Depois de tantas promessas frustradas
de redenção da rede assistencial pública, a tendência de governantes tem sido
delegar cada vez mais atribuições estatais à iniciativa privada. Essa
inclinação privatizante não reverteu e nem sequer amenizou o quadro de
dificuldades da população em utilizar os serviços de saúde
por Ana Maria Costa, Ligia Bahia, Mario
Scheffer
No documentário Sicko, de
Michael Moore, ao ser abordado sobre o fim hipotético do sistema universal de
saúde inglês, o NHS, um dos entrevistados foi incisivo: “Haveria uma
revolução”. Orgulho nacional britânico, homenageado na cerimônia de abertura da
Olimpíada de Londres, o NHS sempre inspirou o Sistema Único de Saúde (SUS).
Mas, afinal, onde foi parar o sonho do
SUSde uma cobertura pública universal que não deixaria, por definição, nenhuma
pessoa sem atenção à saúde? Ao mesmo tempo que os cidadãos deveriam financiar o
sistema por meio de impostos, de acordo com a capacidade contributiva, poderiam
acessá-lo conforme a necessidade de saúde, não em função da possibilidade de
pagar ou da inserção no mercado formal de trabalho. No sonho de tantos,
inscrito na Constituição brasileira, o SUS seria a expressão de solidariedade
que une todos os brasileiros, ricos e pobres, sadios e doentes, moradores dos
centros e dos grotões, em resposta coletiva ao essencial do ser humano, a
saúde.
No Brasil, onde as políticas sociais
universais não chegaram a se consolidar, o SUS sucumbe às pressões dos que
apostam na privatização, vindas tanto de setores situados à direita quanto à
esquerda do espectro político-partidário.
A privatização da saúde sempre foi
escamoteada no país, o que contribuiu para a demora de uma definição clara
sobre o lugar que a coletividade deve confiar ao setor privado.
Durante a redemocratização, no processo
constituinte, a plataforma conservadora dos grupos empresariais privados foi
confrontada com a agenda reformista do movimento sanitário. Prevaleceu a
concepção da relevância pública da saúde, mas o rótulo do “privado
complementar” passou a abrigar segmentos empresariais de distintas naturezas e
competências.
Um quarto de século depois permanece a
confusão em torno da falsa unanimidade em defesa do SUS, reconstruída na ressaca
após a derrota da regulamentação da Emenda Constitucional n. 29 e na atual
campanha pelos 10% de recursos da União para a saúde. A bandeira por mais
recursos públicos tremula também sob a ótica contábil de grupos privados e
interesses corporativos, que historicamente nunca se colocaram ao lado da
proteção social ampliada.
Depois de tantas promessas frustradas
de redenção da rede assistencial pública, a tendência de governantes – que
buscam responder às demandas por saúde dentro do limite de seus mandatos – tem
sido delegar cada vez mais atribuições estatais à iniciativa privada. Essa
inclinação privatizante não reverteu e nem sequer amenizou o quadro de
dificuldades da população em acessar e utilizar os serviços de saúde.
Veja-se o exemplo da cidade de São
Paulo: mesmo entregue em grande parte à iniciativa privada, a rede municipal de
saúde exibia, ao final de 2012, fila de mais de 660 mil pedidos de consultas,
exames e cirurgias. Acrescente-se o fato de que 60% dos paulistanos sofrem nas
mãos de planos de saúde excludentes e de uma rede privada em colapso, saturada
e incapaz de prestar bom atendimento.
Chegamos a uma forqueadura. Nem se
consegue vislumbrar o SUS como um sistema único de qualidade nem há perspectiva
de seguirmos para um modelo de saúde predominantemente privado, feito o
norte-americano, chileno ou colombiano.
O impasse consiste na inversão entre
necessidades de saúde e uso do fundo público. O Brasil tem um sistema público
universal, mas são privados, em sua maior parte, os recursos alocados na saúde.
Há uma desconexão entre os valores igualitários formais e as práticas sociais
concretas de apropriação dos recursos assistenciais, um cenário totalmente
incompatível com a efetivação de políticas de saúde universais. Enquanto nos
países europeus e até mesmo nos Estados Unidos a parcela pública dos gastos com
saúde só aumenta, no Brasil assiste-se ao crescimento das despesas privadas na
medida da intensificação de incentivos à privatização.
Em 2013, aos 25 anos da Constituição de
1988, há muito a ser comemorado. Os preceitos legais do SUS não soçobraram
durante o tsunamineoliberal, em razão da permanente resistência dos
movimentos sociais contrários às mudanças do texto constitucional. Porém, fez
água a expectativa de ultrapassagem do neoliberalismo por reformas
estruturantes na saúde, a começar pela negação dos tão ansiados novos recursos
federais que viriam com a regulamentação da EC n. 29.
Até hoje permanecem enigmáticos os
argumentos que teriam convencido a base do governo no Congresso Nacional a não
ampliar o financiamento do SUS. É certo que, naquela época, as denúncias de
corrupção e a malfadada tentativa de atrelar a prorrogação da CPMF à saúde
criaram um clima desfavorável ao aumento de gastos públicos. No entanto, nada
disso justificaria o covarde posicionamento de partidos progressistas.
O desfecho desfavorável à legislação,
após arrastada tramitação, por doze anos, deixou entidades do movimento social
de orelha em pé. Por isso, nem foi grande surpresa a divulgação pela imprensa
de uma reunião entre a presidente Dilma Rousseff, ministros e empresas de
planos de saúde, em março de 2013, para tratar da concessão de mais subsídios e
desonerações fiscais destinados à expansão do mercado de assistência médica
suplementar.
A novidade foi a rápida e uníssona
reação em defesa do SUS de dezenas de entidades como Cebes, Abrasco, CUT,
Contag, conselhos profissionais e Comissão de Seguridade Social e Família da
Câmara dos Deputados. Possivelmente, o posicionamento contrário até mesmo de
setores sociais que supostamente representam futuros candidatos à obtenção de
planos privados de saúde para trabalhadores e segmentos sociais que ascenderam
na pirâmide de renda espantou o fundamentalismo.
Planos privados florescem no momento em
que as despesas públicas com a saúde são minguadas, no lastro da evolução do
consumo e renda de estratos mais pobres da população, mas não resistirão a
tensões macroeconômicas e não se alinharão a um sistema de saúde comprometido
com a promoção da saúde, com a atenção primária, com os atuais desafios
demográficos e epidemiológicos (nossos novos velhos e doentes), e com a
incorporação e o uso racional de tecnologias.
A cobertura privada suplementar jamais
será uniforme e continuada, pois há diferenças abissais entre os produtos
vendidos; a pessoa sai do emprego que garantia o plano; há exclusão pecuniária
(idosos e doentes são expulsos porque gastam muito com saúde); há rescisão de
contratos que não interessam mais às operadoras; e a agência reguladora,
capturada pelo mercado que deveria controlar, faz vistas grossas ao crescimento
dos planos de baixo preço (com rede restrita de prestadores) e planos “falsos
coletivos” (contratados por pessoa jurídica, a partir de duas pessoas, e que
escapam da regulamentação e ofertam serviços ruins).
Jogar fermento com dinheiro público no
desordenado mercado de planos de saúde pode render votos e cai bem com o
discurso de que o SUS para todos é inviável e com a avaliação negativa de parte
da sociedade, divorciada do sistema público. A lógica é antiga: em nome da
limitada capacidade do Estado, propõe-se a transferir obrigações para o cidadão
e o empregador que podem pagar pelo plano privado, empobrecendo a oferta e
desidratando ainda mais o financiamento público do SUS.
As experiências negativas acumuladas
com o atendimento dos planos de saúde desfazem ilusões de que o mercado, só o
mercado, é capaz de resolver necessidades sociais. A proximidade e a
desenvoltura de empresas com a cúpula do governo podem significar
interferências permanentes na agenda pública da saúde.
Os passaportes dos empresários aos
centros decisórios foram adquiridos em ambientes frequentados por médicos
particulares dos dignitários da República e em fóruns corporativos do setor
privado, mediante apoios políticos objetivos, inclusive com generosos
financiamentos para campanhas eleitorais. Tais prerrogativas indicam que não se
afugentou, definitivamente, a intenção de privatizar de vez o sistema de saúde
brasileiro.
O que estará em jogo daqui em diante
será o choque entre um projeto societário baseado na efetivação de direitos de
cidadania e uma proposta de extensão da cobertura de planos de saúde. A
“solução” privatizante empinou, revestida de forte teor pragmático e apelo
eleitoral, adequada, portanto, à duração e continuidade dos mandatos
governamentais. Sua concretude e aparente facilidade de aplicação contrapõem-se
a um SUS tido como inerte, cada vez menos vigoroso.
Trata-se de uma falsa representação,
segundo a qual o mercado é portador do progresso e das inovações tecnológicas e
o sistema público não passa de um apanágio do atraso. Ao longo do tempo essa
inclinação ideológica produziu uma ideia síntese: o sistema universal de saúde
é impossível, e seus defensores, uns românticos desatualizados. Com os
requerimentos do moderno individualismo, se não incomodarem, esses sonhadores
devem ser tratados com condescendência, por serviços prestados no passado.
O grande desafio será questionar esse
constructo, baseado nas certezas das preferências pela privatização, em um
contexto de subfinanciamento do SUS. O sonho de o Brasil garantir a igualdade
de acesso em saúde para todos que precisam, em qualquer lugar, a qualquer hora,
só irá adiante se os fundos públicos ganharem aportes significativos, passando
a financiar apenas serviços, equipamentos e redes, públicos e privados, porém
absolutamente includentes e deliberadamente universais.
Resgatar o SUS como um bem comum a ser
protegido requer mobilização e novos arranjos políticos capazes de confrontar a
marcha triunfal do privado. A hora é de escolhas essenciais para o futuro da
saúde no Brasil. Não desistiremos de seguir lutando por um sistema de saúde
moderno e justo, controlado pelos usuários, trabalhadores e agentes públicos,
que traga desenvolvimento ao país e tome um lugar de destaque na vida nacional.
Ana Maria Costa
Presidente do Centro Brasileiro de
Estudos da Saúde (Cebes)
Ligia Bahia
Professora do Instituto de Saúde
Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Mario Scheffer
Professor do Departamento de Medicina
Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Este artigo foi escrito por membros do
núcleo Plataforma Política Social – Agenda para o Brasil do Século XXI.
Multidisciplinar e suprapartidária, a articulação reúne pesquisadores,
ativistas e profissionais em políticas públicas com o foco nas políticas
sociais. Inclui profissionais de mais de duas dezenas de universidades, centros
de pesquisa, órgãos do governo e entidades da sociedade civil e do movimento
social. Pretende contribuir para a formulação de uma agenda social que enfrente
as mazelas socioeconômicas seculares que afligem a maioria da população
brasileira. Também espera superar um sentimento de isolamento e de incômoda
resignação ante os rumos do debate nacional pautado pelas forças do mercado.
Lança uma semente para a mutação desse isolamento coletivo em sinergia
transformadora. (http://www.politicasocial.net.br/)
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