nos faz internalizar a norma sob a forma da infindável satisfação própria ao consumo, acompanhada de um puta sofrimento.
“E, aí, gatinhos e gatinhas, vamos gozar?”
Notas
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