Quantos brasileiros irão se beneficiar com essa medida? Segundo o governo, 10 milhões de contribuintes, além dos já beneficiados, seriam desonerados com o novo limite de isenção
Carolina Gonçalves e Clair Hickmann
Nos últimos anos, o aumento da faixa de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) tem sido um tema amplamente discutido entre os brasileiros. Em especial, a promessa de campanha do presidente Lula de elevar a isenção para quem ganha até cinco mil reais por mês gerou justificadas expectativas de alívio financeiro para milhões de cidadãos. Finalmente, o anúncio da medida abre um debate importante: a relação entre nossas desigualdades econômicas e sociais e a necessidade de justiça tributária.
A justa correção da faixa de isenção do IR gera um impacto positivo sobre a renda disponível das famílias, elevando-a num contexto em que se verifica o aumento de preços de itens de consumo essenciais, como os alimentos. Por outro lado, além de justa, a correção do limite da isenção do IRPF certamente estimula diretamente a economia. Com mais renda disponível, os brasileiros consumirão mais, aumentará a demanda por produtos e serviços, o que, por sua vez, estimulará a produção e o comércio, criando empregos e gerando renda. Esse ciclo virtuoso favorece uma nova dinâmica macroeconômica, impulsionada por uma demanda interna robusta.
Quantos brasileiros irão se beneficiar com essa medida? Segundo o governo, 10 milhões de contribuintes, além dos já beneficiados, seriam desonerados com o novo limite de isenção. Quem ganha entre R$ 5 mil e R$ 7 mil também teria um alívio tributário.
A desoneração prevista pela correção parcial da tabela do IR deve atingir cerca de R$ 26 bilhões em 2026, ano em que se aplicarão as medidas, caso sejam aprovadas pelo Congresso Nacional. Este recurso injetado na economia não só ampliaria o poder de consumo das famílias, mas também opera como um fator catalisador para o crescimento econômico em um curto espaço de tempo. Portanto, beneficiará, indiretamente, um número ainda maior de brasileiros. De forma semelhante à isenção do IPI implementada durante a crise de 2008, quando estratégias voltadas para o aumento do consumo foram cruciais para impulsionar a recuperação do crescimento econômico.
Quando se fala em corrigir a tabela do IRPF, os fiscalistas logo antepõem o argumento da perda de arrecadação. Ora, é preciso considerar que o aumento da renda disponível líquida para um contingente de dezenas de milhões de pessoas com elevada propensão marginal a consumir pode impulsionar a dinâmica econômica, em virtude do aumento das vendas, da produção, dos empregos e da renda dos trabalhadores, como já referido acima. Diferentemente da desoneração tributária aplicada aos mais ricos, essa medida retorna fortalecida ao orçamento público, favorece o crescimento econômico.
Além disso, está prevista uma compensação pela tributação, ainda que tímida, daqueles que ganham acima de R$ 600 mil por ano, por meio da incidência complementar de imposto equivalente ao que faltar para atingir uma alíquota efetiva de até 10%. Esta mudança afetará apenas 141,4 mil contribuintes, representando apenas 0,13% do total de declarantes no país, o que equivale a 0,06% da população brasileira. Com a nova medida, esse grupo, que atualmente contribui com uma alíquota efetiva média de apenas 2,54%, passará a ter suas contribuições ajustadas, promovendo uma maior equidade no sistema tributário e assegurando os recursos necessários para viabilizar a ampliação da isenção do imposto.
Evidentemente, ainda é pouco. Uma condição de maior justiça tributária seria atingida pela correção de todas as faixas de renda em que se encontram os trabalhadores brasileiros, incluindo aqueles acima do limite de isenção de R$ 5 mil e dos R$ 7 mil, previstos na medida. Além disso, seria importante que os rendimentos de lucros e dividendos fossem submetidos à tabela progressiva do imposto, como ocorre com os rendimentos do trabalho. No entanto, frente à atual maioria conservadora presente no Congresso Nacional, é preciso reconhecer que o governo dá um passo importante e fundamental.
É importante destacar também outro ponto muito apropriado da proposta governamental, a tributação de dividendos remetidos ao exterior. Em 2022, foram enviados ao exterior R$ 193 bilhões em lucros e dividendos. Atualmente, os acionistas estrangeiros auferem rendimentos no Brasil sem pagar imposto de renda sobre esses valores, enquanto tais rendimentos são tributados no país de residência dos acionistas. Dessa forma, o Brasil está deixando de arrecadar esse tributo, transferindo essa receita para outras nações. A alíquota proposta, de 10%, embora seja um passo importante, é modesta para os padrões internacionais. Note-se que a legislação brasileira (artigo 24 da lei 9.430/96) considera como paraíso fiscal qualquer país que tributa a renda a uma alíquota inferior a 17%. Trata-se, portanto, de um mínimo aceitável diante do cenário político adverso.
Ao iniciar a reforma de tributação da renda, o governo não apenas cumpre uma promessa de campanha, como pavimenta o caminho para um desenvolvimento econômico inclusivo e sustentável. A medida representa um importante início da reconstrução da tributação de renda, desvirtuada na reforma de 1995, que desonerou os lucros e dividendos distribuídos.
A ausência de correção da tabela do IRPF sempre representa um aumento da tributação sobre um acréscimo de rendimentos meramente inflacionário, que conceitualmente, sequer pode ser chamado de renda. E, os benefícios fiscais sobre lucros e dividendos distribuídos, como isenção ou dedução de juros, não encontram paralelo nas experiências internacionais nem justificativas diante das carências sociais do País.
Dessa forma, outras medidas igualmente relevantes precisam ser adotadas na sequência pelo governo, nos próximos passos da reforma da tributação da renda: a revogação de duas disposições introduzidas pela Lei nº 9.249, de 1995 (artigos 9º e 10º): a isenção sobre lucros e dividendos distribuídos e a dedução dos juros sobre capital próprio do lucro tributável das empresas. Essa medida atingiria aqueles com menor propensão marginal a consumir, cujas reservas de renda seguem, majoritariamente, no rumo de alimentar os circuitos do rentismo financeiro, resultando em concentração de renda e riqueza na sociedade.
A isenção dos lucros e dividendos distribuídos resulta na não tributação de aproximadamente 70% dos rendimentos das pessoas com maior renda. Em 2022, os lucros e dividendos isentos recebidos por sócios e acionistas das pessoas jurídicas somou R$ 830 bilhões. Isso contribui para que o imposto de renda no Brasil represente apenas 2,5% do PIB, em contraste com a média de 8,5% dos países da OCDE. Além disso, a alíquota efetiva média do imposto de renda para os 0,01% dos mais ricos foi de 1,35% em 2022, enquanto para um professor universitário foi de 11,24% e para um advogado público, 14,35%. No mesmo ano, a categoria dos empresários pagou o equivalente a 1,98% de seus rendimentos totais.
Chegou a hora de a sociedade brasileira se unir em torno de um objetivo comum: pressionar pelas reformas necessárias que assegurem justiça tributária e promovam um crescimento econômico inclusivo. O aumento da faixa de isenção e a tributação mínima das altas rendas trazem à tona a urgência de revisarmos isenções desiguais que servem apenas para perpetuar desigualdades. Precisamos agir para garantir que o peso tributário não continue recaindo desproporcionalmente sobre os trabalhadores e para que aqueles que mais lucram contribuam de maneira justa para o desenvolvimento do país. O caminho para uma sociedade mais equitativa passa por um sistema tributário que cobre de acordo com a capacidade contributiva e reinveste em educação, saúde e infraestrutura. A sociedade como um todo precisa participar mais ativamente desse debate.
Carolina Gonçalves é Coordenadora de Justiça Social e Econômica da Oxfam Brasil. Professora, doutora Direitos Humanos (UFG) e doutoranda em Ciência Política (UnB).Clair Hickmann é Presidente do Instituto Justiça Fiscal e especialista em Direito Tributário Internacional e Administração Tributária.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12