quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Uma distopia estado-unidense

Jorge Figueiredo
resistir.info/
'Mandibles', capa.

A literatura distópica e satírica tem grandes tradições e cada época tem as suas próprias distopias/sátiras. Desde Uma modesta proposta de Jonathan Swift (1667-1745), que recomendava a ingestão de crianças irlandesas para resolver problemas sociais do país, até A fábula das abelhas: vícios privados, benefícios públicos, de Bernard Mandeville (1670-1733), que ridicularizava as hipocrisias do seu tempo e ao 1984 de Orwell. A literatura distópica contém uma crítica social mas diferencia-se do realismo social pelo seu componente satírico. As vinhas da ira, por exemplo, de Steinbeck, é uma obra de crítica social mas nada tem de satírico – é, antes, a descrição pungente de uma realidade sofrida pelos pobres dos EUA na década de 1930.

Esta época de decadência do império estado-unidense já produziu ali uma crítica interna do seu estado de apodrecimento que pode rivalizar com os melhores clássicos do passado. Trata-se de The Mandibles (A Family 2029-2047), de Lionel Shriver. A autora descreve a história distópica de uma família americana projetada no futuro, os Mandibles. As suas vicissitudes ocorrem num ambiente tenebroso:   o do inexorável desmoronamento económico dos Estados Unidos. Conta assim uma história futura ficcionada através da saga de uma família. A projeção efetuada tem muito interesse por ser uma crítica de origem interna, vem de dentro do próprio país. Ela abrange não só os componentes subjetivos na situação de cada um dos membros da família como também uma descrição económica do que já está em curso. O diagnóstico é devastador (provavelmente será odiado pelos economistas vulgares). Além disso, a obra combina tanto o lado infra como o superestrutural, os reflexos do descalabro na cabeça das pessoas. Esse é um dos pontos fortes do livro de Shriver.

O livro é construído como uma história do futuro, com datações que vão de 2029 a 2047. O processo é descrito através dos personagens. Estes são o patriarca da família, o velho Douglas Mandible, as suas filhas com os respectivos cônjuges e os seus netos. O patriarca é rico, herdeiro de um homem que desenhou um motor diesel inovador, um aristocrata aposentado. Ele foi inteligente ao preparar a sua reforma, investindo sua fortuna em ativos que pareciam seguros. Uma das suas filhas casou-se com um ilustre professor de teoria econômica com tenure na universidade de Georgetown. A outra casou-se com um descendente de mexicano nascido nos EUA, o que no contexto dessa classe social representava um déclassement. Personagem interessante é o filho desta, um rapaz inteligente que faz perguntas e descobre as realidades econômicas de um modo intuitivo. A heroína do livro acaba por ser a irmã do patriarca, uma romancista que retorna aos EUA depois de viver muitos anos em França. Todos eles são arruinados no torvelinho da crise.

O pano de fundo desta saga familiar começa com o afundamento do dólar, cuja cotação em 2029 caiu 40 por cento em relação ao resto do mundo. Nessa altura, a moeda estado-unidense deixou praticamente de ser a divisa de reserva (reserve currency) do mundo. No entanto, a percepção desta realidade e das suas consequências não é imediata na cabeça das pessoas. Algumas estão obnubiladas pelas suas próprias teorias. É o caso do nosso professor de teoria econômica que explica os acontecimentos como uma “Aglutinação Cármica”:   “Pequenas merdas a implodir em todo o lado ao mesmo tempo faz parecer que as falhas estão ligadas. Mas não estão necessariamente. É apenas uma espécie de... aglutinação cármica”. Isso é dito no momento em que bancos e hedge funds do mundo começavam a liquidar as suas posições em dólares e a moverem-se para o ouro.

O panorama descrito pela autora assemelha-se a uma guerra mundial, mas sem derramamento de sangue. Esta arruina com as economias de milhões de famílias estado-unidenses. De repente o dólar, todo-poderoso, despenca de valor. No resto do mundo é substituído por uma nova moeda, o “bancor”. Mas nos próprios EUA o governo resiste o quanto pode à troca de moeda. Proíbe o uso do bancor e chega a apreender os ativos em ouro dos seus cidadãos. Parte da fortuna no velho Mandible era em ouro mas ele perde tudo porque estava depositada num banco.

Em retaliação contra a nova moeda global, o presidente declara que os Estados Unidos deixarão de pagar aos seus prestamistas, tanto o principal como os juros. É um repúdio da sua dívida. Assim o país torna-se incapaz de contrair novos empréstimos e o governo imprime loucamente para cobrir as suas contas. O pouco que resta de poupadores é rapidamente liquidado na voragem da inflação galopante. Entretanto, a infraestrutura do país degrada-se e encarece de modo vertiginoso. Até serviços básicos como o abastecimento de água sofrem com isso.

Os presuntivos herdeiros do patriarca ficam a ver navios. Nos últimos tempos ele ainda teve de ser alojado na casa, modesta e hipotecada, de uma das suas filhas. No fundo, toda a família acabou por se concentrar naquela casa, inclusive a sua irmã casada com o professor da Georgetown (despedido apesar da sua tenure). Ao mesmo tempo, para proteger os bancos, o governo estabeleceu um limite diário para retirada dos dólares dos depositantes.

Por essa altura os EUA já tinham um presidente de origem latina, Alvarado. O discurso solene que ele faz em Novembro de 2029 para anunciar a crise é per se uma peça antológica de literatura política. Vale a pena citá-lo mais extensamente:

“(...) Não se enganem. O bancor não é pretendido como uma alternativa inocente ao dólar. Ele é destinado a substituir o dólar. Num movimento tão ameaçados como apontar uma arma às nossas cabeça, fomos informados que os alimentos e matérias-primas nos quais confiamos para as nossas vidas diárias e sustento devem agora ser comerciadas internacionalmente em bancors. Um gesto de insolência excepcionalmente arbitrária:   o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos também foi notificado que títulos americanos possuídos por investidores estrangeiros devem doravante ser resgatados em bancors a uma taxa de câmbio desfavorável caprichosamente escolhida por um Fundo Monetário Internacional que se tornou patife. Títulos americanos vendidos a investidores estrangeiros devem doravante ser denominados em bancors – o que é um desafio à nossa própria soberania como nação.

“Ironicamente, as partes por trás deste golpe fiscal organizado sofrerão imediatamente com ele. O dólar americano é o sangue vital da banca internacional e a espinha dorsal dos mercados financeiros por todo o mundo. Eis porque, como a maior parte de vocês já sabe, na semana passada suspendemos a comercialização na Bolsa de Valores de Nova York a fim de impedir perda precipitada de riqueza. Mas a comercialização também foi suspensa na sequência do mesmo choque para o sistema em Londres, Paris, Berlim, Moscovo, Hong Konge e todas as outras grandes bolsas de valores do globo. A finança internacional está a prender a respiração. Como com todas as outras crises durante mais de uma centena de anos, o mundo espera pela América para atuar. E este bravo país nunca deixa um insulto sem resposta.

“Imediatamente antes de me dirigir a vós, o povo americano, esta noite, reuni uma sessão de emergência do Congresso. Quase por unanimidade, seus representantes aprovaram uma lei considerando que, até nova notícia, cidadãos americanos possuírem bancors, tanto onshore como dentro dos limites do nosso sistema financeiro, a partir deste ponto será considerado um ato de traição. Com o objetivo de preservar não só a nossa prosperidade atual como também a nossa prosperidade futura – a fim de manter nossa integridade, nossa capacidade de mantermos nossas cabeças altas como nação – americanos e entidades americanas também estão proibidos de comerciarem em bancors no estrangeiro.

“Por agora, e apenas por agora, é claro, capitais de montante superior a US$100 não podem sair do país. Estes controlos são temporários, a sua duração está destinada a ser breve, e serão levantados no momento em que a ordem econômica for restabelecida de forma segura e protegida. (...)

“Usando os poderes conferidos ao seu presidente pelo International Emergency Economic Powers Act de 1977, estou a exigir todas as reservas de ouro detidas em mãos privadas. As operações de mineração de ouro dentro das nossas fronteiras serão obrigadas a vender o minério exclusivamente ao Tesouro dos EUA. As ações de ouro, os fundos negociados em bolsa e o ouro em barra serão igualmente transferidos para o Tesouro. Em contraste com a nacionalização do ouro de 1933, quando Franklin Delano Roosevelt fez a sua ousada tentativa de salvar a nossa nação sofredora da Grande Depressão, não haverá exceções para joalheiros ou jóias. Todas estes confiscos patrióticos serão compensadas em peso, embora a uma taxa que não reflita a inflação histérica dos stocks de ouro no período que antecedeu esta emergência. O entesouramento não será tolerado. Multas punitivas de até US$250.000 serão aplicadas àqueles que não cumprirem. A retenção de ouro, sob qualquer forma, para além do prazo de 30 de novembro de 2029, será doravante considerada uma ofensa criminal, punível com não menos de dez anos de prisão. (...)

“Finalmente: é a intenção de uma conspiração de potências estrangeiras subjugar o governo desta ilustre terra com um intolerável e infactível gravame do juro da sua dívida. Essa dívida foi contraída de boa fé e, a seu tempo, em todas as circunstâncias exceto as mais extraordinárias, teria sido reembolsada de boa fé. Mas quando a nossa probidade é retornada com malícia e traição, a boa fé continuada representa somente credulidade e fraqueza. Ambos os lados precisam honrar um acordo para que ele permaneça em vigor. Além disso, este grande país não só honrará suas obrigações como destruirá a sua própria existência no processo. Uma nação concebida em liberdade não pode conduzir seus negócios diários de joelhos.

“A partir desta noite, eu próprio, o secretário do Tesouro e o governador do United State Federal Reserve declarámos uma “reinicialização” (“reset”) universal. Com o objetivo de preservar o próprio cumprimento das suas obrigações do futuro, somos obrigados a por de lado as obrigações do passado. Todos os Bilhetes do Tesouro, notas e títulos são imediatamente declarados nulos e sem efeito. Muitos devedores choraram de gratidão pela misericórdia de um quadro limpo, pelo direito a uma segunda oportunidade, que todos os sistemas judiciais justos, como o nosso, consagraram na lei, tanto para os indivíduos como para as empresas. Assim, também o governo deve poder traçar uma linha e dizer:   a partir daqui começamos de novo.

“Assim, avancemos para o futuro, com o passo mais leve, o coração mais alegre – confiantes na tenacidade do maior país do mundo. Deus vos abençoe. E Deus abençoe os Estados Unidos da América. Boa noite.”

A acelerada decomposição da sociedade estado-unidense seguiu-se a este discurso, levando a família a ter de lutar pela simples sobrevivência. Acabam por perder a casa em que moravam. O desemprego, o crime e a crise de habitação atinge todos. Transformado numa economia subdesenvolvida, o comércio dos EUA passa a depender do turismo externo, sobretudo de asiáticos graças à taxa de câmbio favorável. Em 2031, o trabalho intelectual já não rendia nada. Cientistas, acadêmicos e engenheiros sofriam de um status mais baixo do que o de um agricultor. Seitas de survivalists recomendavam kits de sobrevivência (cantil de água, fósforos, luvas, cortador de vidro, primeiros socorros, etc).

A imigração reverteu-se. Muitos americanos tentam fugir para o México, o qual protege ferozmente a sua fronteira contra a invasão de imigrantes ilegais. O controle sobre a situação financeira e fiscal dos americanos passa a ser absoluto, com a implantação de chips na nuca de cada cidadão. Esta inovação é apresentada como uma “melhoria” muito prática. Os cidadãos com o privilégio de serem chipped têm as suas receitas e despesas controladas online através de satélite.

Por volta de 2047 a situação estabilizou-se, mas num nível muito mais baixo do que antes de 2029. Já ninguém sonhava que os EUA recuperassem a supremacia mundial. Multinacionais asiáticas, como a IBM (Indonesian Business Machines), começaram a instalar fábricas nos EUA. Nessa altura a linguagem já havia mudado para atender às novas realidades. Uma das netas do velho Mandible tem o diploma de “consultora de estimulação”, outro nome para uma profissão muito antiga.

Por essa altura, Nevada já não fazia parte dos EUA: declarou independência. Os secessionistas são apresentados aos cidadãos que permaneciam nos 49 estados como um lugar de horrores, até com canibalismo. É para lá que os remanescentes da família Mandible se aventuram a emigrar. Ao chegarem descobrem que ali funciona um capitalismo no velho estilo, cada um por si e com pouco controle. Mas a moeda tem valor, a taxa de imposto uniforme para todos (flat rate) é só de 11%, os cidadãos não são chipped e têm de ser produtivos. O pecúlio em ouro que durante anos fora escondido pela irmã do patriarca, a tia Nollie, a escritora, permite à família iniciar uma nova vida e prosperar.

15/Janeiro/2025

Este artigo encontra-se em resistir.info




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