Gabriel Teles
Neste ano de 2025 completam-se 61 anos do golpe militar brasileiro de 1964, que mergulhou o país em uma de suas experiências mais dramáticas. Torna-se fundamental o resgate memorial desse período sombrio de nossa história, não apenas como um exercício de reconhecimento histórico, mas de compreensão profunda dos processos sociais que levam uma classe dominante a optar pela gestão autoritária capitalista. Nesse contexto, é determinante que não apenas rememoremos as consequências do golpe (repressão, assassinatos políticos, tortura, perseguição política etc.) mas as próprias condições que possibilitaram o golpe. Quais determinações, à luz dos processos sociais mais amplos do capitalismo brasileiro, levaram a uma ditadura militar? É o que pretendo apontar nestas breves considerações.
O período da ditadura militar (1964–1985) significou uma reconversão da forma estatal do país. Uma das fragilidades do capitalismo dependente, como no caso brasileiro, é o seu aparato estatal que oscila, efemeramente, entre regimes ditatoriais e democráticos. É suficiente examinar as experiências ditatoriais na América Latina, onde muitos países passaram grande parte do século XX sob regimes ditatoriais intercalados por breves períodos de democracia. A questão aqui, no entanto, é analisar rapidamente as especificidades da ditadura militar que se iniciou com o golpe de Estado de 1964.
Dois são os elementos basilares para o desencadeamento do golpe: as lutas dos trabalhadores — em um cenário de crise mundial do regime de acumulação fordista —, e a busca pelo aumento da taxa de extração de mais-valor no capitalismo dependente brasileiro — significando, portanto, maior exploração. É na década de 1960 que aparecem os primeiros sintomas da crise do capitalismo oligopolista transnacional: os Estados Unidos, maior potência econômica, apresentara déficits expressivos em sua balança comercial ao longo de toda a década de 1950, enquanto também foi registrada a queda da taxa de lucro nos países europeus.
Consequência desse processo foi, além de outras ações, a necessidade de aumento da exploração nos países de capitalismo subordinado, especialmente via drenagem do mais-valor pelo capital transnacional. O período dos governos desenvolvimentistas populistas foi fundamental para a integral inserção do capital transnacional no país, sobretudo durante o governo de Juscelino Kubistchek, com a expansão da infraestrutura do país, configurando o que Jacob Gorender denominou como a “tríplice aliança” do capitalismo brasileiro: capital transnacional + capital nacional + aparato estatal.
Assim, se há o aumento da exploração, há a ampliação, igualmente, da resistência e das lutas dos trabalhadores e demais setores da sociedade. Há, então, uma guerra, especialmente no movimento operário, pelo nível salarial, que oscilava e perdia valor com a intensa inflação daquele período histórico.
A oscilação salarial, bem como a resistência operária e as lutas no interior da sociedade civil, interferem direta ou indiretamente no capitalismo mundial. Um dos fundamentos do capital transnacional é a transferência de mais-valor dos países subordinados para os países imperialistas, significando, portanto, uma interdependência. Daí a participação fundamental dos Estados Unidos no golpe de 1964. Sílvio Benevides (2006) evidencia que a participação estadunidense na implementação do regime ditatorial brasileiro significou a necessidade de fortalecimento de uma política econômica que favorecesse, mais ainda, a entrada e consolidação das empresas multinacionais no Brasil.
Em síntese, havia um duplo descontentamento: de um lado, o capital transnacional e o capital nacional insatisfeitos com a queda da taxa de exploração, aprofundada com a crise no regime de acumulação fordista; e, por outro, o movimento operário e outros setores da sociedade civil, que viam seus salários e suas condições de vida pauperizadas a cada ano. Assim, por razões opostas ou antagônicas, o descontentamento é generalizado, contribuindo para um maior acirramento dos conflitos sociais.
A renovação do regime ditatorial brasileiro, no contexto de 1964, tinha como determinação esse processo, obtendo êxito em dilacerar a resistência operária e da sociedade civil, além de expurgar os governos populistas que travavam, na principal forma de regularização da sociedade (o Estado), medidas que possibilitassem uma necessária alta da taxa de lucro.
Nesse sentido, o golpe de 1964 emerge como uma solução tanto nacional quanto internacional para o problema de crise da acumulação de capital, criando condições para isso a partir de um generalizado processo repressivo. Nesses moldes, surge o “milagre brasileiro”, marcado por uma nova configuração política e econômica — mas desmistificar o tal “milagre” é assunto para outro artigo.
Leituras Recomendadas:
BENEVIDES, Sílvio César Oliveira. Na contramão do poder: juventude e movimento estudantil. São Paulo: Annablume, 2006.MARIANO, Nilson. As garras do condor: como as ditaduras militares da Argentina, do Chile, do Uruguai, do Brasil, da Bolívia e do Paraguai se associaram para eliminar adversários políticos. Editora Vozes, 2003.TRAGTENBERG, Maurício. Exploração do trabalho I: Brasil. In: Administração, poder e ideologia. 3. ed. rev. São Paulo: Editora UNESP, 2005.VALENTE, Rubens. Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura. São Paulo: Cia da Letras, 2017.VALLE, Maria Ribeiro do. 1968: o diálogo é a violência – movimento estudantil e ditadura militar no Brasil. 2° ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2018.VIANA, Nildo. Acumulação capitalista e golpe de 64. Revista História e Luta de Classes, Rio de Janeiro, v.01, n. 01, p. 19-27, 2005.
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Gabriel Teles é doutor em Sociologia pela USP e professor e pós-doutorando pela UnB.
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