PAUL LE BLANC*
A revolucionária alemã afirmava sobre a necessidade de uma democracia genuína para um socialismo genuíno, assim como advertia contra as violações da democracia pelo regime bolchevique no período pós-Revolução
“Um século após a morte de Rosa Luxemburgo, seu coração revolucionário ainda bate alto”, afirma a biógrafa Dana Mills.[i] A revolução era inseparável de tudo o que ela era e de tudo o que tinha a dizer. “Em certo sentido, isso entra em conflito com a estrutura temática escolhida para asComplete Works [Obras Completas]. O volume 5 é a última parte de três volumes dedicados ao tema “revolução”, após dois volumes iniciais dedicados ao tema “economia”. Ainda assim, esses cinco volumes formam um todo coeso com o restante da série.[ii]
Essa centralidade da revolução permeia a qualidade do pensamento e da expressão de Rosa Luxemburgo, garantindo que o marxismo que ela personificava vibre com uma energia, um humor crítico e criativo, infundidos de sensibilidades radicalmente democráticas e internacionalistas. Essas sensibilidades animam as suas análises econômicas, que, por sua vez, refutam a noção de que o capitalismo pode ser gradualmente reformado até o socialismo.
Os debates sobre reforma ou revolução ganharam força dentro do Partido Social-Democrata da Alemanha (PSDA), que foi a casa política de Rosa Luxemburgo durante a maior parte de sua vida política. Por volta de 1909, ficou claro que a direção oficial do PSDA favorecia negociações sindicais morosas combinadas com um programa legislativo sustentado em vitórias eleitorais e levado adiante por meio de manobras parlamentares. Mas as análises econômicas, políticas e culturais combinadas que se encontram nos escritos de Rosa Luxemburgo reafirmam que tal moderação reformista é incapaz de enfrentar o implacável e voraz processo de acumulação capitalista, com seu militarismo, imperialismo e – sempre que necessário – violência autoritária e assassina. Tal compreensão se conecta intimamente com a orientação revolucionária de Rosa Luxemburgo sobre a “greve de massas”, brilhantemente elaborada nos volumes 4 e 5.
Seja como membro do Partido Social-Democrata da Alemanha ou do Partido Comunista da Alemanha (que ela ajudou a criar pouco antes de sua morte), a orientação socialista revolucionária de Luxemburgo se manteve consistente ao longo da vida. Ao mesmo tempo, houve uma evolução complexa. No restante de meus comentários, gostaria de me concentrar na relação de Rosa Luxemburgo com o comunismo – particularmente com Vladímir Lênin, o bolchevismo em sua fase inicial e a Revolução Russa.[iii]
Em primeiro lugar, pode ser útil identificar cinco fases na relação de Rosa Luxemburgo com Lênin.
(i) Dos anos 1890 até 1902, Rosa Luxemburgo e Lênin parecem ter tido trajetórias um tanto semelhantes – tornando-se intensamente ativos na ala revolucionária do movimento socialista mundial, vendo o Partido Social-Democrata da Alemanha (PSDA) como uma forma ideal de organização, considerando seu principal teórico, Karl Kautsky, um mentor excepcional, ao mesmo tempo em que se engajavam seriamente e abraçavam a teoria marxista como guia para a ação. Seu primeiro encontro, em maio de 1901, incluiu discussões sobre possibilidades de colaboração política.
(ii) Na esteira da cisão entre bolcheviques e mencheviques, em 1903, dentro do Partido Social-Democrata Russo (POSDR), Luxemburgo se inclinou para os mencheviques, que retratavam Lênin como um hipercentralista autoritário. Esse foi o tom de seu ensaio polemicamente analítico, “Questões Organizativas da Social-Democracia Russa”, uma resenha amplamente lida do panfletoUm passo à frente, dois passos atrás, que por sua vez é um relato de Lênin sobre a cisão. Publicado em Die Neue Zeit, o prestigioso periódico teórico do PSDA, sua resenha não recebeu de Lênin uma denúncia intolerante, mas uma resposta respeitosa e esclarecedora (que Die Neue Zeit escolheu não publicar).[iv]
(iii) Na esteira da Revolução de 1905, orientações políticas convergentes aproximaram Lênin e Rosa Luxemburgo. Em sua correspondência, Luxemburgo descreve várias discussões com Lênin nesse período, comentando: “Gosto de conversar com ele, é inteligente e bem-educado, e tem uma cara tão feia, do tipo que gosto de olhar”. Foi nesse período que ela escreveu uma defesa de Lênin em “Blanquismo e Democracia Social”, respondendo a uma polêmica do líder menchevique George Plekhanov.[v]
(iv) Os eventos de 1911-12 os afastaram. Rosa Luxemburgo e seus camaradas poloneses se opuseram ao esforço de Lênin para criar um POSDR dominado pelos bolcheviques na conferência de Praga, em 1912. Rosa Luxemburgo expressa suas opiniões de forma bastante clara e contundente em “Credo” (1911) e “O Colapso da Unidade no POSDR” (1912), repetindo suas caracterizações de 1904 (em aparente contradição com as de 1906, e certamente em contradição com os fatos), descrevendo as visões organizativas de Lênin como uma “concepção puramente burguesa de um partido político, segundo a qual o líder é tudo e as massas não são nada”. Uma variedade de trabalhos acadêmicos – incluindo os de Tamás Krausz, Lars Lih, August Nimtz, Ronald Suny, Alan Shandro e Paul Le Blanc – demonstraram que isso não é verdade.[vi]
Curiosamente, Luxemburgo parece concordar basicamente com as avaliações de Lênin sobre os seus opositores faccionais: dos liquidacionistas e dos mencheviques em geral, assim como dos ultraesquerdistas bolcheviques (Bogdanov e outros) e de Trótski. No entanto, ela denuncia o que chama de “política sectária e faccionalista de Lênin”, que bloqueia “o caminho para a unidade organizativa com o restante do partido” e, assim, condena a ala revolucionária do POSDR ao isolamento e à impotência. Na verdade, a abordagem de Lênin teve um resultado bastante diferente. Os bolcheviques se tornaram uma força hegemônica dentro do movimento operário russo.[vii]
Isso contrasta com as realizações organizativas mais sombrias de Rosa Luxemburgo e seus camaradas na Polônia e na Alemanha. Na Polônia, pode-se até argumentar que Luxemburgo foi muito mais sectária e faccionalista do que Lênin. De qualquer forma, ela concluiria mais tarde, na crítica clássica “Sobre a Revolução Russa” – sem abandonar completamente suas visões críticas – que “o futuro em todos os lugares pertence ao ‘bolchevismo’”.[viii]
(v) No período de 1914-1919, guerra e revolução aproximaram Lênin e Rosa Luxemburgo mais do que nunca – com Rosa Luxemburgo e aqueles ao seu redor convergindo, em última análise, com o movimento comunista inicial, do qual Lênin era a peça central. Mesmo aqui – como indicado pelos materiais do volume 5 (sobretudo em sua brilhante crítica à Revolução Russa) e por sua correspondência – a mente crítica de Rosa Luxemburgo permanece intacta. Alguns elementos de suas críticas anteriores a Lênin parecem ter sido revisados, mas outros persistiram. Entre essas críticas, pode-se questionar seus julgamentos sobre a questão nacional, a questão camponesa e sobre a dissolução da Assembleia Constituinte[ix].
Mas o que ela afirma sobre a necessidade de uma democracia genuína para um socialismo genuíno, assim como a sua advertência contundente contra as violações da democracia pelo regime bolchevique no período pós-Revolução de 1917, permanece premonitório e essencial – e consistente com o que o próprio Lênin vinha insistindo desde os anos 1890 até 1917.[x]
Vale a pena permitir que Luxemburgo expresse isso com as suas próprias palavras: “Que nunca tenhamos sido adoradores idólatras da democracia formal significa apenas que sempre distinguimos o núcleo social da forma política da democracia burguesa, sempre revelamos o amargo núcleo de desigualdade social e falta de liberdade sob a doce casca da igualdade e liberdade formais – não, no entanto, para descartar essa casca; ao contrário, fizemos isso para incitar a classe trabalhadora a não se contentar com essa mera casca, mas a conquistar o poder político para preenchê-la com um novo conteúdo social. É a tarefa histórica do proletariado, ao chegar ao poder, criar uma democracia socialista no lugar da democracia burguesa – não eliminar a democracia por completo. No entanto, a democracia socialista não é algo que começa apenas na Terra Prometida, uma vez estabelecida a infraestrutura – a economia socialista; ela não chega como um presente de Natal pré-fabricado para a população obediente que, nesse ínterim, apoiou lealmente o punhado de ditadores socialistas. A democracia socialista começa simultaneamente ao desmantelamento da dominação de classe e à construção do socialismo. Ela tem início no exato momento da tomada de poder pelo partido socialista”.[xi]
É claro, em qualquer leitura séria de sua polêmica, que Rosa Luxemburgo não está rompendo com Vladímir Lênin e Leon Trótski ou com outros líderes revolucionários como traidores do ideal socialista, tampouco os repreendendo à distância. Trata-se de uma crítica de dentro. Ela os vê como camaradas excepcionais engajados na mesma luta à qual dedicou sua vida, camaradas que – particularmente sob a pressão dos acontecimentos – começaram a cometer graves erros que ela deseja ajudar a corrigir.
Se Rosa Luxemburgo tivesse vivido por pelo menos alguns anos além de janeiro de 1919, o Partido Comunista da Alemanha (que logo se tornaria uma força revolucionária bem-organizada na cena alemã) poderia ter contado com os seus esforços para ajudar a inclinar as realidades alemãs, russas e globais para um caminho diferente – o que era a sua intenção, e a esperança de Lênin. Entendendo (como Rosa Luxemburgo e outros marxistas também compreendiam) que a atrasada Rússia era economicamente subdesenvolvida demais para criar o socialismo, os bolcheviques de Lênin estavam “apostando na inevitabilidade da revolução mundial”, como ele explicou em sua “Carta aos Trabalhadores Americanos”, de agosto de 1918.
A propagação da revolução seria amplamente inspirada pelo que os revolucionários russos estavam fazendo, mas também viria em seu socorro. Lênin e seus camaradas antecipavam que isso atrairia maiorias da classe trabalhadora ao controle de países industrialmente avançados, os quais se uniriam à combalida República Soviética. A própria Luxemburgo explicou: “Todo o cálculo por trás da luta russa pela liberdade se baseia na presunção tácita de que a revolução na Rússia deve se tornar o sinal para o levante revolucionário do proletariado no Ocidente: na França, Inglaterra e Itália, mas acima de tudo na Alemanha”. Lênin enfatizou: “Estamos agora, por assim dizer, em uma fortaleza sitiada, esperando que os outros destacamentos da revolução socialista mundial venham em nosso socorro”[xii].
Enquanto os bolcheviques tentavam resistir, a jovem e frágil República Soviética estava sendo invadida por exércitos estrangeiros, estrangulada por um bloqueio econômico, sofrendo uma guerra civil cada vez mais complexa e brutal (financiada por potências estrangeiras), sendo alvo de assassinatos e tentativas de assassinato, entre outros problemas. Em reação a isso – não para “criar o socialismo”, mas simplesmente para sobreviver –, consolidaram uma ditadura de partido único, estabelecendo uma polícia secreta conhecida como Cheká, que desencadeou o Terror Vermelho[xiii].
O chefe da Cheká era um recruta recente dos bolcheviques, que sob o nome de partido “Józef” havia, por muitos anos, sido um dos camaradas de Luxemburgo na Social-Democracia do Reino da Polônia e Lituânia, Felix Dzerzhinsky. Escrevendo a outro camarada polonês que vivia na Rússia Soviética, ela comentou: “É claro que, sob tais condições, ou seja, sendo apanhada nas pinças das potências imperialistas de todos os lados, nem o socialismo nem a ditadura do proletariado podem se tornar uma realidade, mas, no máximo, uma caricatura de ambos”.
Por ditadura do proletariado, ela se referia à concepção marxista clássica de domínio político pela classe trabalhadora. Ela continuou: “Receio que Józef tenha se deixado levar [pela ideia] de que buracos econômicos e políticos podem ser tapados rastreando energicamente ‘conspirações’ e matando ‘conspiradores’”. Referindo-se às ameaças abrangentes de “massacrar a burguesia” como “idiotice do mais alto grau”, concluiu que isso “apenas desacredita o socialismo e nada mais”[xiv].
De fato, o texto de Rosa Luxemburgo Sobre a Revolução Russa não é simplesmente uma polêmica contra uma ideia “errada” de socialismo que Lênin supostamente teria, mas identifica perigos inerentes à própria luta revolucionária.
Após a morte de Rosa Luxemburgo, a tensão presente em suas perspectivas persistiu entre seus camaradas mais próximos na Alemanha e na Polônia e, na esteira do fiasco da Ação de Março de 1921, culminou em dois caminhos: ou seguiram o exemplo de Paul Levi (que rompeu com o movimento comunista) ou de Clara Zetkin (que permaneceu dentro dele). Mathilde Jacob foi uma camarada próxima de Luxemburgo que seguiu Levi, e seria interessante saber mais sobre outros que tomaram esse caminho[xv].
No entanto, um número significativo de seguidores de Rosa Luxemburgo não acompanhou Levi – incluindo Heinrich Brandler, Paul Frölich, Fritz Heckert, Sophie Liebknecht, Julian Marchlewski, Ernst Meyer, Wilhelm Pieck, August Thalheimer, Adolf Warski e Clara Zetkin.
Os partidários de Rosa Luxemburgo que eventualmente deixaram o movimento comunista após a saída de Paul Levi parecem ter rejeitado o stalinismo, em vez do leninismo. Enquanto Fritz Heckert, Wilhelm Pieck e Sophie Liebknecht permaneceram no Partido Comunista da Alemanha e se acomodaram à sua stalinização, três figuras centrais – Heinrich Brandler, August Thalheimer e Paul Frölich – foram expulsos do Partido Comunista da Alemanha em 1929 por resistirem à sua stalinização. Outro, Ernst Meyer, resistiu ativamente à stalinização, mas morreu em 1930.
Clara Zetkin permaneceu no partido como uma notória e amarga crítica interna das evoluções stalinistas, até a sua morte em 1933[xvi]. Entre os camaradas poloneses, Julian Marchlewski (que morreu em 1925) continuou sendo um pilar do Partido Comunista Polonês, assim como Adolf Warski (que foi preso e executado durante os expurgos stalinistas no final da década de 1930) – e o Partido Comunista Polonês foi dissolvido em 1938 como politicamente não confiável, por decisão da Internacional Comunista sob o domínio de Stálin.[xvii]
Esse triunfo do stalinismo resultou no naufrágio do movimento comunista mundial. Os ativistas que buscam reconstruir esse movimento e ajudar a humanidade a evitar a barbárie por meio da criação revolucionária do socialismo encontram em Rosa Luxemburgo um recurso poderoso – nos cinco volumes de suas Complete Works já publicados e nos demais volumes que estão por vir.
*Paul Le Blanc é professor de história no La Roche College, em Pittsburgh. Autor, entre outros livros, de The Living Flame: The Revolutionary Passion of Rosa Luxemburg (Haymarket Books). [https://amzn.to/3DWhuKs]Tradução: Rafael A. Padial.
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