Golpistas de ontem e de hoje
fazem referência ao 31 de março como data oficial porque sempre temeram que o
movimento ficasse conhecido por seu verdadeiro nome.
Antonio Lassance – Carta Maior
O golpe de 1964 e sua ditadura
foram uma usina de mentiras, do início ao fim.
A começar por sua data de
nascimento. Seus defensores dizem que ele ocorreu em 31 de março, e não em 1º
de abril - mentira. Dizem que foi uma revolução - mentira. Que aconteceu para
evitar que o País fosse transformado em uma ditadura comunista - mentira. Que
garantiria a lei e a ordem e defenderia a democracia - mentira. Que combateria
a corrupção e a politicagem - tudo mentira.
Os golpistas de ontem e de hoje
fazem referência ao 31 de março como sua data oficial porque sempre temeram que
o movimento ficasse conhecido por seu verdadeiro nome: o Golpe de 1º. de Abril.
O plano para a derrubada do
governo João Goulart estava sendo programado para a primeira semana de abril,
certamente não para o dia primeiro. O fato de o desenlace do golpe ter sido
dado no 1º de abril é obra do general Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª
Região Militar, em Minas Gerais, que, no dia 31 de março, começou a movimentar
suas tropas em direção ao Rio de Janeiro. Mourão Filho só conseguiu chegar ao
Rio de Janeiro e estacionar seus tanques no Estádio do Maracanã no dia 2 de
abril. Chegou tarde. O golpe já estava dado na véspera.
Se for para considerar a data do
31 de março, por causa da movimentação dos tanques de Mourão Filho, a
Independência do Brasil deveria agora ser comemorada no dia 14 de agosto,
quando o príncipe D. Pedro montou em seu cavalo para se deslocar do Rio de
Janeiro para as margens do Ipiranga, no estado de São Paulo.
O fato é que, ainda no dia 1º de
abril, Jango (apelido pelo qual João Goulart era popularmente conhecido) chegou
a rumar do Rio de Janeiro para Brasília, e lá permaneceu até tarde da noite.
Fez reunião com seus ministros e só ao final do dia rumou para a Base Aérea de
Brasília.
Os ministros que presenciaram sua
fuga relatam sua demora na Base Aérea até depois das 22 horas, quando partiria
para o Rio Grande do Sul, onde era esperado pelo governador Leonel Brizola, que
defendia, enfaticamente, a proposta de impor resistência e reconquistar o
poder. Portanto, foi no dia 1º de abril quando Jango de fato se viu obrigado a
abandonar Brasília, a capital da República. É quando se pode dizer, de fato,
que ele foi deposto, para nunca mais voltar ao País.
No dia 2 de abril, mais uma
mentira. O presidente do Congresso, Senador Auro de Moura Andrade,
declarou vago o cargo de presidente da
República - mentira. Jango estava ainda no Rio Grande do Sul. Moura Andrade
havia sido um dos organizadores da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade
em São Paulo”, nome escandalosamente mentiroso para a marcha do golpismo.
A sessão do Congresso que
declarou vaga a Presidência foi tão fajuta que nem os golpistas a levaram a
sério. O presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, que pela Constituição era o
substituto do presidente, ficou apenas 14 dias no cargo. No dia 15 de abril, o
Marechal Humberto de Alencar Castello Branco seria empossado na Presidência da
República. Ele havia sido eleito indiretamente por um Congresso Nacional
expurgado de 40 parlamentares.
Se alguém tinha dúvida de quem
mandava e desmandava no país, naquele dia 15 a certeza foi esfregada na cara
dos golpistas civis. Mazzilli seria enxotado da Presidência da República, e
Auro de Moura Andrade, que se achava um dos donos do novo regime, sequer
conseguiu apoio para se eleger vice do Marechal.
Castello Branco, quando editou o
Ato Institucional nº 4, convocando o Congresso a votar e promulgar uma nova
constituição, declarou que aquele seria o último dos atos institucionais -
mentira. O ato seguinte, o famigerado AI-5, ainda seria complementado por mais
outros 12 Atos Institucionais. A constituição aprovada pelo Congresso, em 1967,
duraria pouco, sendo substituída em 1969 por um novo texto, baixado por uma
Junta Militar.
De revolução, o regime não teve
nada além de um slogan mentiroso. Foi golpe, ditadura e conservadorismo. A
motivação essencial do golpismo foi conter as reformas de base propostas por
Jango, na educação, no sistema financeiro e tributário e no campo, com uma
reforma agrária pressionada pelo movimento ascendente das Ligas Camponesas, que
seriam depois duramente reprimidas.
A ditadura foi um regime
estúpido, violento, que envergonharia a Idade Média. Assassinou militantes de
grupos de esquerda e inocentes. Expôs crianças e familiares a sessões de
tortura.
Hoje, os comandantes das Forças
Armadas dizem que não têm nada a declarar - mentira. Devem um pedido de
desculpas à sociedade brasileira e deveriam colaborar para que os mortos e
desaparecidos pudessem ser encontrados e enterrados dignamente. Isso não
apagaria o passado, mas daria mais dignidade às Forças Armadas do que o
vergonhoso silêncio de seus comandantes.
Os golpistas se diziam contra a
politicagem e a corrupção - mentira da grossa. Para governar, com o apoio do
Congresso e sustentação dos governos estaduais e prefeituras, a ditadura
patrocinou a política mais tradicional e corrupta possível. Seus ministros
protagonizaram inúmeros escândalos.
Os chefões estaduais eram
políticos pró-ditadura, indicados com o aval dos militares para serem depois
aclamados como governadores pelas Assembleias Legislativas, também já
drasticamente expurgadas de opositores.
Os militares não inventaram a
política do "toma lá, da cá", e nem criaram os políticos
tradicionais, mas se valeram deles e os fizeram maiores. Era o preço que a
ditadura se dispôs a pagar para conter o que chamavam de “populismo” e de
“república sindicalista”.
O alto comando da ditadura
patrocinou as carreiras de políticos como Antonio Carlos Magalhães, na Bahia;
José Sarney, no Maranhão; e de Chagas Freitas, do Rio de Janeiro, um golpista
que acabou entrando no MDB porque a Arena era controlada pelo corvo, Carlos
Lacerda.
Políticos dessa espécie deram
origem a substantivos irônicos, como o malufismo e o chaguismo, que representavam
a política de troca de favores. A pior “escola” da política brasileira foi
aperfeiçoada durante a ditadura.
No Rio, as práticas de Chagas
Freitas ficaram conhecidas como a "política da bica d'água". Na época
da lata d’água na cabeça, o político que prometia instalar uma bica d'água na
favela, com o apoio do governador, ganhava votos certos.
A ditadura foi pródiga em
escândalos de corrupção. Não é de se admirar, pois ditaduras são regimes
corruptos por excelência. Muita gente certamente não se lembra, ou sequer era
nascida, quando esvaziaram o caixa da Capemi, a própria Caixa de Pecúlio dos
Militares. Casa de ferreiro, espeto de pau. Também ficaram famosos o caso
Lutfalla e o escândalo da Mandioca, que envolveram o desvio de grandes somas de
recursos públicos. Nada apurado, ninguém punido.
As grandes obras públicas, ditas
faraônicas, de tão grandes, eram o paraíso do superfaturamento, do empreguismo,
e muitas se tornaram obras inacabadas - mas pagas religiosamente.
Mentiras e mais mentiras. E ainda
tem gente que tem saudade. Será por quê?
(*) Antonio Lassance é cientista político.
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