José Leal (*) – Carta Maior
Frente às querelas murmurantes, onde eu não mato minha sede,
finalmente os sinistros mecanismos de manipulação entre realidade e ficção da
ditadura militar, estão sendo desmascarados de forma contundente, e este
processo se dimensiona diante dos cinquenta anos depois do Golpe Militar de
1964, que implantou a ditadura sanguinária que se manteve no poder 21 anos,
sequestrando, prendendo e torturando milhares de companheiros e companheiras de
luta, que hoje são sobreviventes deste arbítrio. Vinte um anos de uma ditadura
militar que assassinou e manteve como desaparecidos centenas de combatentes em
crimes de lesa-humanidade, que ainda não foram esclarecidos, nem julgados pela
justiça do Brasil.
Justiça seja feita, lembrar e refletir sobre este período da
história, é de suma importância para a fortalecer o processo democrático no Brasil,
que requer da sociedade uma postura de luta constante para revelar e esclarecer
as raízes da verdade sobre a realidade mantida como ficção pelo poder militar.
Junto a isso, é imprescindível saber quais são os instrumentos e mecanismos do
arbítrio que ainda continuam incorporados como herança maligna em nossa
história atual?
A contradição fundamental é a hereditariedade do sistema,
que abordei como tema no artigo, - Aos Direitos Humanos com Afinco e Afeto –,
publicado no Carta Maior e que aqui é retomado para revelar algumas raízes da macabra doutrina disseminada pela ditadura militar.
Um dos fundamentos desta contradição, é que a estrutura e superestrutura
do sistema capitalista, tendo o Estado como aliado dependente, realiza um
grande jogo político maniqueísta, que de um lado, edifica o sonho de
crescimento da estrutura de seu império selvagem real, e de outro lado, coloca
a maioria do povo como objeto de controle, mantendo o seu sonho de bem estar
social no plano da ficção. Assim é que, a superestrutura, que é a responsável
geradora (de)formação de ideias e conceitos, segue aprimorando seus
instrumentos para perpetuar a dominação, garantir a hereditariedade do sistema
de controle político dos sonhos do povo.
Para isso, lança mão do instrumento de persuasão,
desencorajando o pensar, estabelecendo uma seleção discriminatória de acesso ao
saber, desestimula a reflexão crítica do contexto social, incentivando assim a
letargia social. Com o instrumento do privilégio, ela controla a base do
sistema educacional, aplicando seu programa de ensino à reflexão conivente, às
inspirações ordeiras e a crítica conciliadora, como componentes fundamentais à
elaboração do pensamento, e como elementos que regulam o jogo da concorrência
que proporciona ascensão social desumanizada como recompensa.
Estes são alguns dos instrumentos que estimulam o princípio
da corrupção do imaginário, que são mantidos no arquivo do controle político
dos sonhos. E quantas ideias estão escondidas neste arquivo? Centenas,
inclusive a ideia do jogo que batizou a moeda brasileira de Real, também está
no estoque. Isso significa que, o acesso a um montante de Real que proporcione
o bem da maioria da população, permanece no plano da ficção. Trocando em miúdos,
o sonho do povo tem que permanecer dentro do mundo da ficção, enquanto o Real é
mantido na realidade, porém bem longe do povo, pra lá do além, além do
infinito. Maquiavel gostaria de ver esta máquina de manipulação do sistema,
demostrando o quanto o arsenal deste jogo é corrompido e perverso.
Entra em pauta a liberdade de expressão, protegida pela lei
que permite as manifestações populares, mas na realidade elas têm sido alvo de
brutais violências, como foi o caso das manifestações de 2013, que sofreram
intensa repressão, com centenas de manifestantes espancados, presos, internados
em hospitais, e que provocou quatro mortes. Os movimentos indígenas são
reprimidos violentamente causando assassinatos de índios Kaiowa e segundo o
CMI, nos últimos 20 anos foram assassinados 560 indígenas, o MST e outras
organizações populares têm sido alvo de intensa repressão, a população negra,
além de forte discriminação, sofre repressão redobrada. Fato é que, as lutas e
ações populares são mantidas sob rígidos e violentos controles, e vem sendo
criminalizadas. A reflexão sobre todas estas ações de repressão, nos leva a
concluir que a lei que deveria garantir a liberdade de expressão é fictícia,
mas a repressão contra a liberdade é real. O uso do aparato militarizado
reprimindo desenfreadamente as manifestações, tem o objetivo ideológico de
implantar o medo junto ao povo, desencorajar as ideias de se organizar e
desmobilizar ações para exigir a realização de seus anseios. Consequentemente,
isso leva o povo a desconfiar das leis estabelecidas, das instituições estatais
e nos agentes públicos.
Assim, o que deveria ser respeito baseado no direito
igualitário, transforma-se em medo frente a tudo que demonstre poder, seja
privado ou estatal. Pior ainda, o respeito e o direito passam a ser ficção,
enquanto o medo é disseminado na realidade. Sobre o cumprimento das leis dos
Direitos Humanos, encontra-se um reprimido sinal de existência, porque é apenas
instrumento de apêndice, pois é megafictício, quase sobrenatural. E o que há de
novo no rugir das tempestades político-sociais? Um pouco do quase nada, pois
toda esta situação prova que a estrutura do estado brasileiro ainda mantem a
concepção herdada da ditadura militar, que conserva o jogo entre ficção e
realidade para perpetuar a dominação.
Faço aqui um parênteses, para registrar o quanto o jogo
entre ficção e real é uma arma sinistra
essencial da doutrina e prática da repressão da ditadura militar. Exemplifico
aqui, o período em que fui vítima dos sequestros em 1974 e 1975 pelo DOI-CODI,
onde fiquei preso longo período, mantido nu, torturado e sempre com capuz. No
dia em que decidiram me retirar das dependências do DOI-CODI, fui levado,
também de capuz, à frente de um agente de comando que me exigiu textualmente:
“Hoje você vai para casa e tenho a certeza que irá esquecer
que esteve aqui e tudo que se passou. Pense bem e faça deste período uma folha
em branco em sua vida. Melhor ainda, é você mentalizar que nunca esteve aqui, e
que tudo foi mera ilusão sua. Este é único caminho, senão você terá problemas
mais graves conosco. Podem levá-lo!”
Este exemplo sintetiza e demonstra a herança do jogo entre
ficção e real da máquina repressiva, planejada com altos requintes de
perversidade, onde o primeiro componente é de que, o indivíduo alvo da
barbárie, deve permanecer de capuz sem saber onde está, e sem saber quem o
torturou, para mascarar toda a história de atos cometidos por eles. É a
garantia do sigilo e da catarse de isenção de culpa dos torturadores e da uma
estrutura que mascara a verdade. Evidente, que toda tortura praticada, foi
violência física e psíquica cometida contra uma pessoa e suas ideias políticas,
que assim expressa o ódio contra o pensar coletivo, contra qualquer pessoa que
sinalize a ideia de manifestação de luta da sociedade.
E a máquina repressiva arbitrária comete ações de tortura
contra indivíduos desprovidos de qualquer direito, porque eles incorporam o
direito em si, e assim livram-se da culpa, fazendo a macabra transferência de
responsabilidade de tudo que cometeram. Transladam para o indivíduo o sentimento
de culpa e de autopunição como vítima de suas próprias paixões ideológicas, e
assim imputam todo o contrassenso para o plano imaginário do indivíduo. Eis que
o capuz adquire o valor corrosivo da autoestima, pois tudo deve permanecer
escondido dentro dele e, o capuz é de propriedade dos torturadores e é mantido
sob a guarda deles em local secreto. É exatamente este o aspecto sinistro
estimulando a resignação, a autopunição e bombardeando a autoestima e estes são
os fios que confeccionam o capuz social da dominação, repressão e tortura, com
o qual tentam encobrir o dia a dia do povo. Infelizmente, esta herança de ação
macabra está comprovada na situação real em que o povo ainda vive, sob a
tortura da fome, violência, do direito estabelecido como ordem da desigualdade,
vítima do arbítrio e desrespeito, mas que devem ser mantidos como autopunição.
O pior é que, sem a transformação deste sistema terrorista herdado da ditadura
militar, não só garante a continuidade
sádica deste jogo, como mantem aberta a
possibilidade dos herdeiros da doutrina do arbítrio terem acesso e de
permanecerem contaminando os órgãos do estado.
Fazendo frente a isso, os movimentos populares permanecem na
lutar para realizar e consolidar os Direitos Humanos, a liberdade e a
democracia no Brasil. Desta forma, eles erguem-se com forte esperança nas ruas,
dando sua enérgica resposta aos cinquenta anos do Golpe. Esta resposta vêm
sendo dada por organizações populares através de incessantes lutas há longo
tempo, que somam--se às manifestações de ruas dos últimos anos, mostrando os
participantes escancarando suas faces para desmascarar a face dupla escondida
na hereditariedade do sistema. Existem claros sinais de que os movimentos
populares já perderam a credibilidade nas instituições e proclamam
transformações efetivas na estrutura do poder. Refiro-me às manifestações sem a
desvirtuada presença das figuras mascaradas, ou fantasiadas de heróis fictícios
- Black Blocs -, que incorporam e usam os mesmos métodos de não mostrar a face,
de esconder sua identidade diante dos fatos que cometem e, desta forma
reproduzem a mesma tática de violência herdada da ditadura militar e de seus
agentes, fortalecendo assim a máquina repressiva do controle político dos
sonhos.
Mostrando seu discernimento, os movimentos populares, estão
agregando novos valores às suas demandas, que vêm se ampliando, vêm
transformando à luta meramente reivindicatória, e dando um caráter político
geral e real contra o atual projeto político-social brasileiro. Estão
realizando uma mudança qualitativa no processo de luta, pois mostram-se
decididos a fazer transformação e não mudança, baseados em seus programas
político-sociais e econômicos concretos.
Entre várias iniciativas, vide o potencial do - Movimento
Plebiscito Constituinte -, que conta com a participação de cerca de 70
entidades com significativa representatividade popular em todo o Brasil. Tudo
indica que o sonho não acabou, e o que precisa ser extinto é o controle
político dos sonhos. Há claros sinais de que o jogo do país do futuro, está
sendo remetido às ruinas, aos silos do passado, pois os movimentos populares
demonstram-se decididos a plantar e usufruir o fruto do futuro no presente
canteiro.
E neste processo, os movimentos populares ainda terão que
travar intensas lutas para transformar o sistema que não quer ver que a questão
da corrupção começa pelo imaginário e é
decorrente da herança de uma estrutura corrompida, da falta de educação
ética dos agentes públicos, privados e impregnada em parte do inconsciente
coletivo. É necessário combater com lucidez, a extrema desigualdade, a
discriminação e exclusão político-social que ainda são estimuladas, como é o
caso das Leis Trabalhistas que continuam estabelecidas como uma ordem jurídica
que não promove o bem estar de todos, não valoriza, não respeita os cidadãos e
cidadãs como força de trabalho física, mental e, sobretudo humana, mas o bem
estar do capitalismo e de seus protagonistas está garantido. Eis o absurdo de
um sistema inconstitucional, pois a Constituição estabelece textualmente em seu
Art. 3°, Parágrafo IV: Promover o bem estar de todos sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação
-.
Aqui chegamos diante de mais uma contradição antagônica do
sistema, que aplica uma política social através de um projeto com caráter
profundamente antissocial.
Mais uma vez, identificamos o sinistro jogo de manipulação,
em que a política social é ficção, e o projeto antissocial é a pura realidade
discriminatória. Desta questão de discriminação, faz parte também o incessante
confronto com o racismo, que permanece extremamente arraigado no inconsciente
coletivo, na estrutura e superestrutura do sistema. Cabe aqui reprisar que,
todas estas contradições do sistema da hereditariedade não são enfrentadas com
o rigor de análise que nos leve ao cerne das questões, para combater a
concepção absurda de que abolição da escravidão no Brasil, foi por si só, um
ato abonador de extinção do racismo e discriminações. Em uma relação analógica,
vem o embuste de que o fim das ditaduras de 1937 à 1945 e de 1964 à 1985,
também determinam o fim das raízes do arbítrio e toda sua prole de barbáries.
Mantendo esta postura, corremos o risco de perpetuar o erro
histórico de cultuar os mecanismos da hereditariedade do sistema de
desigualdade, mantendo suas contradições no processo de democratização. É
imprescindível desenvolver um processo de democratização com a participação
popular, realizando a descentralização, a desapropriação do exercício do poder,
pois com a presença do ranço autoritário da ditadura, fica impossível digerir a
legitimidade deste processo.
Por isso, é urgente transformar a estrutura e superestrutra,
para a criação de um novo sistema econômico-social e regime político
democrático, com a devida inspiração visionária na dimensão da realidade para
que, sem exclusão e com discernimento, a sociedade brasileira encontre o sumo
das raras raízes de um mundo social melhor e vá ao encontro da seiva
democrática, do húmos humano, profundo e maior.
(*) Jornalista e escritor, autor do recente romance “Vozes
que Vibram a Vida” - Editora Multifoco – Rio de Janeiro/2013. Ex-preso político
e ex-militante da Ala Vermelha.
Créditos da foto: Arquivo
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