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Há um princípio elementar de Direito Penal democrático que veda que crimes sejam criados para punir condutas meramente imorais. Em estados democráticos de direito o legislador não é livre para criminalizar qualquer ação, mas somente pode proibir condutas que lesam ou colocam em risco de lesão bens jurídicos alheios, tais como a vida, a saúde, a liberdade, o patrimônio e outros direitos fundamentais. Esta limitação ao poder do legislador, conhecida como princípio da lesividade, é uma importante garantia de que as minorias não serão submetidas à imposição dos valores morais e/ou religiosos de uma maioria intolerante.
Há um princípio elementar de Direito Penal democrático que veda que crimes sejam criados para punir condutas meramente imorais. Em estados democráticos de direito o legislador não é livre para criminalizar qualquer ação, mas somente pode proibir condutas que lesam ou colocam em risco de lesão bens jurídicos alheios, tais como a vida, a saúde, a liberdade, o patrimônio e outros direitos fundamentais. Esta limitação ao poder do legislador, conhecida como princípio da lesividade, é uma importante garantia de que as minorias não serão submetidas à imposição dos valores morais e/ou religiosos de uma maioria intolerante.
Esta garantia é especialmente
relevante quando se trata de crimes sexuais. Uma lei que proibisse, por
exemplo, a prática do sexo anal, seria inconstitucional, mesmo se
hipoteticamente aprovada pela maioria absoluta da Câmara e do Senado e
referendada pelo voto popular. Isto porque democracia não se confunde com
ditadura da maioria e a Constituição da República garante em seu art.5º, VIII,
que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de
convicção filosófica ou política”. No Estado Democrático de Direito a maioria
não pode impor suas convicções religiosas ou morais à minoria. Nossa
Constituição reconhece a autodeterminação dos indivíduos e impede que
comportamentos consensuais entre pessoas maiores e capazes que não causam dano
a terceiros sejam criminalizados.
Lamentavelmente, nosso Código Penal
não compartilha a ideologia política que inspirou nossa Constituição; muito
pelo contrário: sua principal influência foi o código penal fascista italiano
de 1930 (Codice Rocco). E, como em todo código penal autoritário, o respeito à
autodeterminação humana é substituído por uma pretensa tutela de valores
abstratos como “bons costumes” e “moralidade pública”. E é em razão desta
nefasta herança histórica, infelizmente ainda não rejeitada pelo Supremo
Tribunal Federal, que as casas de prostituição ainda são ilegais no Brasil e
seus proprietários podem ser punidos como criminosos.
Crime sem vítima
A prostituição em si não é crime no
Brasil. A troca de sexo por dinheiro ou qualquer outro tipo de pagamento é
plenamente lícita no país. Paradoxalmente, porém, é crime manter
estabelecimentos onde prostitutas possam prestar estes serviços sexuais
(art.229 do Código Penal).
Esta visível incoerência do sistema
penal, que tolera a prostituição quando praticada individualmente, mas reprime
a prostituição coletiva nos prostíbulos não se sustenta juridicamente, pois não
há um bem jurídico a ser tutelado e muito menos uma vítima a ser protegida.
Tudo o que há são argumentações exclusivamente morais que partem de valorações
religiosas do tipo “o corpo é sagrado e não deve ser comercializado” ou “o sexo
deve ser praticado somente na constância do matrimônio, com amor, e única e
exclusivamente para procriação”.
Na impossibilidade constitucional de
se impor concepções morais por meio de crimes, muitos acabam procurando
disfarçar seus argumentos moralistas contrários à legalização da prostituição
na tutela de uma suposta liberdade sexual da própria prostituta. Afirmam que a
prostituição não é uma escolha da mulher, que seria levada a vender seu corpo
ora por violência sexual, ora por necessidades econômicas. Trata-se,
evidentemente, de duas hipóteses bastante distintas. Se a vítima foi forçada a
se prostituir, não se trata de mera prostituição, mas de estupro ou de
escravidão para fins sexuais, e por estes graves crimes o autor deve ser
punido, já que houve uma inequívoca lesão ao direito à liberdade sexual da vítima.
Situação bastante diversa é quando a
mulher, por necessidade econômica, é levada a se prostituir. Aqui não há
vítima, pelo menos no sentido jurídico do termo, já que a mulher fez uma
escolha por esta forma de ganhar a vida. É bem verdade que esta escolha pode
não ter sido voluntária e que suas condições socioeconômicas talvez tenham sido
determinantes em sua decisão, mas certamente foi uma escolha livre. Escolhas
livres não são necessariamente voluntárias, no sentido de serem determinadas
por um desejo íntimo independente das condições socioeconômicas em que se vive.
O sistema capitalista é bastante perverso, já que permite a muito poucas
pessoas escolherem voluntariamente se preferem ser médicas ou faxineiras;
engenheiras ou serventes de pedreiro; advogadas ou traficantes de drogas;
atrizes ou prostitutas, mas não se pode cair no determinismo simplista de
afirmar que suas escolhas não sejam livres. Do contrário, boa parte dos
traficantes de drogas e ladrões não poderiam também ser presos, pois seus crimes
também não seriam escolhas livres. E o crime de casa de prostituição deveria
ser imputado não ao proprietário, mas ao Estado que não deu condições
socioeconômicas para a mulher optar por uma outra carreira.
Vê-se, pois, que não se pode querer
punir os donos e donas de casas de prostituição por meio do singelo argumento
de que exploram as prostitutas que não estão ali por escolhas voluntárias, pois
no sistema capitalista, por definição, é isso que fazem todos os proprietários
dos meios de produção: o fazendeiro explora o camponês porque é dono da terra,
o industrial explora o operário porque é dono das máquinas; o comerciante
explora o balconista porque é dono da loja. E o(a) dono(a) do prostíbulo há de
explorar também a prostituta por ser dono(a) do quarto e da cama.
A questão não é a exploração do
trabalho em si, mas a condenação moral de um trabalho que tem por fim a
satisfação sexual de alguém. O que incomoda é a herança moral cristã que
condena como pecado uma profissão que em vez de produzir riqueza, produz
prazer.
Moralismo que
restringe direitos
Afastado qualquer tipo de moralismo,
a prostituição é uma profissão como qualquer outra que pode ser explorada
economicamente e deve ser regulada pelo Estado para que as prostitutas possam
ter direitos trabalhistas e previdenciários como qualquer outro trabalhador. É
bem verdade que a profissional do sexo já pode hoje pagar a previdência social
como autônoma e se aposentar. Manter as casas de prostituição na ilegalidade,
porém, equivale a impedir a prostituta de ser trabalhadora assalariada,
negando-lhe, por questões exclusivamente morais, os direitos constitucionais a
salário mínimo, seguro-desemprego, repouso semanal remunerado, férias anuais e
licença saúde e gestante.
Na Europa, as casas de prostituição
são legalizadas e regulamentadas na Alemanha, Holanda, Suíça, Áustria, Hungria,
Grécia e Turquia e, na América Latina, estes estabelecimentos são legais no
México, Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. Países
que superaram o moralismo em prol da dignidade desta parcela de trabalhadores
que merece o mesmo respeito de qualquer outra atividade humana.
A criminalização dos prostíbulos não
evita a prostituição, mas tem o efeito de penalizar as prostitutas, não só
negando-lhes os direitos de trabalhadoras assalariadas, mas principalmente
forçando-as a se prostituírem nas ruas, onde ficam muito mais vulneráveis às
agressões de clientes e criminosos. É sabido que nos países onde a prostituição
é legalizada, muitas agressões às prostitutas são evitadas, pois os prostíbulos
possuem seguranças e até mesmo “botões de pânico” nos quartos que são acionados
quando há algum tipo de ameaça.
A legalização das casas de
prostituição é uma necessidade de política pública para reduzir a violência
principalmente contra mulheres, mas também contra travestis e homens que
prestam serviços sexuais e são alvos das mais variadas agressões motivadas pelo
preconceito social legitimado e incentivado por uma lei criminal que condena o
comércio do sexo.
A pena não escrita à qual o Estado
condena as prostitutas é a ausência de proteção contra todo tipo de agressões
por parte de seus clientes; seu julgamento moral é o mais perverso, pois não é
feito diante de um tribunal com oportunidade de defesa, mas perante as ruas,
onde é julgada por sua própria sorte. A pena alternativa que lhes resta, diante
da omissão estatal, é buscar proteção na ilegalidade dos cafetões e
prostíbulos, que não prestam contas de suas atividades a ninguém e ficam livres
para explorar seu trabalho sexual em um capitalismo totalmente selvagem sem qualquer
tipo de regulação estatal.
O risco constante de serem estupradas e agredidas
ou a semiescravidão no trabalho em prostíbulos são as penas morais não escritas
a que as prostitutas estão hoje condenadas. A criminalização da prostituição,
ao longo da história, nunca conseguiu pôr fim ao comércio sexual, mas sempre
serviu bem ao propósito não declarado de estigmatizar e causar sofrimento
àquelas que desafiam com seu trabalho a moralidade dominante que recrimina o
sexo casual como forma legítima de prazer.
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