Será coerente acreditar que a criação de Israel como nação foi mesmo uma vontade de Deus? Ou um fruto desse ódio, da supremacia racial enraizada em nossa sociedade cristã?
Mirna Wabi-Sabi
Há anos vemos Bolsonaro e seus apoiadores abanando bandeiras israelenses e estadunidenses, clamando pela vitória deles na aniquilação que continuam a incendiar na Palestina.
Esse fenômeno já foi explicado teologicamente por muitos, com base nos ensinamentos bíblicos evangélicos. Mas essa explicação é insuficiente. Acreditar numa revelação sobre o retorno de Jesus, o julgamento das nações, e a chegada do “fim” não é nada em frente ao desdém emitido em direção ao mundo árabe pelo ocidente cristão.
Não custa muito lembrar o desprezo que o mundo cristão tem ao ‘outro’, o que não é apenas direcionado ao árabe. Há desprezo ao africano, chines, indiano, árabe… e ao povo judeu também. Será coerente acreditar que a criação de Israel como nação foi mesmo uma vontade de Deus? Ou um fruto desse ódio, da supremacia racial enraizada em nossa sociedade cristã?
Sim, é uma questão de raça, mais do que de religião. Apoiar um povo que exibe comportamentos culturais e valores supostamente mais ‘alinhados’ com os nossos, o que na Europa chamam de propensão à ‘integração,’ é o código para apoiar uma sociedade ‘superior’ em detrimento de outra, que é ‘inferior.’
Na realidade, a pressuposição dessa inferioridade, ou atraso evolucionário de certos povos, é um dos traços mais tóxicos de nossas sociedades cristãs. E esse traço é muito mais latente do que qualquer conhecimento, entendimento teológico ou histórico das pessoas sobre qualquer coisa.
Não importa que nem todos os árabes sejam muçulmanos, não importa se sabemos em qual ano estamos no calendário islâmico, não importa que tanto os muçulmanos quanto os judeus traçam sua linhagem de Abraão, ou que a maior nação muçulmana do mundo nem árabe é.
O que importa para esse eleitorado é o avanço da dominação europeia no mundo, porque acredita-se que os europeus (e descendentes deles) são os humanos mais ‘evoluídos’. Assim vemos nos Estados Unidos, onde o ‘americano de verdade’ é o descendente de europeu. No Brasil, ‘o brasileiro de verdade’ tem alguma descendência europeia visível. E, assim, os judeus têm sido usados por eles como linha de frente na guerra de dominação em seu avanço para o oriente.
Na leitura teológica sobre o apoio cristão ao estabelecimento da nação judaica em Israel, o avanço da dominação europeia no Oriente significa acelerar o retorno de Jesus e o início do fim do mundo. Nesse ponto, o povo judeu será salvo baseado em sua disposição de… deixar de ser judeu.
Será que as pessoas que acreditam que o sionismo, e o que está sendo feito com a Palestina, são vontades de Deus, também acreditam que a Alemanha nazista apoiou a vontade de Deus, pelo simples fato de (também) ter influenciado decisivamente o estabelecimento do estado judaico?
Fobia ao islã e racismo contra os árabes são motivações praticamente unânimes em meio de diversas divergências religiosas, de interpretação de passagens bíblicas, dentro do cristianismo. É possível olhar a situação em que estamos agora e enxergar uma evolução da humanidade, em comparação com milhares de anos de história religiosa? Será que os os brancos não são capazes de barbarismo?
Estamos presenciando a barbárie, um legado cultural, geopolítico, e religioso de milhares de anos, sim. Mas estamos, acima de tudo, testemunhando um paradigma de desintegração de valores espirituais que deram vida a todas essas religiões em primeiro lugar.
É Ramadã. Pelo mundo inteiro, os muçulmanos estão observando seus valores humanos e religiosos, praticando, na medida do possível, caridade, disciplina, e honrando esse presente divino que é estar vivo graças a Allah, Alhamdulillah.
Enquanto isso, a barbárie continua, se exacerba, e os bolsonaristas levantam bandeiras em completo declínio espiritual e obliteração de valores humanos. Nós de nações cristãs, que de um lado afirmamos defender valores de liberdade, justiça, penitência e perdão, testemunhamos membros de nossas comunidades se deleitando na brutalidade da chacina.
Em face dessa desgraça, eu, pessoalmente, boto fé no mundo árabe, em sua integridade humana e disciplina religiosa para forjar seu caminho de resistência.
“E combatê-los até que não haja mais perseguição e a religião seja para Allah. Mas se eles cessarem, que então não haja agressão, exceto contra os malfeitores.193” (2:193 Alcorão)
Mirna Wabi-Sabi é fundadora da Plataforma9.
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