Em um mundo de vozes aceleradas, a experiência de ser mulher, cuidadora e jornalista revela a força da escuta e da reinvenção
Clécia Rocha
Durante anos, minha vida foi guiada por pautas, entrevistas e manchetes. Encerrava o dia já pensando na próxima reportagem, em uma história de impacto para narrar ao mundo. O ofício de repórter me levou a escutar o que muitos sequer percebiam — a traduzir em palavras aquilo que o olhar apressado não alcança. Mas foi longe das redações — dentro de quartos silenciosos, ao lado de corpos frágeis e olhares sofridos — que encontrei outra dimensão do jornalismo: o cuidado.
Tudo começou com meu pai. Quando ele foi diagnosticado com demência vascular, uma doença degenerativa, assumi, de forma totalmente informal, o papel de cuidadora. Passávamos por longas jornadas hospitalares, sustentados apenas pelo amor e pela tentativa incansável de amenizar sua dor. Nunca imaginei que aquele gesto de filha se transformaria em algo que me desse alegria, sentido e até uma nova profissão. Cuidar, naquele momento, deixou de ser um peso. Tornou-se um modo de amar — e de narrar.
Tornei-me cuidadora num tempo de transição, quando a vida me convidou a desacelerar e escutar de outro modo. No início, enxerguei tudo aquilo como um intervalo. Mas, aos poucos, compreendi que estava diante de uma reinvenção — não apenas profissional, mas profundamente humana e feminina.
E, é justamente sobre essa mulher que quero falar. Sobre mim — e sobre tantas outras. Porque a mulher tem muitas faces. Transita entre universos que parecem antagônicos — e, ainda assim, encontra sentido e beleza em ambos. Eu sou a repórter e sou a cuidadora. Sou a que escreve a manchete e a que vive o bastidor da notícia. Ora narro com a caneta, ora com o toque. Reinvento-me sem cessar, com essa habilidade quase mágica que tantas de nós temos: estar inteira onde for necessária. É assim que seguimos, compondo nossas múltiplas versões, sem abrir mão da essência.
Este texto nasce em março, mês em que o mundo, ainda que brevemente, volta os olhos para o protagonismo feminino. E é impossível não enxergar esse protagonismo na delicadeza e na força com que tantas mulheres — anônimas, invisibilizadas — exercem, dia após dia, o ato de cuidar. Somos nós que, desde cedo, aprendemos a transitar entre o rigor e a ternura, entre a produtividade e a sensibilidade, entre o caos e a criação.
Cuidar, descobri, é também escrever. É narrar com o corpo. É transformar o cotidiano em crônica viva. Em meio ao preparo de uma medicação ou ao silêncio compartilhado de uma tarde longa, brotam histórias que nenhum lead jornalístico seria capaz de incorporar. E, paradoxalmente, foi ali — onde não havia pauta — que minhas palavras fluíram com mais liberdade. Confesso que até hoje procuro entender.
A mulher tem uma impressionante capacidade de fazer da dor um lugar de construção. Reinventa-se quando o chão falta, reconstrói-se com aquilo que restou. Seja na redação ou no leito de um hospital, ela entrega algo de si em tudo o que produz — com sensibilidade, coragem e dignidade.
Meu diário, ainda inacabado, talvez um dia ganhe forma de livro. Por ora, ele é apenas isso: um testemunho. De uma repórter que também é cuidadora; de uma mulher que escreve com os olhos úmidos e as mãos atentas; de alguém que aprendeu que, às vezes, o maior furo jornalístico está em escutar aquilo que o mundo ainda não aprendeu a ouvir.
Neste mês dedicado a nós, deixo minha homenagem não em forma de manchete, mas de confissão: somos muitas, somos intensas — e seguimos, com firmeza e doçura, cuidando do mundo enquanto o narramos.
Clécia Rocha é jornalista por vocação e palavra, com formação em Comunicação Social e uma trajetória dedicada a dar voz a quem quase nunca é ouvido. Natural de Feira de Santana (BA), percorreu redações, rádios e assessorias de imprensa, sempre com o olhar atento às causas sociais e à escuta das margens. Seu trabalho é atravessado pelo compromisso com a dignidade humana, sobretudo das mulheres invisibilizadas pelo sistema. Acredita que contar essas histórias é uma forma de resistência, reparação e esperança.
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